28 Abril 2023
Um filósofo rastreando lobos? Uma socióloga observando aves? Um crítico cultural pesquisando galinhas? Um antropólogo examinando javalis? Um professor de estética observando aranhas? Nos últimos anos, tem surgido um número especial de estudos culturais, filosóficos, sociológicos e antropológicos que se concentram nos animais como uma forma de questionar a sociedade e as ações dos humanos.
A reportagem é de Javier Ferreyra, publicada por La Voz, 24-04-2023. A tradução é do Cepat.
Pensar o animal está na agenda das ciências sociais, a partir de diferentes perspectivas que estimulam a pensar de forma diferente nossas relações com o vivente, redescobrindo uma sensibilidade abandonada. A questão animal explora muitos temas que vão das formas de organização até a como coabitar com os animais.
“O animal foi pensado como o avesso do humano, a vida como o selvagem, o bárbaro, o indisciplinado que ameaça a cultura”, diz Gabriel Giorgi, em seu livro Formas comuns: animalidade, literatura, biopolítica (Editora Rocco), um estudo pioneiro na América Latina sobre o funcionamento político da vida animal em diversos artefatos culturais, de romances e filmes a instalações e documentários.
Giorgi, cordobês, doutor pela Universidade Nacional de Córdoba e atualmente professor de Literatura Latino-Americana, na Universidade de Nova York, afirma que agora o animal funciona explicitamente como um signo político que “ilumina as políticas que inscrevem e classificam corpos sobre ordenamentos hierárquicos e economias da vida e da morte”.
Se dominar a parte animal de si mesmo é um dos predicados da formação do ser, essa forma de conceber o animal como o contrário à cultura marcou a história da natureza como um território de domínio e submissão aos desígnios da civilização, apagando ou deslocando diferentes formas de vida. Por isso, diz Giorgi, a vida animal traça distinções e permite reatualizar o pensamento sobre a vida e a morte dos “viventes não humanos”, colocando em jogo um poder crítico inédito no pensamento atual.
Um dos livros mais comovedores da série de textos publicados recentemente sobre a reflexão animal é o da filósofa belga Vinciane Despret, que em Habitar como un pájaro (Editora Cactus) traça uma vibrante jornada em que reconsidera temas políticos candentes como as noções de território, violência, posse. Este livro aprofunda algumas questões que já havia levantado em seu livro anterior: O que diriam os animais? (Editora Ubu).
A partir do canto de um melro, que desfila em sua janela, Despret começa uma reflexão carregada de intensidades, linhas de sentido e meditações que reformulam vários conceitos-chave da tradição da filosofia e da antropologia. Não é um livro sobre pássaros, nem é um livro sobre humanos. Não é um livro sobre ecologia, nem filosofia, apesar de estar repleto de termos filosóficos que vão de Hegel e Marx a Donna Haraway e Gilles Deleuze, para pensar um conceito-chave da modernidade, como é o território.
Para Despret, muitas vezes, os comportamentos animais foram pensados como uma forma de fazer as coisas como se fossem humanos, ou seja, concebê-los como se o que fizessem fosse humano. Essa forma de pensar descontextualiza o comportamento animal – diz Despret –, que pode estar fazendo algo com finalidade totalmente alheia ao que pensa o observador com sua racionalidade humana.
A vida dos pássaros permite a Despret analisar a noção de território, que na concepção moderna está ligada a formas de domínio violento, propriedade exclusiva e uso da terra com fins individualistas. O animal considera o território de outra forma: como um coabitar, um uso compartilhado e comum em que estão presentes várias camadas de significados.
O trajeto de Despret é emocional, porque abriga os afetos como uma das formas esquecidas de pensar a diversidade da vida que nos rodeia, e com eles “honrar os modos de habitar”, convidando a prestar atenção de uma forma diferente.
Pode ser comum para qualquer pessoa que observe com o mínimo de atenção se perguntar sobre a beleza da plumagem do pavão ou a admirável habilidade da aranha em tecer sua intrincada teia. Mas se for Étienne Souriau, professor de Estética da Universidade de Paris, a reflexão sobre a legitimidade de considerar certas produções da natureza como arte é mais refinada.
El sentido artístico de los animales é um livro precursor das reflexões sobre a questão animal e as críticas ao enfoque antropocêntrico. Embora seja um livro dos anos 1960, acaba de ser publicado na Argentina (também pela editora Cactus) e serve como correlato para cruzar essa leitura com outros textos sobre os animais para ampliar problemas urgentes.
“O fato estético é abundante na natureza”, diz Souriau: a teia de aranha é uma obra-prima, a vespa-oleira que molda a argila, os movimentos do alce, os pistilos fascinantes dos lírios. Tudo faz parte de um mundo complexo e extraordinário que deve ser considerado arte, mas não sob os parâmetros dos comportamentos humanos.
O erro apontado por Souriau é o que nosso ponto de vista ao considerar comportamentos, atitudes e modelos de vida dos animais busca assemelhá-los aos nossos próprios comportamentos. Um pouco ao estilo do mundo de Disney, como se não pudéssemos distanciar a forma de vida humana da dos animais, que têm seus próprios interesses.
A facilidade em assimilar os comportamentos animais com os do ser humano é o que distancia o homem do animal e torna muito mais pobre a vida animal, cuja existência é muito mais rica e variada do que os moldes que os humanos lhe colocam para expressá-la.
O livro que talvez seja o mais intenso e motivador é o de Baptiste Morizot: Tras el rastro animal (Editora Isla desierta). Morizot não é o tipo de filósofo fechado em sua biblioteca, mas um sujeito ativo que para pensar sobre certos problemas de convivência, vai à procura de lobos pelas montanhas da França, analisa ursos no Yosemite, rastreia as planícies pedregosas onde se esconde o lendário leopardo-das-neves e examina com ternura a minhoca em sua varanda. Do medo mítico do lobo à reflexão sobre a compostagem?
Esse jogo é o que acaba seduzindo no pensamento de Morizot. Claro, tudo carregado de uma revisão de termos clássicos da filosofia e da antropologia, e introduzindo novos problemas nas reflexões sobre a vida humana e animal em convivência: um termo como “bosquizarse”, usado pelos velhos lenhadores canadenses; as reflexões sobre o xamanismo, propostas pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro; a noção de “sair ao ar livre”, que utiliza com seus amigos, com suas expedições em busca de grandes predadores, reforçam uma análise aguçada.
A trajetória de Morizot é extravagante e intensa. O retorno do lobo à França, que gerou polêmica porque os pastores voltaram a ver os seus rebanhos ameaçados, leva-o a procurar seus rastros, até que em uma noite se encontra cara a cara com um: olham-se durante alguns segundos; e nessa intensidade de olhares, Morizot percebe que para o lobo ele é comida.
Esse estranho fato ilumina um motivo funcional de nossa cultura, que é o de termos saído da cadeia alimentar, como se o ser humano não pertencesse à natureza e estivesse fora do sistema orgânico. Esse encontro desencadeia em Morizot várias linhas de reflexão sobre nossa relação com a natureza: os animais não são nossos amigos, mas também não são nossos inimigos, e devemos aprender a conviver com os animais porque eles são uma forma de vida diferente.
Um percurso de buscas e encontros, de reflexão e revisão dos parâmetros com os quais as ciências sociais moldaram nosso modo de pensar o animal, descuidando da vida do próprio animal. Inclusive, desprendendo a vida que nos cerca de mil formas ecológicas e energéticas. Por isso, seu livro termina analisando a compostagem de sua varanda, na qual encontra uma extraordinária atividade social. Pensar em uma geopolítica da convivência em que todos os viventes façam parte de um conjunto ecológico ou de uma comunidade de vida é pensar em termos de aliança, conexões, redes e vínculos com o animal, diz Morizot.
Outra leitura imprescindível sobre os animais é a de Michel Pollan, que rastreia outros tipos de animais: esses que povoam os supermercados, prontos para serem comidos, e em sua busca revela uma realidade arrepiante, a das granjas industriais. Mas, também descobre outro tipo de criação de animais destinados a serem comidos, vivendo de um modo natural. Inclusive, granjas orgânicas nas quais o cliente é convidado a matar e depenar seu próprio frango para compreender a natureza do sacrifício animal, e assim voltar às origens do consumo humano de animais.
E demonstra que é possível outra forma de relação com os animais, mesmo com aqueles destinados a serem comidos. “Matar animais é inevitável, independentemente do que escolhermos comer”, diz radicalmente Pollan, depois de se tornar vegetariano por um tempo, de debater cara a cara com Peter Singer e analisar centenas de artigos científicos sobre nutrição humana. O interessante de Pollan é que nos coloca diante do dilema da sobrevivência humana, do que comemos e da relação com a natureza.
Javalis, morcegos, cervos, galinhas, polvos, minhocas: diversas formas de vida animal estão sendo o foco das ciências sociais para sugerir outras formas possíveis de convivência, outras formas de nos relacionarmos com a natureza: uma ecossensibilidade pensada para o presente e o futuro. A filosofia atual nos oferece uma oportunidade de enriquecer o mundo ao pensar o animal.
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Pensar com os animais para entender melhor os humanos: uma disciplina em crescimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU