10 Agosto 2022
Um caso recente nos EUA, em que um homem morreu após receber o coração de um porco, reacendeu o debate ético e científico em torno da transferência de órgãos entre espécies.
A reportagem é publicada por OutraSaúde, 10-08-2022.
Em 2021, foram realizados 41.354 transplantes de órgãos de humanos para humanos. Ainda assim, só nos Estados Unidos, 100 mil pessoas esperam sua vez na fila dos transplantes e, todos os dias, 17 pessoas morrem enquanto esperam um órgão novo, já que as doações são insuficientes para todos.
O xenotransplante – ou transferência de células, tecidos e órgãos entre espécies – tem a ambição de resolver essa escassez. Um exemplo recente desse tipo de técnica envolveu o transplante de coração de porco para um humano. O paciente, operado Universidade de Maryland, em Baltimore (EUA), morreu poucos dias depois da cirurgia: o órgão estava infectado por um vírus suíno, o porcine cytomegaloviru, segundo afirmou mais tarde o médico responsável pela operação.
“Perdido nesse potencial ilimitado está o significado da divisão humano-animal. Pessoas andando com órgãos de porco – como ciborgues humanos-animais – podem parecer distópicas. E com o vírus zoonótico Sars-CoV-2 matando mais de 6 milhões de pessoas, violar o limite entre humanos e animais pode ser catastrófico”, escreveu ao The Guardian o pesquisador em História da Saúde, Simar Bajaj.
Bajaj conta que o xenotransplante tem origens muito antigas. Na França e na Inglaterra do século XVII, ocorriam transfusões de sangue de animais para humanos para “curar” uma série de condições médicas. O ato tinha significado espiritual: “Já que Cristo é o cordeiro de Deus”, escreveu um destinatário em uma carta à Royal Society, “o sangue de ovelha possui uma relação simbólica com [seu] sangue”. A febre violenta de um paciente foi supostamente curada, enquanto pelo menos outros dois morreram logo após essas xenotransfusões.
Embora os xenotransplantes de células e tecidos tenham sido realizados há séculos, transplantes de órgãos inteiros eram mais complexos. Em 1964, James Hardy, cirurgião da Universidade do Mississippi, tentou transferir o coração do chimpanzé Bino para o peito de Boyd Rush, de 68 anos – mas o paciente sobreviveu por apenas 90 minutos, já que o órgão foi rejeitado pelo seu corpo. Em 1984, cirurgiões da Universidade Loma Linda, Califórnia, transplantaram um coração de babuíno do tamanho de uma noz no peito de Fae, bebê de 12 dias com síndrome do coração esquerdo hipoplásico. Dessa vez, a operação pareceu bem-sucedida: a criança viveu por 21 dias, comendo e chorando, até que seu sistema imunológico rejeitou o coração.
Naquele momento, já ocorriam manifestações contra esse tipo de prática, especialmente por parte de organizações defensoras dos direitos dos animais e de outros médicos-especialistas. Após a morte de David Bennett, que recebeu o coração suíno infectado em março deste ano, o Peta, ONG norte-americana de proteção dos direitos dos animais, emitiu uma nota de repúdio ao procedimento: “O risco de transmissão de vírus originados em animais através do xenotransplante é uma ameaça real (...) tais procedimentos são cruéis – para animais e humanos à espera de órgãos – e perpetuam o mito de que um dia o xenotransplante será prático”. Segundo a entidade, “leis de consentimento presumido e medidas preventivas de saúde salvarão mais vidas do que cirurgias de manchete (...) transplantes de animais para humanos são antiéticos, perigosos e um desperdício de recursos que poderiam financiar pesquisas com potencial real de ajudar humanos”.
Porcos são animais altamente inteligentes e capazes de demonstrar emoções. “Eles gostam de brincar, são gênios em navegar labirintos e podem ser mais espertos que cães e chimpanzés, de acordo com seus testes de QI”, explica Bajaj. Após o caso do bebê Fae, os primatas foram substituídos por porcos em xenotransplantes – especialmente por os suínos serem mais facilmente manipulados geneticamente e por serem mais facilmente criados em “ambientes estéreis", que supostamente reduzem infecções. Para utilizar o órgão de um porco para transplante, é necessário modificá-lo geneticamente e neutralizar quatro genes específicos de porcos – que geram reações imediatas do corpo humano. O trabalho é realizado por empresas como a Revivicor, de biotecnologia, com sede na Virgínia, EUA. Além disso, os porcos doadores são criados em cativeiro, em ambientes sem janelas e contato com o mundo externo – para evitar infecções de patógenos.
Brad Bolman, historiador da ciência da Universidade de Chicago, explicou ao The Guardian que outros animais – como as ovelhas – também poderiam ter sido considerados adequados. A realidade é que os porcos são “social e economicamente convenientes”, segundo ele. “Eles produzem grandes ninhadas rapidamente, com leitões atingindo o tamanho adulto em seis meses. Há também um suprimento quase ilimitado deles – 700 milhões em todo o mundo – e como são animais agrícolas, não se encaixam na Lei [norte-americana] de Bem-Estar Animal”, argumenta, e complementa: “Os ideais científicos foram construídos retroativamente para fazer com que os porcos parecessem a escolha certa”. “Tratamos os porcos de maneiras que nunca trataríamos as pessoas, mas também reconhecemos que eles são tão semelhantes a nós que são nossos modelos”, concluiu ao jornal britânico Lisa Moses, bioética e veterinária da Harvard Medical School.
Segundo Simar Bajaj, muitos especialistas em xenotransplante minimizam preocupações éticas e utilizam a indústria global de carne suína como justificativa. O pensamento seria que, se os porcos vão ser comidos de qualquer maneira, eles também podem ser usados para a ciência, “uma atividade mais valiosa e nobre”. Mas também possuem outro argumento: a fila com alta espera de pessoas que precisam de órgãos para sobreviver – apesar da técnica não ter perspectivas de ser uma solução viável por ora.
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De animais a humanos: os transplantes e as polêmicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU