14 Outubro 2024
“Minha querida mãe deu à luz gêmeos, eu e o medo”, escreveu Thomas Hobbes. O autor de Leviatã e pai da teoria política moderna viveu em tempos de violência extrema. Nasceu em 1588, em uma Inglaterra aterrorizada pela iminente chegada às suas costas da Invencível Armada espanhola. Lidou durante toda a sua longa vida com a pobreza e a violência de uma sociedade dilacerada por sangrentos conflitos religiosos. Então, compreendeu que não havia paixão humana que pudesse competir com o medo e assim expôs em sua obra principal. Sem um forte poder soberano absoluto e coercitivo que trouxesse a paz à humanidade – que ele batizou com o nome do monstro marinho bíblico –, a vida do homem estava destinada a ser “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.
A evolução histórica pareceu desmentir Hobbes, quando o liberalismo nascente deu origem a estados democráticos nos quais o poder estava submetido à lei. Foi uma miragem. Segundo o britânico John Gray (South Shields, 1948), em seu último livro, The New Leviathans [Os Novos Leviatãs], no século XXI, os monstros adormecidos despertaram, os estados autoritários voltam para dar sentido a um mundo incerto.
Gray é o rei dos pessimistas, um pensador denso, de enorme influência, que vem advertindo sobre a fragilidade do sonho liberal muito antes das pandemias, guerras e extremismos religiosos e políticos despedaçarem o otimismo que, nos anos 1990, após a queda do muro, tornou-se uma fé secular. Ao nos encontrarmos com ele por videoconferência, avisa que manterá a tela desligada e que só ouviremos a sua voz.
A entrevista é de Daniel Arjona e Sophia Spring, publicada por El Mundo, 10-10-2024. A tradução é do Cepat.
Quando a pandemia estava terminando e a guerra na Ucrânia começando, um amigo me disse: ‘Sabe, John Gray estava certo e Steven Pinker errado’. É difícil que tenha razão dadas as circunstâncias?
Sim, eu preferiria estar errado sobre muitas das coisas que disse. Por exemplo, em 2003, antes da invasão do Iraque, expliquei que seria uma grande catástrofe para o próprio país, para o Oriente Médio e para o mundo inteiro. Na verdade, foi ainda pior do que eu pensava.
Tenho a reputação de ser um grande pessimista, mas depois os acontecimentos me dão razão. Claro, não sou infalível. Cometi erros e não tenho poderes proféticos. Embora, curiosamente, Cassandra nunca foi escutada. Então, não vou criticar Steven Pinker. Ele é inabalável em seu otimismo racional. Sua religião se sustenta frente a todas as adversidades.
O liberalismo é uma religião que hoje perdeu seus fiéis, conforme defende em seu último livro?
Steven Pinker e outros como ele seguem apegados ao racionalismo liberal, que basicamente afirma que o mundo todo é irracional, exceto eles. Então, a solução para os problemas do mundo é que as pessoas os ouçam.
Lembro-me de um artigo maravilhoso de John Maynard Keynes, chamado Minhas próprias crenças, no qual descreve como abandonou o racionalismo liberal. Dizia algo assim: ‘Durante todo o meu trabalho, em toda a minha vida, pensei que era possível convencer as pessoas no poder com argumentos racionais, que implementariam tudo o que fosse racional e o mundo melhoraria. No entanto, eu estava errado’.
As terríveis previsões históricas de Keynes também deram no cravo.
Keynes relatava que, como representante da delegação britânica na Conferência de Paz de Paris, após a Primeira Guerra Mundial, esperava que se debatesse sobre como lidar com a fome que afetava a Europa. No entanto, encontrou uma situação em que cada potência atacava as outras e se espalhava a sede de vingança contra os alemães.
Pensou, e mais tarde escreveu, que o resultado daquilo seria um grande desastre para a civilização europeia, caso o tratamento à Alemanha derrotada se baseasse unicamente na vingança. E foi isso aconteceu.
Keynes era, na verdade, muito espirituoso. Dizia: ‘Meu amigo Bertie [Bertrand Russell] acredita que toda a história da humanidade foi uma história de crimes e loucura. Mas a solução é simples: todos deveríamos ser mais razoáveis’ (risos).
Mas, então, nós, humanos, não somos esses seres racionais que a teoria política costuma descrever?
Um dos aspectos centrais da vida humana é que as pessoas não são movidas por argumentos, mas por paixões, interesses e, no caso do Ocidente moderno, por suas carreiras. Os racionalistas costumam se mostrar mais irracionais do que as pessoas comuns. O taxista e o garçom que serve o seu café estão mais em contato com a realidade e os problemas cotidianos. Os políticos, ao contrário, estão isolados da vida diária e pensam que entendem as coisas melhor do que o restante das pessoas. Mas é uma ilusão.
Às vezes, os problemas simplesmente não têm solução, só são trágicos e absurdos. Pinker não vê as coisas assim. Seria capaz de defender algo como: ‘Nunca houve um momento melhor para haver um Exterminador’. (Risos). E observe que embora Pinker tenha sido atacado por não ser suficientemente woke, segue acreditando que se você prega a razão, as pessoas vão te ouvir.
Você não quer ser ouvido?
Não espero que alguém faça isso. Não escrevo para mudar políticas. Em muitos casos, as políticas são ditadas por instituições e órgãos de opinião internacionais que não vão mudar. Quando uma política fracassa no Ocidente, a resposta habitual passa por investir mais recursos, alegando-se que houve erro porque não se tentou o suficiente. Depois, sem mais, é abandonada.
Foi o que aconteceu no Afeganistão. Estivemos lá durante 20 anos e alguns diziam: ‘Funcionará a longo prazo, só temos de suportar’. De repente, os estadunidenses partiram sem avisar ninguém. Alguns chegaram a dizer que desta vez os talibãs seriam mais moderados do que antes. Seguem perseguindo as mulheres, as outras religiões e proibindo empinar pipas. Na verdade, são ainda piores. Foi um desastre total.
Então, por que você escreve?
Com a minha escrita, busco incutir o sentido duro e doloroso da realidade. Depois, os leitores podem fazer o que quiserem com isso. Alguns podem dizer que isso não é verdade, e tudo bem. Você pode discordar, tudo bem também. Pode estar certo e eu errado. Contudo, não busco trazer consolo e esperança.
Lamentavelmente, há situações em que não há muito espaço para a esperança. Não resta muita esperança na Ucrânia. Sinto que a nossa responsabilidade, ao menos a minha como escritor e jornalista, é dizer as coisas como são. Não sou um herói, nem me comparo a George Orwell, que foi muito criticado por dizer a verdade. Mas ele é um dos modelos que sigo.
A religião está de volta?
A religião nunca se foi. Os liberais, que sempre se orgulharam de ser empíricos, críticos e de considerar os fatos, deram origem a uma nova fé. Desde então, não conseguem aceitar o horror completo de uma realidade sem Deus. E, então, buscam uma visão do ser humano como uma entidade coletiva, racionalista, que avança ao longo da história. Ou pensam que eles próprios são capazes de diagnosticar e resolver problemas. São ilusões.
Os seres humanos se agarram a ilusões ainda mais fortes quando se veem ameaçados pela realidade. Os piores são os intelectuais. Shalamov, o poeta russo sobrevivente do gulag, lembrava que nos campos de concentração os primeiros a desmoronar eram os intelectuais. O grupo seguinte que sobrevivia melhor eram os criminosos. E os que mais suportavam eram aqueles que tinham fé religiosa. Não desejo nada semelhante, mas temo que algo similar pode acontecer, caso o Ocidente sofra um grande deslocamento. A intelligentsia seria a primeira a naufragar.
Em ‘Os Novos Leviatãs’, a Rússia protagoniza muitas páginas. A guerra na Ucrânia é um desses problemas que não têm solução?
Tem sido ainda pior do que o Iraque. A invasão da Ucrânia começou como um crime contra a humanidade, depois tornou-se uma tragédia, devido à resistência dos ucranianos, e agora se tornou absurda, porque, ao final, tudo levará a um acordo de paz sujo. Muitas vidas foram perdidas e arruinadas por nada. Sim, a Rússia é um desses problemas do mundo que não têm solução. Não pode ser resolvido, apenas contido. Esta continua sendo a opção mais sábia.
A Rússia não se converterá em uma democracia de repente, porque se assim fosse, iria se desintegrar, e não queremos um Estado falido com a maior quantidade de armas nucleares do mundo. Já vimos o que aconteceu na Guerra Civil russa: massacres, doenças, fomes... Seria uma catástrofe gigantesca e agora com armas nucleares.
Desde o início, temi que finalmente os ucranianos fossem abandonados pelo Ocidente, que não teria os recursos, nem a vontade para travar uma guerra de desgaste como esta. Um acordo de paz desfavorável parece ser a coisa mais provável de acontecer. Acabaremos por aceitá-lo, mas antes viveremos horrores extraordinários.
Em ‘Os Novos Leviatãs’, defende que a história não terminou com a queda do comunismo em 1989, mas, ao contrário, ressurgiu. Os historiadores do futuro estudarão o liberalismo como uma experiência fracassada?
Não foi um fracasso total, porque durante algum tempo criou uma civilização de alto nível, com certas conquistas que podemos reconhecer. Embora, é verdade, com muitas imperfeições e problemas internos, como a exploração dos trabalhadores e a discriminação das minorias. A Europa burguesa que entrou em colapso entre 1914 e 1918 era muito melhor do que a que se seguiu: a dos genocídios, do comunismo e das limpezas étnicas.
O erro do liberalismo foi acreditar que essa civilização poderia ser universalizada, quando, na verdade, foi muito mais um acidente histórico, o produto de uma série de coincidências que não durariam para sempre. Os neoconservadores americanos, ultraliberais em muitos aspectos, também acreditaram nisso. Apoiaram a intervenção militar no Iraque e na Síria e almejaram exportar o liberalismo para a Rússia, um país que só viveu breves e fracassadas experiências liberais. Caso tal crença seja retirada dos liberais, suas vidas perdem o sentido. Nunca aceitarão. Meus livros não são escritos para os liberais, mas para os céticos.
No livro, afirma que o capitalismo ocidental nada pode fazer contra o capitalismo de Estado chinês.
O modelo chinês tem uma enorme vantagem estratégica por ser controlado pelo Estado, enquanto o capitalismo ocidental é impulsionado pelo lucro. Diz-se muito, e quase sempre se diz de forma errônea, que os Estados Unidos querem se retirar da Europa e reduzir o seu compromisso aí, e que talvez sob um novo mandato de Trump, este compromisso com a Ucrânia também pode desaparecer.
Alguns sugerem que os Estados Unidos também querem reduzir a sua presença no Oriente Médio para se concentrar em sua relação com a China. Não acredito que isto aconteça. Os Estados Unidos estão muito interconectados economicamente com a China. Os estadunidenses têm muito capital investido na China para se separarem facilmente.
Se a China entender assim, pode iniciar uma guerra que os Estados Unidos provavelmente não se atreverão a lutar?
A China é muito inteligente para iniciar uma guerra porque pode fazer basicamente tudo o que quiser sem a necessidade de recorrer a ela. Mesmo que os chineses conseguissem prevalecer em uma guerra, seria uma catástrofe humana e também política para eles. Não estou querendo dizer que o regime chinês não esteja disposto a lutar, a guerra talvez seja o único meio para obter Taiwan, como desejam. Mas há outras opções, como um bloqueio da ilha, que só tem reservas de energia para três ou quatro semanas.
Os chineses poderiam sufocar Taiwan e esperar que os estadunidenses distraídos com as suas eleições, ou por alguma perturbação interna significativa depois delas, não respondessem. Poderia ser em um momento no qual os Estados Unidos estivessem muito ensimesmados para reagir. E tudo isso sem a necessidade de um conflito total.
Não estou dizendo que um confronto não possa acontecer, mas não penso que seja inevitável. Na minha opinião, é mais provável que, com o tempo, haja algum tipo de acordo sobre Taiwan. Xi Jinping é muito corrupto e frio em sua estratégia. Os capitalistas venderão a corda com a qual serão enforcados.
A China tem os seus próprios problemas.
O regime chinês cometeu grandes erros. Por exemplo, com a gestão da covid, quando mantiveram os confinamentos durante muito tempo, prejudicando gravemente a economia. Não há garantias de que a China, a longo prazo, não se desmorone também. Os Estados totalitários têm os seus limites. E existem graves problemas internos: dívida, uma transição demográfica iminente, com o envelhecimento da população antes de o país ficar rico o suficiente para cuidar dela, bolhas imobiliárias... Sem falar na opressão e na tirania.
Apesar de tudo, contam com uma vantagem sobre o Ocidente. Como não carregam a fé liberal, quando cometem um grande erro, reconhecem, embora não publicamente, e nunca se desculpam. Xi nunca pede desculpas por nada. No entanto, trocam de política. São flexíveis e pragmáticos. Enquanto isso, o Ocidente continua repetindo os mesmos erros e gastando mais dinheiro sem mudar o enfoque.
Uma derrota de Trump nas eleições dos Estados Unidos deterá a ascensão da extrema direita populista ou apenas a adiará?
Depende de se aceita os resultados e os reconhece, mas duvido, pois parece pensar que é algo como o escolhido. Não só a extrema direita estadunidense, mas também muitos liberais estadunidenses tendem a cair em teorias da conspiração. Haverá um grande número de pessoas, talvez um terço da população dos Estados Unidos, que não aceitará o resultado. E muitos progressistas também não aceitarão, caso sejam derrotados.
Portanto, veremos um período de desordem após as eleições, e se alguma coisa for acontecer nas relações internacionais, seja em Taiwan ou na Ucrânia, o momento de maior perigo será no final deste ano ou entrando em 2025. No Reino Unido, vivemos alguns tumultos logo após Keir Starmer chegar ao poder, mas, aqui, as pessoas têm facas, não armas de fogo. Os Estados Unidos têm uma população fortemente armada. A situação pode ser muito pior, incomparavelmente pior, e isso limitaria a capacidade do Estado de enfrentar os perigos externos.
Uma das teses do seu livro é que o liberalismo se transformou em um hiperliberalismo progressista. O que chamamos de ideologia “woke” é a evolução lógica do liberalismo e não do pós-modernismo, como é comum dizer?
As pessoas que dizem que o woke provém do pós-modernismo estão erradas, embora haja uma pequena fração de verdade. Não podemos culpar Foucault pela tomada das universidades estadunidenses pelo progressismo identitário, não teve tanta influência. Isto é algo que provém do interior das sociedades liberais; é uma evolução extrema e hiperbólica dentro do próprio liberalismo.
Ao contrário da repressão da liberdade intelectual na Europa do Leste e na União Soviética, uma repressão muito severa imposta pelo governo, no Ocidente, esta repressão é autoimposta. Nos países comunistas, a repressão vinha do Estado, ao passo que no Ocidente é autoimposta pelas universidades, museus, editoras e pela sociedade civil. É incrível o nível de intolerância que agora domina o discurso nos Estados Unidos e em outros países.
Um de seus primeiros livros, ‘Liberalismo’, publicado em 1986, é uma exposição das ideias liberais que se lê como uma defesa, ainda que, é verdade, uma defesa crítica. O que aconteceu depois? Hoje, você é um liberal desiludido ou se tornou diretamente um antiliberal?
Não compartilho da visão daqueles que nos Estados Unidos pensam que todo o liberalismo foi mal. Como mencionei antes, a civilização liberal floresceu em seu tempo, ainda que não tenha sido perfeita. No entanto, nunca tive grandes ilusões. Naquele livro, defendi o que se chama de aposta liberal, mas também sabia que a civilização liberal era um produto muito frágil.
Não sou discípulo de Hobbes, mas está muito presente em Os Novos Leviatãs porque entendeu bem que a civilização não é natural, nem inevitável, mas extremamente frágil. A civilização, tal como a entendemos em termos de proteção das artes, das letras, das minorias e da luta contra a violência, é algo que sob o liberalismo sempre foi vulnerável. E agora estamos vendo isso em todo o mundo.
Após a Primeira Guerra Mundial, a Europa caiu na anarquia e na ditadura, com genocídios terríveis. Não digo que estamos vendo exatamente a mesma coisa, mas penso que a situação atual no mundo se parece mais com a de antes da Primeira Guerra Mundial do que a de qualquer outra, com uma retomada dos conflitos, tanto nacionalistas quanto ideológicos.
O que está em jogo é a civilização, que é algo raro e frágil, e pode se extinguir. No entanto, eu continuo comprometido com os valores liberais. Mesmo que a civilização esteja destinada a desaparecer, penso que devemos continuar defendendo esses valores e vivendo de acordo com eles enquanto pudermos, mesmo que seja apenas por um sentido de dever trágico.
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“O que está em jogo é a civilização, que é algo raro e frágil, e pode se extinguir”. Entrevista com John Gray - Instituto Humanitas Unisinos - IHU