08 Outubro 2024
A situação de emergência representa um maior risco para as mulheres em situações de violência de gênero. A impossibilidade de acessar anticoncepcionais ou cuidados obstétricos, e seu papel como responsáveis pela alimentação e o bem-estar da família, impõem riscos diferenciados para as mulheres. Elas adquiriram um papel estratégico na gestão de situações de emergência e sua participação é fundamental para uma futura reconstrução, segundo um relatório.
A reportagem é de Patricia Reguero Ríos, publicada por El Salto, 08-10-2024.
Em janeiro de 2024, Arwa, de 32 anos, deu à luz seu sexto filho. Fez isso em um abrigo da Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA) e sem profissionais médicos, que não puderam chegar até elas porque o local estava sob cerco do Exército de Israel. Om Ali, de 60 anos, perdeu sete membros de sua família no mesmo dia, 7 de outubro, quando sua casa foi bombardeada pelo Exército de Israel. Desde então, ela foi deslocada três vezes. Hoje, carrega uma grande responsabilidade: cuidar de seus netos em um campo de refugiados. Sem eletricidade e sem água, alimentar e vestir várias crianças é um desafio que requer caminhar longas distâncias em busca de água ou carregar lenha. Samira perdeu seus dois filhos e também sua casa em um ataque de Israel.
O sofrimento das mulheres não fica limitado a Gaza. Na Cisjordânia, uma testemunha contou que soldados israelenses trancaram sua vizinha em um quarto, arrancaram toda a sua roupa e deixaram que um cão a atacasse diante de seu marido e filhos.
São alguns detalhes testemunhais coletados no relatório Agentes da Mudança: O papel das organizações palestinas lideradas por mulheres em situações de crise, publicado nesta terça-feira, que documenta o impacto de gênero do genocídio que Israel perpetra contra a população palestina desde 7 de outubro de 2023. E é que “em toda a Faixa de Gaza e Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, Israel aplica práticas e políticas que, direta e indiretamente, afetam gravemente a capacidade das mulheres palestinas de usufruírem de seus direitos básicos”, diz o relatório.
O aumento de diferentes formas de violência machista, a perda de direitos reprodutivos básicos ou o impacto de ter a responsabilidade de realizar tarefas de cuidado em uma situação de emergência são algumas das consequências que incidem de forma específica nas mulheres. Ao mesmo tempo, elas têm um papel destacado na organização dos campos de refugiados e um grande potencial como agentes de construção da paz, algo que o relatório também destaca.
“Estamos diante de uma crise humanitária sem precedentes, ninguém estava preparado para o que aconteceu em 7 de outubro, em nenhum sentido”, avalia Kirsten Sutherland, coordenadora humanitária da Aliança-ActionAid na Espanha, que viajou para a Faixa de Gaza em agosto deste ano para conhecer a situação no local.
Sutherland explica que, embora o impacto diferenciado por gênero, idade e deficiência seja algo que se pode observar em outras crises humanitárias, no caso de Gaza existe uma particularidade que torna a situação sem precedentes. “Temos uma população totalmente encarcerada, sem escapatória das bombas, mísseis e drones que os atingem todos os dias, e um Estado que decide o que entra e o que não entra na Faixa de Gaza e usa esse poder como arma de guerra”, explica. E é que Israel limita de forma extrema a entrada de produtos básicos como alimentos, produtos de higiene ou medicamentos.
“O nível de violência de gênero cresce com as crises humanitárias, vimos isso em outros casos”, explica Kirsten Sutherland, mas os números de Gaza são “alarmantes”, afirma: em 2014, durante uma das piores ofensivas de Israel sobre Gaza, uma pesquisa estimou que 39% das mulheres haviam sofrido algum tipo de violência machista. No atual contexto de guerra, 78% das mulheres deslocadas responderam ter sofrido algum tipo de violência machista, segundo um relatório de avaliação de necessidades desta organização, de janeiro deste ano.
Desde o último ano, os ataques do exército israelense já causaram a morte de mais de 41.000 pessoas em Gaza e na Cisjordânia, deixando 95.000 feridas e quase dois milhões de deslocadas, sendo que mais de 11.200 das pessoas assassinadas eram mulheres e meninas.
Em situações de deslocamento, as mulheres enfrentam riscos ainda maiores de violência de gênero, assédio e exploração, como documentam vários estudos. Em Gaza, as sobreviventes de violência de gênero no âmbito familiar não têm acesso aos recursos necessários, como tratamentos para lesões, medicamentos e apoio psicossocial, devido ao colapso do sistema de saúde. Além disso, os serviços locais de proteção, como delegacias de polícia e abrigos seguros para mulheres, estão inoperantes, deixando as mulheres em situação de risco sem espaços seguros ou apoio. “O silêncio em torno da violência de gênero aumentou, com normas culturais e atitudes sociais que desencorajam ainda mais as mulheres a falarem sobre suas experiências e que normalizam os abusos”, diz o relatório da Aliança-ActionAid.
O acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva é essencial para a saúde e o bem-estar geral das pessoas, especialmente das mulheres, assim como para a saúde e a estabilidade das famílias e das comunidades. No entanto, em Gaza, o nível de destruição, o deslocamento forçado e o cerco imposto por Israel tornaram esse acesso praticamente impossível. Isso se reflete em vários aspectos.
No campo do cuidado obstétrico, foi documentada a falta de cuidado pré-natal e pós-natal, o que resultou em maior mortalidade entre mulheres e seus bebês. “As mulheres palestinas são forçadas a dar à luz em condições inadequadas, incluindo cesáreas sem esterilização, anestesia ou analgésicos”, diz o relatório. No âmbito da saúde sexual, o relatório destaca também a falta de anticoncepcionais e de condições adequadas para a gestão menstrual, o que coloca em risco a saúde de milhares de mulheres.
Outro impacto de gênero diferenciado está relacionado à divisão desigual das tarefas de cuidado entre homens e mulheres. Como principais provedoras de cuidados, as mulheres lutam para fornecer alimentos às suas famílias, apesar da escassez, muitas vezes priorizando o consumo de alimentos pelos seus familiares em detrimento de si mesmas. Elas são, diz o relatório, “amortecedores do choque”, algo especialmente difícil para mulheres com condições de saúde preexistentes, gestantes e puérperas.
Além disso, as mulheres que vivem nos campos de deslocados em Gaza assumiram diretamente tarefas fisicamente exigentes e que consomem muito tempo, como manter um lar em uma zona de guerra. Isso inclui carregar pesados baldes de água até suas tendas, cozinhar em fogueiras ao ar livre e assumir responsabilidades adicionais de cuidado.
Segundo o relatório, mulheres e meninas experimentam ansiedade, medo, depressão, pensamentos suicidas e transtorno de estresse pós-traumático. Além disso, há um grande impacto na construção da identidade feminina de muitas mulheres, que relatam sentimentos de perda de autoestima e confiança.
O panorama após outubro de 2023 na Cisjordânia ocupada, incluindo Jerusalém Oriental, “é caracterizado por uma intensificação das práticas discriminatórias existentes, tornando a vida das mulheres palestinas ainda mais difícil”, documenta o relatório.
Nessa região, os arrestos e detenções de palestinos por parte de Israel aumentaram drasticamente após 7 de outubro. Embora os homens sejam os principais alvos (mais de 2.200 entre outubro de 2023 e março de 2024), as mulheres também foram detidas (240 casos no mesmo período). O tratamento que essas mulheres detidas recebem pode constituir graves violações do direito internacional, conforme destaca o relatório. Em fevereiro de 2024, especialistas da ONU expressaram profunda preocupação com relatos de que as mulheres detidas foram “submetidas a tratamentos desumanos e degradantes, negadas absorventes, alimentos e medicamentos, e brutalmente espancadas”. Esse mesmo relatório destacou denúncias de que “as mulheres palestinas detidas também foram submetidas a múltiplas formas de agressão sexual, como serem revistadas nuas por oficiais do exército israelense. Pelo menos duas detidas palestinas foram estupradas, enquanto outras foram ameaçadas de estupro e violência sexual”.
Além disso, muitas áreas da Cisjordânia enfrentam incursões militares frequentes, que se intensificaram desde outubro de 2023. Essas incursões podem causar cortes de eletricidade e água, impactando diretamente as tarefas realizadas pelas mulheres.
No entanto, o relatório não se limita a detalhar o impacto da situação de emergência nas mulheres, mas também destaca o papel diferenciado das mulheres nesse contexto. “As mulheres de Gaza e da Cisjordânia demonstraram uma resiliência extraordinária, assumindo papéis de liderança e impulsionando esforços de recuperação comunitária nas condições mais difíceis”, diz o relatório.
Quando Arwa deu à luz sem médicos, algumas mulheres a ajudaram no parto e outras buscaram roupas para o bebê. Ela conta que testemunhou a cohesão e solidariedade que se manifestaram naquele momento. No relatório, explicou que mantém esperança em um cessar-fogo que lhe permita voltar para sua casa. Om Ali confia que conseguirá cuidar de seus netos e reconstruir sua casa. Samira transformou seu luto em trabalho humanitário: ela coordenou organizações para garantir serviços básicos às pessoas deslocadas, iniciou um projeto educacional e liderou uma proposta para instalação de rede elétrica.
As mulheres em Gaza foram capazes de “articular necessidades e mobilizar recursos de maneira eficiente, ao mesmo tempo que promovem processos de tomada de decisão inclusivos, levando em conta as perspectivas de todas as partes interessadas”, relata o estudo. “No entanto, suas contribuições muitas vezes são ignoradas e subestimadas nos processos formais de reconstrução e consolidação da paz”, afirma o relatório, que faz recomendações a diferentes agentes para que o futuro de Gaza e Palestina caminhe junto com a busca por uma justiça de gênero.
“Este relatório não vai, por si só, fazer justiça de gênero para as mulheres palestinas, mas temos que continuar comprometidas e continuar fornecendo informações que possam fazer parte dessa luta”, diz Kirsten Sutherland.
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Assim o genocídio de Israel sobre Gaza impacta as mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU