18 Setembro 2024
"A remissão festiva das penas temporais, assim como a remissão pontual de dívidas, pressupõe que haja uma experiência ferial tanto da pena temporal quanto da dívida. Se eu não sei que tenho dívidas, por que deveria me alegrar com sua remissão? Somente o peso cotidiano da dívida me faz regozijar com sua remissão", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado no seu blog Come Se Non, 17-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como muitas vezes acontece, a inércia da tradição é um grande rio, carregando consigo água límpida, água turva e lama. A água límpida da misericórdia se torna opaca e deixa apenas lama, não quando se humaniza, porque é isso que deve ser, ou seja, humanidade reconciliada, mas quando introduz automatismos e pretensões formais e burocráticas, desprovidas de verdadeira justificativa.
O fato de o Jubileu ser uma intensificação da misericórdia, da qual vive a Igreja e cada fiel, é, sem dúvida, historicamente, um fato inegável a ser zelosamente mantido. Mas as formas que essa intensificação assumiu ao longo dos séculos podem encobrir, ou mesmo obscurecer, esse mesmo elemento original e insubstituível. O fato de o tempo ser atravessado pela benevolência de Deus é uma das verdades fundamentais que a fé cristã proclama e reconhece. A forma como isso pode ser dito e praticado hoje não pode garantir a evidência intangível das formas históricas.
Tentarei mostrar, muito brevemente, os pontos delicados dessa tensão, quando tentamos aplicá-la às “indulgências”.
a) Uma intensificação da experiência de misericórdia a cada quarto de século (1975, 2000, 2025) implica uma possibilidade de “perdão”, que, no caso das indulgências, não diz respeito ao pecado, mas à pena. Isso pressupõe que a diferença entre “remissão da culpa” e “remissão da pena ” seja clara para o cristão. Entretanto, essa diferença, que parece doutrinária, é na verdade uma diferença histórica. Sinaliza o fato de que, na experiência eclesial por um longo período em que a reconciliação se referia contemporaneamente à culpa e à pena (porque exigia que, para a absolvição da culpa, as obras penitenciais tivessem de ser cumpridas integralmente) seguiu-se um período que antecipou a remissão da culpa em relação à remissão da pena. Já estou absolvido do pecado, mas ainda tenho que responder com o trabalho da boca, do coração e do corpo: tenho que mudar linguagem, sentimento e ação. Esse entendimento, que muda profundamente ao longo dos séculos, chega ao Concílio de Trento, onde, embora permaneça claro que o sacramento da penitência é um “batismo laborioso”, prevalece a ideia de uma eficácia “ex opere operato” na recepção católica, tendendo cada vez mais a desertificar a experiência das obras penitenciais. Esse fenômeno, que se acentuou nos últimos dois séculos, e que se enrijeceu especialmente com a codificação canônica do início dos anos 1900, tornou quase impensável o conceito de pena temporal. É, portanto, a própria tradição católica que, em seu desenvolvimento, corroeu o terreno no qual a pena temporal é justificável, como pré-requisito para sua remissão.
b) Um fato interessante é que, precisamente por causa desse desenvolvimento, uma vez que as indulgências não mais desfrutam dessa evidência primária e vital da “pena temporal”, ou seja, da complexa elaboração da resposta ao dom do perdão, como parte constitutiva do sacramento da confissão, então foi fácil pensar que a “pena temporal”, cuja remissão é pedida, seria aquela que diz respeito aos mortos. O fato de as indulgências estarem vinculadas ao “sufrágio” é um fato histórico que, no entanto, esbarra em uma representação um tanto trabalhosa: isto é, com a convicção de que a pena temporal diz respeito exatamente àqueles que estão fora do tempo, como são os mortos. Com os quais permanecemos em comunhão, justamente graças à comunhão dos santos, mas que não têm a temporalidade como uma característica peculiar. O que a doutrina clássica afirma, ou seja, a diferença entre a morte individual e o juízo final, como “espaço temporal de purgatório”, continua sendo uma concepção marcada pela projeção da temporalidade dos vivos sobre a intemporalidade dos mortos. A morte individual é diferente do juízo final apenas para quem sobrevive. O defunto já está no cumprimento do tempo. É por isso que o fato de podermos atribuir aos mortos uma pena temporal, que não conseguimos mais pensar para os vivos, parece um paradoxo digno de reflexão.
Por outro lado, a convicção de que agora as indulgências já não dizem respeito primariamente aos vivos, mas aos mortos, também emerge claramente do texto da última Bula: “Assim, a Indulgência Jubilar, em virtude da oração, destina-se de modo particular a todos aqueles que nos precederam, para que obtenham plena misericórdia.”. (Spes non confundit, 22). Mas como podemos atribuir pacificamente aos falecidos o que temos dificuldade para conceber para os vivos?
c) Qual é a fonte dessa possibilidade eclesial de “remissão da pena”? A tradição utiliza dois argumentos. Por um lado, aparece como um aspecto que deriva do “poder das chaves”. Desse ponto de vista, a indulgência pode ser reduzida a um “ato administrativo”, que, nas categorias usadas na Idade Média, não depende do “postestas ordinis”, mas do “potestas iurisdictionis”. Essa redução administrativa da remissão da pena cria uma espécie de “miragem”, que no deserto das obras penitenciais pode causar muitos danos. A miragem é a possível separação administrativa entre a remissão da pena e a remissão da culpa. Essa distinção se tornou uma cisão e uma remoção da relação entre culpa e pena e espalha atitudes muito arriscadas: por um lado, simplifica a remissão do pecado e, por outro, ilude sobre a facilidade festiva da remissão da pena, que só faz sentido (como festa) no horizonte de uma feira laboriosa de resposta humana à graça de Deus. Por essa razão uma releitura da indulgência como “oração da Igreja”, apareceu desde meados do século XX como uma leitura diferente, que em parte resulta aceita também pelo Magistério, mas que não consegue superar completamente os curtos-circuitos teológicos e pastorais, que tendem a burocratizar o ato, tratando-o quase como um “sacramento” autônomo.
Uma espécie de “oitavo sacramento”, quase um sacramento da pena. Mas não se trata de um sacramento, mas apenas de um sacramental. É iniciativa eclesial de oração, não ato formal de santificação.
d) O último ponto que merece atenção talvez seja o mais amplo: isto é, que concepção da penitência sacramental é favorecida por uma leitura meramente administrativa das indulgências? Há um nó profundo aqui, que já chamamos de “burocratização” do sacramento. Se o sacramento for deslocado inteiramente para o lado do dom da graça e perder a consciência da dimensão “cooperativa” da graça do perdão, ou seja, do trabalho da liberdade envolvida no sacramento, então as “penas temporais” se tornam um mero “resíduo”, do qual se fala a cada 25 anos, exclusivamente na forma paradoxal de sua remissão: só se fala delas quando desaparecem.
Se falarmos em “fazer penitência” somente por ocasião do “cancelamento” da pena, na verdade não sabemos mais do que estamos falando, e também alimentamos com essas indulgências “pontuais” o mesmo formalismo que é sustentado por um sacramento da confissão ordinariamente elaborado sem o trabalho da liberdade, como puro dom da graça. Assim, o simples dom da absolvição do pecado vem confirmar o simples dom da absolvição da pena: ambos, porém, são pensados em abstrato, de forma imediata e sem uma dimensão processual. Essa tradição, assim deformada, merece uma revisão completa e profunda.
A remissão festiva das penas temporais, assim como a remissão pontual de dívidas, pressupõe que haja uma experiência ferial tanto da pena temporal quanto da dívida. Se eu não sei que tenho dívidas, por que deveria me alegrar com sua remissão? Somente o peso cotidiano da dívida me faz regozijar com sua remissão. Da mesma forma, não é possível não ter nenhuma experiência das “obras penitenciais” e depois se alegrar com sua remissão. Isso vale para os vivos e ainda mais para os mortos. Há aqui um descompasso entre a doutrina teológica, a palavra do Magistério e a experiência dos fiéis que não pode ser resolvido fazendo de uma contradição da experiência um objeto de fé. Tampouco pode acontecer que sejam os regulamentos da Penitenciária Apostólica a tomar o lugar da nossa experiência: essa não é uma questão em que possa haver suplência eclesial, nem é possível que o laborioso processo da mudança pessoal possa ser reduzido a um procedimento meramente exterior de remissão.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Jubileu e indulgências: uma difícil releitura em tempo festivo do tempo laborioso. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU