04 Setembro 2024
“A hostilidade pública entre Lula e o agronegócio mascara uma afinidade mais profunda. Lula nunca questionou seriamente as profundas hierarquias do setor agrícola brasileiro. Em vez disso, promoveu o modelo corporativo existente enquanto tentava utilizar os seus benefícios para melhorar gradualmente a vida das classes trabalhadoras. Os proprietários de terras têm se beneficiado sistematicamente da perspectiva ganha-ganha do lulismo. O PIB agrícola aumentou nada menos que 75% durante os primeiros mandatos de Lula, e as concessões recentes demonstram o seu compromisso contínuo em promover o crescimento do setor”. A análise é de Tyler Antonio Lynch, em artigo publicado por Jacobin, 29-08-2024. A tradução é do Cepat.
Tyler Antonio Lynch, mestre em Política e Estudos Internacionais pela Universidade de Cambridge. Escreve no Crooked Places.
Em setembro de 2023, o Brasil, o maior exportador líquido mundial de produtos agrícolas, anunciou a maior colheita de cereais de sua história. Os agricultores produziram impressionantes 322 milhões de toneladas de milho, soja e trigo, segundo o chefe de estatísticas agrícolas do governo, 50,1 milhões a mais que no ano anterior. Durante o primeiro ano de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente, o enorme setor agroindustrial brasileiro nunca tinha sido tão produtivo.
Mas as safras recordes não fizeram com que Lula ou o seu Partido dos Trabalhadores (PT) se sentissem confortáveis com o setor. Este se opõe tenazmente aos mandatos ambientais e sociais de Lula, desde a conservação da Amazônia até a redistribuição de terras. Com um Congresso dominado por partidos de direita firmemente aliados ao agronegócio, apaziguar o campo para alcançar objetivos sociais mais amplos segue sendo um dos principais desafios de Lula. Seu programa redistributivo está por um fio.
A condição do Brasil como um dos países mais desiguais do mundo fica evidente no seu setor agrícola. Apenas 3% da população brasileira possui dois terços das terras cultiváveis, enquanto 50% das pequenas propriedades estão concentradas em apenas 2% desse território. Embora gigantes da alimentação e da energia como a Cargill e a Raízen façam colheitas recordes, metade da população rural brasileira é pobre. Cerca de 4,8 milhões de famílias rurais estão sem terra alguma. Não é de admirar que o agronegócio continue tão conservador e resista inclusive a reformas moderadas de suas práticas trabalhistas e ambientais.
O agronegócio viveu sua época de ouro sob o governo de Jair Bolsonaro. Depois que a extrema-direita brasileira derrubou o Partido dos Trabalhadores em 2016, o setor dominou o Congresso, obteve polpudos subsídios, ditou diretamente a política agrícola e reprimiu violentamente quaisquer tentativas de reforma. Quando o PT retornou ao governo em 2022, Lula herdou um Estado que tinha sobrecarregado o poder dos agrocapitalistas a patamares inimagináveis.
Esse poder não foi desmantelado. Enquanto Lula ocupa a presidência e o lobby do agronegócio domina o Congresso. A chamada “bancada ruralista” tem 374 dos 594 deputados e senadores no Congresso, e é uma oponente firme. Como salienta André Singer na New Left Review, o agronegócio está ansioso para restabelecer um governo de direita disposto a atender às suas políticas preferidas: “mais armas, menos impostos sobre o agronegócio e uma reversão sustentada dos direitos dos trabalhadores, da proteção ambiental e da demarcação de territórios indígenas”.
A agricultura é uma das principais linhas de fratura do governo de Lula. À sua direita, o poderoso grupo do agronegócio opõe-se a qualquer proteção trabalhista ou ambiental que reduza os seus lucros. À esquerda de Lula, movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pretendem pressionar o governo a agir com mão forte junto aos grandes proprietários e aprovar a reforma agrária. Lula, num precário ponto intermediário, procurou dialogar com os dois polos.
Ambos os lados continuam a ser fundamentais para a visão socioeconômica de Lula: o agronegócio como um pilar essencial da economia brasileira e o MST como o maior movimento social da América Latina e um antigo aliado do PT. O governo Lula não satisfez plenamente nem os latifundiários nem os sem terra, ao mesmo tempo que ofereceu a ambos concessões suficientes para evitar que rompessem completamente com o PT. Este incômodo equilíbrio de forças esfriou a luta tripartite entre governo, agronegócio e trabalhadores rurais a ponto de levá-la a um impasse insatisfatório para todos.
Desde o início da campanha eleitoral em 2022, Lula reconheceu a importância de acalmar os temores do agronegócio diante de um governo de esquerda. Quem pensava que trataria o agronegócio “de forma ideológica”, garantiu Lula ao setor, se enganava.
Ele fez nomeações políticas importantes pensando no agronegócio ao escolher um vice-presidente, Geraldo Alckmin, com laços profundos com o setor. O Ministério da Agricultura foi entregue ao ex-magnata da soja Carlos Fávaro, dando continuidade a uma longa tradição de colocar pessoas do setor à frente da política agrícola. Lula também demorou para substituir os burocratas nomeados por Bolsonaro para o Incra, o órgão estatal encarregado de fazer a reforma agrária, fato que desencadearia a discórdia com o MST poucos meses após seu segundo governo.
Concessões ainda maiores apareceram através de enormes subsídios estatais. Em junho de 2023, foi lançado o maior plano de financiamento agrícola da história do Brasil: 364 milhões de reais, que superaram em quase um terço os orçamentos de Bolsonaro. Estes fundos foram acompanhados de taxas de juro muito favoráveis e de incentivos para que os agricultores utilizassem métodos agrícolas ecológicos. Para o agronegócio, o saldo final sempre esteve acima das diferenças ideológicas. “Eles sabem que, do ponto de vista econômico, não têm problemas conosco”, disse Lula à imprensa.
No centro destas políticas está a visão do PT da “agricultura moderna”: uma versão mais ordenada do sistema agrícola industrial orientado para a exportação que dominou o Brasil rural durante décadas. Sem alterar as estruturas fundamentais da propriedade da terra e da produção de monoculturas, o PT pretende reformar as práticas mais atrasadas do setor do ponto de vista ambiental e social para transformar o Brasil numa superpotência agrícola elegante e sustentável. As práticas recentemente toleradas pelo governo Bolsonaro – desde o trabalho forçado e o desmatamento até a apropriação de terras – são agora um passivo para um setor agrícola estável.
Talvez o melhor exemplo de “agricultura moderna” seja a intenção de Lula de transformar o Brasil num importante exportador de biocombustíveis. O governo pretende duplicar a produção de energia verde, principalmente através do etanol de cana-de-açúcar, a fim de arrecadar 10 bilhões de dólares em títulos verdes em Wall Street. Esta nova ênfase na agricultura sustentável segue os princípios clássicos do lulismo: perseguir o crescimento dentro de limites, para que todos ganhem. Se as reformas não forem feitas, o Brasil deixará de ser atraente para o capital transnacional. “A agricultura sabe que se essa agenda não for aprovada”, concluiu o ministro da Fazenda Fernando Haddad, “perderá o mercado internacional”.
Ao defender a proteção ambiental e social como condições necessárias para o crescimento e o comércio contínuos, o governo Lula tenta aproveitar as vantagens naturais do setor agrícola. Na verdade, o agronegócio brasileiro não é um monólito. O PT percebe um fosso crescente entre os agricultores mais tradicionais, bolsonaristas, agrupados no coração agrícola do Brasil central, e os defensores de uma “agricultura consciente” mais inclinados à reforma, e está tentando conquistar estes últimos. Ainda não se sabe se os apelos por um crescente prêmio global de sustentabilidade conseguirão atrair parte significativa do agronegócio.
Os esforços de Lula para restaurar as proteções ecológicas e pró-indígenas na Amazônia pós-Bolsonaro sugerem que será difícil alcançar grandes vitórias com o agronegócio. O agronegócio – especialmente a pecuária – é uma das principais causas de desmatamento na região amazônica, e a “bancada ruralista” tem apoiado leis que liberam a região à pecuária, à mineração e à grilagem de terras. Até as vitórias da agenda de sustentabilidade de Lula demonstram a dificuldade de pressionar o lobby agrícola. Embora as leis de “prazos” que restringem os direitos às terras indígenas tenham sido vetadas pelo Supremo Tribunal Federal, Lula não conseguiu impedir que fossem aprovadas nas duas câmaras do Congresso.
Em última análise, porém, é pouco provável que o agronegócio conflagre uma guerra aberta com o governo. O agronegócio precisa do Estado: os subsídios, isenções fiscais, infraestrutura e diplomacia comercial são cruciais para o funcionamento do setor. Com os lucros em jogo, não é difícil para o agronegócio ignorar as diferenças ideológicas em nome do pragmatismo político.
Para os agricultores mais conservadores, a atitude dominante, na melhor das hipóteses, é a do controle dos danos. Ainda assim, enquanto os preços globais das matérias-primas se mantiverem flutuantes, Lula tem uma boa oportunidade para realizar uma reforma gradual das práticas mais destrutivas do agronegócio sem alienar completamente o setor. Este regulamento poderá nunca ser popular entre a classe política, mas as elites agrícolas poderiam tolerá-lo se houvesse uma melhoria econômica geral.
Contudo, a trégua rural de Lula não se vê ameaçada apenas pelos beneficiários do atual paradigma agrícola, mas também por aqueles que ele desapropriou.
O dilema de Lula é frequentemente apresentado como a gestão de um governo progressista limitado pelos interesses das elites entrincheiradas, tanto nos bancos como nas empresas agrícolas. No entanto, o presidente demonstrou capacidade para esculpir um projeto político que eleva os trabalhadores sem pôr em perigo os altos escalões do capital. Ao incentivar o crescimento e colocar poucos obstáculos à acumulação de capital, o lulismo protege setores-chave como o agronegócio, deixando espaço político para medidas como a construção de moradias públicas e transferências de dinheiro que beneficiam milhões de brasileiros.
Assim, a hostilidade pública entre Lula e o agronegócio mascara uma afinidade mais profunda. Lula nunca questionou seriamente as profundas hierarquias do setor agrícola brasileiro. Em vez disso, promoveu o modelo corporativo existente enquanto tentava utilizar os seus benefícios para melhorar gradualmente a vida das classes trabalhadoras. Os proprietários de terras têm se beneficiado sistematicamente da perspectiva ganha-ganha do lulismo. O PIB agrícola aumentou nada menos que 75% durante os primeiros mandatos de Lula, e as concessões recentes demonstram o seu compromisso contínuo em promover o crescimento do setor.
Lula administrou de forma impressionante um setor agrícola fortemente de direita. Contudo, não é o governo ou a “bancada ruralista” que representam uma ameaça, mas uma terceira força. A atuação do MST nos últimos meses sugere que qualquer “solução” para o desentendimento entre Lula e o agronegócio que ignore os trabalhadores sem terra pode acabar sendo construída sobre a areia. Embora apaziguar o poderoso bloco agrário seja claramente crucial para Lula manter o poder, proteger o status quo acarreta os seus próprios riscos.
A longa relação do Movimento dos Sem Terra com o PT oferece-lhe pontos de apoio únicos. O MST não tem poder para confrontar abertamente o agronegócio, mas pode perturbar a estabilidade rural, que continua a ser a maior fonte de legitimidade de Lula aos olhos da indústria. Assim, Lula se encontra em uma situação difícil: enfrentar o agronegócio é politicamente suicida, enquanto negligenciar o MST representa o risco de ocupações de terras, bloqueios e reações populares que o governo não pode permitir.
Para o MST, a eleição de Lula criou expectativas que o governo mal consegue cumprir. Após quatro meses de mandato, os movimentos de reforma agrária continuaram a lamentar a “falta de prioridade da questão agrária”. Em março de 2023, o governo tinha feito poucas substituições no Ministério da Agricultura que herdou de Bolsonaro, com nomeações para órgãos-chave como o Incra, afundados em intermináveis negociações. Com mais de dois terços dos escritórios do Incra administrados por aliados de Bolsonaro meses depois de Lula assumir a presidência, cerca de cem mil famílias sem terra definhavam em acampamentos temporários, com poucas chances de verem a sua situação resolvida.
Incomodado com a lentidão da redistribuição de terras, o MST lançou uma campanha nacional de protestos, bloqueios de estradas e ocupações em abril de 2023 para pressionar o governo. Embora as ocupações tenham abalado os fazendeiros em todo o Brasil, foi a decisão do MST de ocupar terras de propriedade da Embrapa, um centro estatal de pesquisas, que disparou o alarme para o governo. Um governo incapaz de impedir invasões ao seu próprio território, alertou a “bancada ruralista”, era um fardo inaceitável para o agronegócio.
Ansioso para restaurar sua credibilidade, Lula tomou medidas drásticas contra a ocupação, recusando-se a negociar até que o MST se retirasse da propriedade da Embrapa. Após uma série de reuniões do gabinete de emergência e negociações tensas, o MST encerrou a ação poucos dias depois do seu início, não querendo prejudicar ainda mais os seus aliados políticos mais próximos.
Embora desestabilizadores para todas as partes, os acontecimentos de abril de 2023 não resultaram numa vantagem clara para nenhum dos lados. O MST não está mais perto de realizar reforma agrária básica, embora tenha forçado Lula a prestar mais atenção ao assentamento de famílias sem terra e a apoiar financeiramente os assentamentos existentes. Lula lançou uma ofensiva sedutora dirigida ao agronegócio, mas nem mesmo os subsídios agrícolas recordes tranquilizaram completamente o setor.
Quanto à “bancada ruralista”, a derrocada da Embrapa deu-lhe o pretexto necessário para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de criminalizar o MST e caluniar Lula por delegação. Numa investigação esmagadoramente partidária – 23 dos seus 27 membros pertenciam ao lobby agrário –, a CPI forneceu abundante munição aos meios de comunicação da oposição. No entanto, em outubro de 2023, a investigação tinha se esgotado com poucos efeitos tangíveis. Lula aliou-se aos partidos do centro para impedir a investigação, e os líderes do MST celebraram a publicidade nacional que a CPI lhes proporcionou. “O grande perdedor foi o agronegócio”, admitiu o principal relator da Comissão.
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Lula, o agronegócio e os sem terra. Artigo de Tyler Antonio Lynch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU