26 Agosto 2024
"O convite para 'lutar para que não haja analfabetos da democracia' também foi retomado pelo Papa Francisco, quando pediu aos católicos para ter a coragem de se pensar como povo e de participar da política como bem comum, para combater a 'cultura do descarte'", escreve Nico Dal Molin, diretor da Pastoral Vocacional da Conferência Episcopal Italiana (CEI), em artigo publicado por Settimana News, 23-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A quarta monografia de 2024 de Presbyteri é dedicada ao tema do confronto e da responsabilidade do cristão e do sacerdote pela cidade dos homens, um tema que atravessou as reflexões da recente Semana Social de Trieste. “As comunidades cristãs, adelgaçadas nos números e desbotadas na significância, acham cada vez mais difícil se sentir parte e envolver-se na vida da cidade e nos desafios urbanos de hoje. No entanto, é na história concreta que se realiza a salvação que Jesus Cristo veio trazer, e é somente habitando e cultivando o ser humano do qual fazemos parte que encontra seu lugar a proclamação do Evangelho. Os lugares a serem habitados talvez não devam mais ser apenas aqueles do sagrado com os quais estamos acostumados, mas aqueles que as pessoas frequentam todos os dias e que são o contexto a partir do qual colocar-se à escuta e entrar em diálogo para ver e promover tudo o que o Espírito já semeou, para fazer com que cresçam juntas a vida e a comunhão”. Reproduzimos abaixo o editorial.
“É preciso atenção para não cometer o erro de confundir partidarismo com participação (...) No coração da democracia estão as pessoas, as relações e as comunidades às quais elas dão vida, as expressões civis, sociais, econômicas que são fruto de sua liberdade, de suas aspirações, de sua humanidade: esta é o eixo central da nossa Constituição”.
Essa é uma passagem da reflexão articulada proposta pelo Presidente da República Sergio Mattarella, na quarta-feira, 3 de julho de 2024, em Trieste, por ocasião da 50ª Semana Social dos Católicos Italianos. Em seguida, concluiu seu discurso com outra passagem altamente sugestiva:
“Lutar para que não haja ‘analfabetos de democracia’ é uma causa primária, nobre, que diz respeito a todos nós. Não apenas aqueles que detêm responsabilidades ou exercem o poder. Por definição, a democracia é um exercício de baixo, ligado à vida de comunidade, porque democracia é caminhar juntos. Desejo a vocês, e a mim, que sejamos numerosos a nos encontrar nesse caminho”.
O saldo da Semana Social de Trieste pode ser resumido em uma única palavra: participação. Nas assembleias plenárias e nos workshops, nas mesas redondas das “praças da democracia” no centro da cidade e entre os estandes das “Aldeias de boas práticas”, o que imediatamente se destacava eram as muitas presenças, especialmente os muitos rostos jovens, que quiseram participar em primeira pessoa no empenho de se sentir no centro dos processos de participação, em um momento complexo e delicado como o que estamos vivendo.
O convite para “lutar para que não haja analfabetos da democracia” também foi retomado pelo Papa Francisco, quando pediu aos católicos para ter a coragem de se pensar como povo e de participar da política como bem comum, para combater a “cultura do descarte”.
Na entrada do Centro de Congressos havia uma obra gigantesca que resumia bem o sentido de “participar”. Era uma enorme toalha de mesa, com 90 metros de comprimento por quase dois metros de largura, que havia sido estendida na Piazza Unità d'Italia em 11 de abril passado para um grande almoço em companhia: uma metáfora original para dizer que participar significa, antes de tudo, criar laços, tecer vínculos de histórias familiares. Nesses pedaços de tecido unidos como uma colcha de retalhos, cada um dos quase 2.000 estudantes das escolas italianas e eslovenas escreveu algo: alguns escreveram seu nome, outros um slogan que resume algum aspecto do que significa “participar”.
Às margens da conferência em Trieste, li com interesse algumas reflexões do ex-secretário geral da CISL, a Confederação dos Sindicatos de Trabalhadores Italianos, Savino Pezzotta.
O que aconteceu em Trieste foi um momento particular em que se percebeu claramente a necessidade de proximidade e conexão por parte da comunidade cristã com a realidade da “polis”, ou seja, com a vida real de nossas cidades. Em um contexto em que as igrejas estão se esvaziando e a frequência aos sacramentos está cada vez mais reduzida, sentiu-se a necessidade de ir além da sensação de um cristianismo em dificuldade e de uma Igreja em aflição, devido a questões internas e externas, como abusos, negociatas e o sempre presente clericalismo.
Ficamos diante de uma realidade viva da comunidade cristã, desejosa por contribuir para o sentir-se Igreja e para construir uma sociedade mais humana. Agir com fé em um contexto político e social, cada vez mais atravessado pelo pluralismo moral, não é simples e não é fácil. É uma constatação bastante desanimadora, que se percebe todos os dias no ministério pastoral. Viver como crentes hoje significa ser pessoas livres, que sabem como evitar o isolacionismo e a criação de colônias e lobbies autorreferenciais, como vemos em muitos, demasiados níveis da vida social.
Savino Pezzotta escreve: “Pensar e agir em prol de uma Itália entendida como uma comunidade hospitaleira, vital e inclusiva requer a superação da lógica patriarcal, masculinista, colonialista e clerical”.
Os desafios, que vêm do fato de sentir-se parte viva da “cidade”, são imensos, pois estamos diante de um mundo dominado pela tecnologia, pelos algoritmos e pela cada vez mais difundida lógica econômica e financeira. Nesse contexto, a Igreja como comunidade ainda pode ser uma provocação para estimular uma busca profunda pelo respeito à dignidade humana, pelo cuidado do homem e do planeta em que vivemos? Nisso se mensuraria um caminho real e concreto de sinodalidade.
Vocês se lembram da 5ª Conferência da Igreja Italiana em Florença, em 2015: “Em Jesus Cristo, o novo humanismo”? Uma experiência de reflexão e compartilhamento esquecida cedo demais!
Na catedral de Santa Maria del Fiore, inspirando-se no Juízo Final pintado na cúpula por Giorgio Vasari e Federico Zuccari, no qual dois anjos mostram o pergaminho do “Ecce homo”, o Papa Francisco disse: “Sabemos que a melhor resposta à conflitualidade do ser humano da famosa frase de Thomas Hobbes ‘homo homini lupus’ é o ‘Ecce homo’ de Jesus que não recrimina, mas acolhe e, pagando pessoalmente, salva”.
E acrescentou: “Lembrem-se também de que a melhor maneira de dialogar não é falar e discutir, mas fazer algo juntos, construir juntos, fazer projetos: não sozinhos, entre católicos, mas junto com todos aqueles que têm boa vontade. E sem medo de fazer o êxodo necessário a todo diálogo autêntico".
Pode haver um mandato a ser acolhido para nós, padres e para as comunidades cristãs? Para não anular o esforço feito em Trieste e a carga motivacional derivada daqueles dias, seria importante, se não necessário, que em nível de base, nas paróquias e nos territórios, fossem ativados fóruns de cidadania abertos a todas as pessoas de boa vontade.
São oportunidades, já experimentadas no primeiro biênio do caminho sinodal dedicado à escuta (2021-2023), para coletar histórias e desejos, sofrimentos e recursos também daqueles que vivem às margens da comunidade cristã, mas que, de qualquer forma, se sentem interpelados pelo desejo de “participar”. Esses locais poderiam promover o diálogo, a pesquisa e a participação, abordando e discutindo as decisões das instituições e propondo projetos de intervenção.
Posso expressar melhor isso com as palavras de Savino Pezzotta: “Hoje há uma necessidade urgente de um forte empenho para trazer para o centro do debate político, social e cultural (e também eclesial) duas dimensões fundamentais para a renovação do sistema democrático e da economia: a ecologia integral e o princípio da fraternidade”. Por meio desses fóruns, deveria nascer uma maneira de viver juntos o espaço público, sentindo-o como uma dimensão menos estranha às nossas vidas como cristãos e como guardiões da vida das comunidades cristãs.
Há alguns anos, encontrei um pequeno volume que recordava a figura e o ensinamento do teólogo e pároco de Bergamo, Don Sergio Colombo: Sergio Colombo uomo della parola. Falecido em 2013, aos 71 anos de idade. Pe. Sergio foi pároco de Bérgamo, na paróquia de Redona, e era certamente um homem com uma visão pastoral inovadora, capaz de intuições originais. Ele costumava dizer que toda pessoa batizada “não é um cristão de Igreja, mas um cristão no mundo”.
Comentando o livro de Jonas, naquele relato identificava os dois arquétipos fundamentais da “cidade” atual: Nínive, a cidade secularizada, e Társis, a cidade-refúgio (ambas perigosas). E argumentava apaixonadamente que a pertença religiosa não é o objetivo do cristão, mas que seu empenho essencial é “formar o homem”. A fé não propõe um modelo social e político definido, e isso pode fazer com que o cristianismo pareça fraco e fortes outras religiões mais tranquilizadoras.
“A Igreja não deve e não pode rivalizar com as religiões da certeza (como o Islã) nem dar vida a uma sua própria contrassociedade (como a cidade de Társis). O cristianismo é obra de um pequeno rebanho, uma semente, que guarda o valor divino do homem e deve ser espalhada. O cristão influi na ‘cidade’, mas também vice-versa”.
No final de sua vida, o Pe. Sergio resumiria a posição que havia amadurecido na comunidade de Redona: a política é uma das responsabilidades humanas tanto mais altas quanto menor for hoje sua estima; a fé tem um patrimônio antropológico que pode ser gasto em projetos históricos, o que requer a formação de leigos, diálogo e mediação; o fim da unidade política não dispensa os católicos de dar razão das suas escolhas diante da fé e de esclarecer o método.
Participar: é importante partir desse pressuposto que nos ajuda a ter motivações fortes e válidas, em um contexto generalizado de liquidez, de paixões tristes e de desorientação coletiva. Não podemos nos resignar a nos sentirmos inelutavelmente condenados ao niilismo e ao fatalismo.
Como voltam a ser atuais as palavras do Salmo 40: “Esperei com paciência no Senhor, e ele se inclinou para mim, e ouviu o meu clamor. Tirou-me dum lago horrível, dum charco de lodo, pôs os meus pés sobre uma rocha, firmou os meus passos”.
As verdadeiras coisas da vida sempre nascem de dentro, porque somente na interioridade e no silêncio podem crescer e amadurecer sem serem forçadas ou manipuladas. Caminhar juntos pelas veredas da esperança não é apenas um empenho do próximo ano jubilar, é uma maneira de “participar” da vida da cidade, trazendo algo único e essencial.
(1) O caminho da convicção: a esperança só se torna possível e vivível se nós mesmos, em primeiro lugar, acreditarmos ser assim. Quantas pessoas perdem a esperança justamente porque perdem o caminho para a interioridade do coração. Quantos dizem desconsoladamente: “Esta é minha vida... Sempre foi assim e não posso fazer nada para mudar meu destino”. E desistem. A verdadeira vítima, na vida, é apenas quem se resigna: vítima de si mesmo, de sua falta de confiança, de sua desesperança.
(2) O caminho do acolhimento, que cura as feridas de quem não se sente entendido, aceito e, sobretudo, amado. Um grande psicanalista e psicoterapeuta contemporâneo, Sacha Nacht, usa uma imagem que me impressionou profundamente: “Se alguém lhe procura para falar de suas ansiedades e angústias, não o classifique imediatamente, não o julgue, não o enquadre dentro de seus conceitos ou sensações. Em vez disso, seja para ele como... ‘uma poltrona confortável’ na qual ele possa se sentar, relaxar, sentir-se realmente à vontade, acolhido e ouvido".
O presbítero, e com ele a comunidade cristã, também são chamados a ser como uma “poltrona confortável”. Quando se vivem momentos de sofrimento, de melancolia, de tristeza - e a vida, nesse sentido, não dá descontos a ninguém -, esses momentos são cargas insuportáveis se forem combinadas com o peso da solidão. Aqueles que estão sozinhos dificilmente conseguem encontrar dentro de si a força para reagir e buscar, para se levantar e recomeçar; em outras palavras, a força para ter esperança.
(3) O caminho do companheirismo: não apenas e não tanto pelo fato de que “juntos é bom”, mas porque juntos o coração humano encontra a energia para superar tantos medos. É realmente importante encontrar quem aceita compartilhar a própria chama de esperança para caminhar juntos, sincronizando o ritmo do passo, mesmo que seja pesado, vacilante e incerto. Esse é o caminho dos corações simples, daqueles que aprenderam, não sem esforço, a “sofrer tendo esperança”.
Olhemos ao nosso redor: há testemunhos preciosos e cotidianos dessa esperança, em que cada uma de nossas vidas pode buscar recurso.
[1] S. Mattarella, Discurso na cerimônia de abertura da 50ª Semana Social dos Católicos na Itália, feito no Centro de Convenções Generali em Trieste, 3 de julho de 2024.
[2] S. Pezzotta, La settimana dei cattolici a Trieste. Riflessioni, publicado no blog La barca e il mare. Chiesa e dintorni, 12 de julho de 2024.
[3] Francisco, O novo humanismo em Cristo Jesus, discurso aos representantes da V Convenção Nacional da Igreja Italiana, Catedral de Santa Maria del Fiore, Florença, 10-11-2015.
[4] Pezzotta, ibid.
[5] M. Chiodi, Sergio Colombo uomo della Parola. Antropologia, teologia morale e pratica pastorale, EDB, Bolonha 2019.
[6] Cf. M. Benasayag, G. Schmit, L'epoca delle passioni tristi, Feltrinelli, Milão 2005.
[7] Sacha Nacht, psicanalista romeno, nascido em Bacau em 1901 e falecido em Paris em 1976, de uma família de origem judaica que se converteu à religião ortodoxa. Sendo judeu, teve de deixar Paris durante a guerra; retornou em 1949, ano em que sucedeu a J. Leuba na presidência da Société Psychanalytique de Paris.
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Em diálogo com a cidade. Artigo de Nico Dal Molin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU