14 Agosto 2024
Quando eu era bispo residente, por ocasião das férias de verão, sugeria aos seminaristas uma lista de autores e de leituras. Os livros ajudam-nos a ruminar. O papa cita justamente o medieval Guilherme de Saint-Thierry, que usava essa metáfora.
O comentário é de Vincenzo Bertolone, SdP, bispo emérito de Catanzaro-Squillace, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 13-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os historiadores das religiões usaram durante décadas um rótulo que unifica as três grandes e mais difundidas religiões monoteístas mediterrânicas (judaísmo, cristianismo, Islã): religiões do Livro. Trata-se de uma feliz denominação unificadora, utilizada, entre outros, pelos especialistas desde os anos 1990 [1].
Se, como escreve hoje o Papa Francisco, “ao lermos um texto literário, colocamo-nos na condição de ‘ver com os olhos dos outros’” [2], não será precisamente esse um critério relevante para o diálogo inter-religioso mediterrânico?
Judaísmo, cristianismo e Islã – precisamente as comunidades do Livro (Ahl al-Kitab) – são os três ramos de uma única e grande tradição abraâmica, compartilhando a fé na revelação de um Deus único, transcendente e, em sua essência, incognoscível apenas por meio dos caminhos da percepção e da razão.
Para escapar das armadilhas de um renascimento idólatra moderníssimo, que faz de Deus um ente entre os entes, confundindo-o na história e na sociedade e, por outro lado, de uma transcendência levada ao extremo sem mediações teofânicas, quase como um niilismo desesperador [3], é preciso redescobrir a relevância do livro e de todas as outras formas de comunicação social inter-humana [4].
A cultura judaica considera central o Livro da aliança: “Pegou o livro da aliança e o leu para o povo. Eles disseram: ‘Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos’” (Ex 24,7).
E os cristãos fecham suas Escrituras sagradas, lendo a profecia do vidente de Patmos: “Vi depois um livro na mão direita daquele que estava sentado no trono. Era um livro escrito por dentro e por fora, e estava lacrado com sete selos” (Ap 5,1).
Além disso, “Alcorão, em árabe al-qur'ãn, significa ‘leitura’: uma leitura em voz alta, mais próxima da ideia de proclamar ou de pregar do que de ler em seu sentido mais corrente. Essa leitura é também um texto, um livro ou, melhor, o livro por excelência (al-kitâb)” [5].
Além disso, como já afirmava a Comissão Teológica Internacional, o Livro torna-se o ponto crucial para abordar a questão principal, não apenas do cristianismo católico:
“Atualmente, a questão primária já não é se os homens podem alcançar a salvação ainda que não pertençam à Igreja Católica visível; tal possibilidade é considerada como teologicamente certa. A pluralidade das religiões, da qual os cristãos são cada vez mais conscientes, o melhor conhecimento dessas mesmas religiões e o necessário diálogo com elas, sem deixar em último lugar a mais clara consciência das fronteiras espaciais e temporais da Igreja, nos interrogam sobre se se pode ainda falar da necessidade da Igreja para a salvação e sobre a compatibilidade desse princípio com a vontade salvífica universal de Deus” [6].
É por isso que é relevante o objetivo da recente “Carta pontifícia sobre o papel da literatura na educação”, que reafirma oportunamente o “valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal” [7]. Em suma, é preciso reaprender a selecionar as nossas leituras com abertura, surpresa, flexibilidade, deixando-nos aconselhar, mas também, com sinceridade, tentando encontrar o que precisamos em cada momento da nossa vida.
Quando eu era bispo residente, por ocasião das férias de verão, sugeria aos seminaristas uma lista de autores e de leituras. Os livros, como se lê em outra parte da carta pontifícia, ajudam-nos a ruminar. O papa cita justamente o medieval Guilherme de Saint-Thierry, que usava essa metáfora [8].
Mas aqui gostaríamos de retomar a metáfora análoga do bispo Cesário de Arles, que continuamente solicitava seus coepiscopos dos séculos V-VI, padres e fiéis, muitas vezes iletrados, a lerem e a relerem com mais frequência a leitura divina; ou, se não formos capazes de ler por conta própria, pelo menos nos preocupemos em escutar quem a lê de boa vontade e com frequência.
Aqui e acolá, Cesário assimila a leitura do texto sagrado e das homilias do bispo a uma ruminação, como nos lembra uma recente versão italiana dos seus primeiros 80 “Sermões ao povo”, que eu tive a fortuna de ler recentemente e que nos lembra:
“Conservem estas coisas, ruminem-nas, alimentem-se delas; não se afaste da boca de vocês o que é confiado à memória. A memória do ser humano é semelhante ao estômago de um animal. Vocês sabem que, na Lei, são chamados de imundos aqueles animais que não ruminam; aqueles que ruminam, por sua vez, são puros, como todos aqueles que têm o casco bipartido, pois isso representa o discernimento do verdadeiro e do falso. O casco bipartido representa o poder de discernir o que é certo do que é errado; a ruminação, por sua vez, refere-se a quem reflete sobre o que escutou e guardou na memória. Ora, de fato, aquilo que nós comemos é enviado à nossa memória, como a um estômago. Em vez disso, o que faz o boi quando rumina? O que havia sido jogado na manjedoura e colocado no estômago, ele o remete à boca e o saboreia com uma mastigação prazerosa. Disse isso para recomendar que vocês não sejam como um animal imundo. Este recebe o alimento no estômago; mas, depois, não rumina, e todo o prazer vai embora. E de nada lhes serve aquilo que é deposto nas profundezas, se seu prazer não retorna à sua boca” [9].
Aliás, todos já conhecíamos, a partir da exortação apostólica Querida Amazonia, a paixão que o Papa Francisco tem pelos livros de literatura, em particular pela lírica. Em 2020, ele construiu um verdadeiro afresco poético com “várias expressões artísticas, particularmente a poesia”, que “deixaram-se inspirar pela água, a floresta, a vida que se agita, bem como pela diversidade cultural e os desafios ecológicos e sociais” [10] Tudo isso retomando ainda explicitamente uma convicção de Vinícius de Moraes [11] que agora volta a ser proposta: “A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz” [12].
Além disso, sobretudo para a questão do ecossistema, é central o papel da chamada poesia popular e dos poetas, cujas vozes eram explicitamente chamadas pelo pontífice de contemplativas e proféticas:
“Os poetas populares, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam” [13].
Agora Francisco, além de nos confiar que gosta muito dos “artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão” [14], nos lembra sua experiência pessoal como professor de literatura no Ensino Médio:
“Entre 1964 e 1965, quando tinha 28 anos, fui professor de literatura numa escola jesuíta, em Santa Fé. Ensinava aos dois últimos anos do liceu e tinha de fazer com que os meus alunos estudassem El Cid. Mas eles não gostavam. Pediam para ler García Lorca. Por isso, decidi: em casa, estudariam El Cid, e, durante as aulas, abordaria os autores de que aqueles jovens mais gostavam. Claro que eles queriam ler obras literárias contemporâneas; porém, à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores” [15].
Um bom livro para ler, portanto, especialmente se você gosta (mesmo que seja lido pela voz de um podcast ou por uma voz digital), é explicitamente sugerido pelo Santo Padre para o “tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos” ou mesmo para os “momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso e quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma” [16].
Um bom livro, de fato, é o melhor remédio para escapar das “poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente. Antes da onipresença das mídias, das redes sociais, dos celulares e de outros dispositivos, esta era uma experiência frequente, e quem a viveu sabe bem do que estou falando. Não se trata de algo ultrapassado” [17].
Em suma, trata-se de fazer aquilo que Gregório Magno já sugeria para a leitura das Sagradas Escrituras – sacra Scriptura cum legente crescit! [18] –: “Um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra” [19].
O Papa Francisco expressa a repetida esperança, pelo menos no que diz respeito à formação nos seminários, de que finalmente se supere “a obsessão das telas – e das venenosas, superficiais e violentas fake news –, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar dos livros que, novos ou antigos, continuam a nos dizer tanto” [20]; em suma, não se deve mais tolerar que os futuros ministros ordenados sejam “privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano” [21].
Nesse sentido, os livros – todos eles, não só os de teologia e de filosofia – podem se tornar instrumentos formidáveis para o diálogo entre fé e cultura. Albino Luciani, mais tarde Papa João Paulo I, ensinou-nos muito bem isso em Veneza. Aquele imaginativo epistolário, que reúne as cartas que o então patriarca de Veneza havia escrito - e a revista Messaggero di Sant’Antonio publicara pontualmente mês após mês, de 1971 a 1974 – eram dirigidas por Luciani a personagens históricos e míticos de todos os tempos e lugares. A agradabilidade do estilo, a sutil ironia que permeia cada página, a habilidade de transferir acontecimentos e pessoas, problemas e soluções de ontem para hoje e vice-versa, dão corpo a uma análise nada superficial daqueles anos difíceis e tortuosos.
Os personagens encontrados, tão diferentes entre si, vão de Penélope a Mark Twain, de Maria Teresa da Áustria a Fígaro, de Pinóquio a um... urso, de Péguy a Trilussa, de Scott a Hipócrates, de Quintiliano a Marconi, de Hofer a Goldoni, de Santa Teresa a Goethe, de São Bernardino a Marlowe e Chesterton, terminando no mais importante de todos, Jesus, a quem o autor escreve com tremor [22].
Além disso, em nível histórico, a missão eclesial soube desdobrar toda sua beleza, frescor e novidade no encontro com as diversas culturas, em uma polifonia sintonizada, que nada mais é do que “a polifonia da Revelação, sem a empobrecer ou reduzir quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais” [23].
Nesse horizonte, o papa recorda facilmente a referência do apóstolo Paulo ao Areópago de Atenas. Diante dos filósofos neoestoicos e neoepicuristas, ele evoca os versos dos poetas Epimênides e Arato (cf. At 17,28), mostrando como uma pessoa (um pregador e um missionário) que sabia recolher bem as sementes da poesia pagã, mais do que um fracasso, desperta em seus ouvintes, que são refinados e amantes das referências eruditas e literárias, a vontade de “ouvi-lo mais uma vez”, pelo menos no que diz respeito ao problema da ressurreição dos mortos: um tema este, que interessaria muito os estoicos da época romana, muitos dos quais morreram por suicídio ou por assassinato induzido, como ocorreu com Cícero (cf. At 17,32).
Além disso, insiste o papa, é preciso encorajar a leitura também em perspectiva científica, pois o “hábito de ler” produz “muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade” [24].
Quase abandonando a notação universal do início, o papa se detém muito em sua carta na formação dos futuros padres, para os quais se espera a edição da Ratio formationis por parte da Conferência Episcopal Italiana [26].
Ele retoma de bom grado uma feliz anotação de Karl Rahner sobre um possível “paralelo entre o sacerdote e o poeta” [27]. Em primeiro lugar, trata-se de favorecer “um Jesus Cristo feito carne, feito homem, feito história. Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a ‘carne’ de Jesus Cristo” [28], na qual se derrama plenamente sua divindade. Porém, no nível metodológico, é preciso mergulhar “no texto vivo que se tem diante de si, mais do que se fixar em ideias e comentários críticos” [29].
Desse modo, além de realizar um verdadeiro ato de discernimento em sentido inaciano [30], conseguimos “‘tocar’ o coração do ser humano contemporâneo” [31]; sobretudo, readquire-se um olhar que diminui a “incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos” [32].
Quase como um telescópio, a leitura nos impede de cair em uma “eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade. Por isso, é necessário e urgente contrabalançar esta inevitável aceleração e simplificação da nossa vida cotidiana, aprendendo a distanciarmo-nos do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar” [33].
Em particular, ela nos faz superar certas tentações ultramodernas de eficientismo radical, educando a “explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente se pode manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim” [34].
Em outras palavras, evidencia-se várias vezes “o papel que a literatura pode desempenhar na educação do coração e da mente do pastor ou futuro pastor, no sentido de um exercício livre e humilde da sua racionalidade, de um reconhecimento fecundo do pluralismo das linguagens, de um alargamento da sua sensibilidade humana e, finalmente, de uma grande abertura espiritual para escutar a Voz através de muitas vozes” [35].
Foi pelo menos a partir de Blaise Pascal e da literatura ascética moderna que se insistia, na bagagem formativa do clero, na função relevante dos livros e da literatura na sacra oratória [36].
Na formação dos futuros membros do Bocado do Pobre [congregação dos Missionários Servos dos Pobres], do qual eu faço parte, a referência literária era uma prática corrente. Em particular, o missionário e mártir padre Francesco Spoto – de cuja causa de beatificação sou o postulador e cuja finíssima intenção literária estou evidenciando [37] – não concluía uma pregação ou um texto sem fazer referência à literatura de ontem e de hoje
Em suma, nas pregações e conferências do religioso “bocadista” Pe. Spoto, o tema teológico – por exemplo, o da morte e do morrer – também era muitas vezes enriquecido com referências literárias e com breves histórias: de Policarpo, de Agostinho, de Pier Damiani e, ainda, Toth Tihamèr, cardeal Ferrari, cardeal Valentini, Barthmann, L. Olgiati, P. Claudel, Lebreton. Não só, Claudel é encontrado em muitas das anotações do Pe. Spoto para meditações e exercícios espirituais.
Com efeito, cada uma de suas intervenções verbais, sobretudo nos retiros ou exercícios, era uma corrente de citações recorrentes da Bíblia, dos Padres da Igreja, da literatura europeia e americana, da filosofia e da teologia.
Exercitar-se espiritualmente implica, de fato, concentrar-se breve e intensamente nos grandes problemas da vida eterna (meditare novissima tua, morte-juízo-Inferno/Paraíso), nos supremos interesses da alma, posta em contato, quase face a face, com Deus, Criador e Senhor absoluto da criatura humana, mesmo quando esta se sente abandonada em um remoto território do antigo Congo Belga.
Ele cita, por isso, a “literatura cristã”, recordando “o procônsul que condenou à morte o idoso bispo Policarpo no estádio de Esmirna... Sabemos... que Policarpo foi procurado pelo hierarca Herodes, que, evidentemente, utilizava os poderes ligados ao seu papel para se enfurecer contra o bispo idoso... Este zeloso oficial, porém, violava o que havia sido prescrito por Trajano, ao empreender uma busca oficial de cristãos equiparados a bandidos. As atas descrevem a multidão de pagãos e de judeus que, reunidos no estádio, clamavam pela morte dos mártires preparando a fogueira para Policarpo” [38].
Para transmitir a dramaticidade da realidade da perseguição sofrida em Biringi, o Pe. Spoto nunca deixa de se referir à literatura. Em particular, ele cita o terror descrito “por Pasternak em Doutor Jivago. Também se teme aquele que se encontra. Passam-se dias de ansiedade e de nervosismo” [39].
Nas mãos e nos lábios do Pe. Francesco Spoto, a literatura desempenhava, em suma, o papel de um quinto evangelho: um Evangelho que é construído pelas novas gerações de cristãos, tal como, enquanto isso, o próprio Mario Pomilio, em pessoa, ia ensinando em meio ao Vaticano II, por exemplo nas salas de aula da Faculdade de Teologia de Nápoles, como titular de Literatura Religiosa Contemporânea.
Não é por acaso que a Veritatis gaudium – a constituição apostólica do Papa Francisco sobre as universidades e as faculdades eclesiásticas (29-01-2018) – também estabelece, entre as disciplinas complementares opcionais da faculdade de filosofia eclesiástica, os “Elementos de literatura e das artes” [40].
Esse famoso texto papal não fez nada mais do que reiterar, também na Ratio studiorum, a recomendação explícita da então Congregação para a Educação Católica:
“Tenham-se presentes – em relação aos níveis escolares dos alunos – os aspectos cultural e estético, em conexão com as outras disciplinas e com outros veículos e formas de expressão e de comunicação – como a história, a filosofia, a literatura, a dramaturgia, as artes figurativas, a música… –, a fim de as relacionar com aquela ‘escola paralela” e muitas vezes contraposta que são os meios de comunicação de massa” [41].
Em suma, ler. Muito e bem, para si mesmo e para os outros, para hoje e para o futuro, porque, tomando emprestadas as palavras do escritor Lorenzo Marone, “a leitura e a escritura são os poderes mais poderosos de que dispomos, ampliam a nossa mente, nos fazem crescer, nos melhoram, às vezes nos iluminam e nos fazem trilhar novos caminhos, permitem-nos mudar de ideia, dão-nos a coragem para fazer o que desejamos”.
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