28 Junho 2024
Uma mulher velada, anos atrás, num campo de refugiados na fronteira entre a Croácia e a Eslovênia, enquanto chovia a cântaros e ela trocava as roupas encharcadas pelas que eu dei para ela, olhou para mim e disse: “Eu sei que em nome da minha fé são cometidas violações terríveis dos direitos das mulheres. Mas o Islã também pertence a mim". O hijab, o véu usado pelas mulheres muçulmanas como sinal de modéstia e devoção religiosa, desencadeou no debate ocidental das duas últimas décadas uma verdadeira parada de sucessos.
Enquanto para alguns é um símbolo de expressão e identidade cultural, outros argumentam que é uma forma de opressão patriarcal exercida sobre as mulheres. Algumas o usam, outras não. Algumas se definem muçulmanas feministas, outras apenas muçulmanas e reivindicam um Islã que não discrimina as mulheres, mas que se presta à política para controlar a sociedade. Entre estas últimas há mulheres que deixaram os seus países em busca de liberdades políticas que lhes foram negadas, mas precisamente em nome daquela liberdade, rebelam-se contra o preconceito que transforma temas delicados em estereótipos com o risco de torná-los uma forma diferente de controle e opressão.
Conversamos sobre isso com Asma Barlas, professora emérita e diretora do Centro para o Estudo de Cultura, Raça e Etnia do Ithaca College, de Nova York. Asma é uma pensadora paquistanesa que centrou a sua pesquisa numa hermenêutica corânica que visa desconstruir as leituras tradicionais dos textos sagrados do Islã pela ferramenta da análise textual.
A entrevista é de Widad Tamimi, publicada por La Repubblica, 21-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vamos começar pelas definições. Você se define uma muçulmana não feminista, por quê?
Sim, identifico-me como uma mulher crente, segundo a língua corânica, uma Muslimah. Isso porque minha primeira compreensão do Alcorão foi formada durante a adolescência (no Paquistão), enquanto os primeiros textos feministas que li datam dos meus trinta e cinco anos (nos Estados Unidos). Portanto, não cheguei ao Alcorão pelas lentes do feminismo. Contudo, apesar da minha percepção de que o texto do Alcorão tivesse a visão de uma igualdade de gênero e não fosse masculinista, como afirmavam os muçulmanos ao meu redor, faltava-me a linguagem conceitual para afirmá-lo até que me deparei com as obras de alguns religiosos (judeus e cristãos) e de algumas feministas laicas sobre o patriarcado. Por isso reconheço uma importante dívida intelectual por algumas contribuições das teorias feministas. Meus estudos sendo focados no Alcorão também dizem respeito ao feminismo, baseado num silogismo. No entanto, eu me pergunto por que meus estudos devam ser de fácil leitura apenas para as feministas ocidentais.
Você está sugerindo que ser feminista é incompatível com ser muçulmana?
De forma alguma! Muitas mulheres muçulmanas qualificam-se como feministas, embora, obviamente, nem todas as feministas muçulmanas são religiosas. Na verdade, há quem até questione a crença islâmica do Alcorão ser a palavra de Deus Assim, da mesma forma que não existe um único feminismo no Ocidente, também não existe um único feminismo islâmico/muçulmano. No que diz respeito às feministas que afirmam que o Alcorão privilegia os homens, receio que confundem o texto sagrado com as suas interpretações patriarcais.
Parte do meu trabalho tenta justamente explicar por que tais interpretações não são apenas questionáveis em bases textuais, mas também são teologicamente infundadas. Por exemplo, em relação à questão do privilégio masculino, o Alcorão afirma que Deus criou mulheres e homens da mesma nafs (alma), o que significa que são ontologicamente iguais. Em outras palavras, o Alcorão não descreve as mulheres como derivadas dos homens, em analogia com a narrativa bíblica da derivação de Eva da costela de Adão.
Ainda mais significativo, o Alcorão afirma que Deus é incriado, incomparável, o que sugere, portanto, sua ausência de gênero.
Qualificar-se como feminista muçulmana comporta a possibilidade de defender uma visão patriarcal do Alcorão?
Muitas feministas muçulmanas laicas apoiam as interpretações patriarcais do Alcorão por desencorajar as mulheres muçulmanas a ‘apelar’ para a sua autoridade. O seu programa parece ser aquele de secularizar o Alcorão na esperança de que isso abra o caminho para a obtenção de direitos que elas não têm nas sociedades muçulmanas. Pessoalmente, embora apoie esses direitos, especialmente a igualdade que acredito que o Alcorão confere às mulheres, rejeito a ideia de que a única maneira de os obter seja rejeitar o Alcorão como palavra de Deus. Certamente não consigo imaginar que os muçulmanos praticantes caiam nessa ideia capciosa.
Muitos muçulmanos se aproximam do Islã principalmente pela interpretação e não por uma ligação direta do texto sagrado. O cristianismo viveu uma situação semelhante antes do Concílio Vaticano II.
Sim, isso é verdade para a maioria dos textos religiosos. Para complicar as coisas quando se trata de Islã, há o fato de os muçulmanos também tenderem a fundir textos, culturas e história numa única definição de ‘Islã’.
Muitas práticas são consideradas islâmicas e nem sequer são mencionadas no Alcorão, como o corte dos órgãos genitais femininos, a cobertura do rosto para as mulheres, a decapitação e apedrejamento como punição e assim por diante.
Podemos afirmar que o Islã é susceptível a manipulações e que a sociedade é influenciada por interpretações que visam sustentar determinados interesses políticos?
Essa foi certamente a minha experiência no Paquistão, onde o processo de ‘islamização da sociedade’ coincidiu com a tomada do poder militar pelo General Zia al-Haq na década de 1970. O novo regime implementou a legislação islâmica que trouxe mudanças em vários aspectos da existência feminina.
Interpretações misóginas e chauvinistas do Islã foram impostas em todo o país e usadas como armas pelos governantes tornando-se gradualmente equivalentes à própria religião. Considero isso particularmente irritante, uma vez que o Alcorão proíbe explicitamente a constrição da fé, considerando, em vez disso, que as pessoas devem chegar a crer por sua própria vontade e que cada nafs será responsável apenas por ‘si mesma’ diante de Deus.
A interação com as Sagradas Escrituras pode fornecer resultados muito diferentes?
Todos os textos podem ser lidos de mais de uma maneira e não apenas as Sagradas Escrituras. A questão, então, é: o que torna algumas interpretações melhores que outras?
Esse é o reino da hermenêutica, teoria e filosofia da interpretação.
O que a levou a se dedicar ao estudo da hermenêutica corânica?
É a única forma que eu tinha à minha disposição para entender se havia alguma base para o fato dos muçulmanos terem chegado a ler o Alcorão como um texto que privilegia os homens quando, na verdade, o Alcorão afirma a igualdade ontológica de homens e mulheres; reconhece que as mulheres têm livre arbítrio e vontade (e, isso, no século VII!); nomeia mulheres e as indica como recíprocas tutoras.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O Alcorão está do lado das mulheres”. Entrevista com Asma Barlas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU