20 Julho 2024
“Eva virale” [Eva viral], livro de Angela Balzano, reflete sobre a crise ambiental, perspectivas transfeministas e antiespecistas.
O comentário é de Marco Reggio, ativista italiano pela libertação animal, membro do coletivo Resistenza Animale e pesquisador independente. O artigo foi publicado em Rewriters, 10-07-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tenho em mãos o livro de Angela Balzano publicado recentemente na série Culture Radicali, da Editora Meltemi. Eu li Eva Virale: la vita oltre i confini di genere, specie e nazione [Eva viral: a vida para além das fronteiras de gênero, espécie e nação] nas montanhas dos vales do Canavese, na Itália, enquanto a prosa da autora evoca insistentemente o mar.
Livro Eva Virale: la vita oltre i confini di genere, specie e nazione de Angela Balzano
O mar, como força regeneradora, como antídoto à produção humana de dióxido de carbono, como habitat de espécies antigas, especialistas no cuidado do ambiente e de todo o planeta; um lugar de sociabilidade, de elaboração cultural, de comunicação de cachalotes, golfinhos, algas, bactérias que interagem há milhões de anos em um equilíbrio dinâmico vital.
O mar, para Balzano, é, antes de tudo, o siciliano, de onde ela escreve, buscando tecer os fios de uma possível resposta ao desastre ecológico em curso; um mar ameaçado pelas refinarias, pelo turismo, pela Ponte do Estreito. E é também por amor ao mar de Messina que Eva Virale propõe um decrescimento feminista.
Eva Virale é uma ecologia úmida. E é estranho escrever sobre isso daqui, a 1.400 metros acima do nível do mar que a autora nos exorta a defender, convidando-nos a aliar-nos aos seus habitantes contra o antropocentrismo e o capitalismo. Mas aqui, onde vivo alguns meses do ano, a umidade, a força da água é bem visível, quer quando se sente a falta dela, quer quando, como neste ano, os riachos estão finalmente cheios (e no ano que vem?).
Essa ecologia úmida pode ser vista em líquens, musgos, cogumelos e, infelizmente, também pode ser vista em acontecimentos extraordinários que são cada vez mais comuns, naquilo que os nossos meios de comunicação de massa chamam de desastres naturais e que não têm nada de natural. E, de fato, eles se intensificam. Aqui, nestes dias, os rios transbordam, os leitos dos rios cedem, as aldeias ficam isoladas.
Como ler a crise climática? Como responder a ela? Angela Balzano está convencida de que é necessária uma lente materialista e ecofeminista, um pensamento que reúna os modos de produção de bens e o grande tema da reprodução humana, tema que vai das lutas pelo direito ao aborto até à defesa da raça itálica, passando pela injunção à maternidade. E ela explica muito bem por que essa abordagem é necessária, mas uma consideração em particular me impressionou:
“Se o trabalho reprodutivo não tivesse recaído sobre a capitalização da vida das mulheres, o plástico teria invadido o planeta de forma tão difundida? As mulheres têm recorrido ao plástico como matéria capaz de liberar tempo de suas vidas, porque ainda hoje nos parece que o tempo para os gestos que nos mantêm vivos cotidianamente é o tempo ao qual menos damos valor” (“Eva Virale”, p. 151)
Dando continuidade ao trabalho de reprodução iniciado com o anterior Per farla finita con la famiglia [Para acabar com a família], Balzano valoriza as alianças nascentes entre os movimentos pelo decrescimento e a crítica transfeminista, mantendo-se bem distante tanto das fugas para a frente (ou para trás?) do primitivismo quanto da tecnofilia acrítica de um certo transumanismo.
Trata-se, então, de promover uma nova abordagem ao decrescimento, que, mais do que se ocupar da redução da produção de bens, se interesse pela redistribuição dos trabalhos de cuidado. Eva Virale propõe um decrescimento feminista.
Precisamente nos últimos dias, causaram um certo rebuliço as declarações do assessor do bem-estar da região da Lombardia, Guido Bertolaso, segundo o qual “o inverno demográfico é dramático e não nos ajuda, pelo contrário, corre o risco de fazer desaparecer a raça itálica”.
Não poderíamos testemunhar uma forma melhor de mostrar a conexão entre a injunção à maternidade (patrimônio sobretudo da direita, mas muitas vezes evocada também na esquerda) e o nacionalismo para o qual as existências migrantes não são vidas dignas de serem vividas ou, pelo menos, de serem contabilizadas nas estatísticas.
Sobre esse ponto, Balzano desconstrói, ponto a ponto, o não dito das estatísticas nacionais que sempre se apresentam como neutras, a perspectiva colonialista e ao mesmo tempo machista dos discursos sobre a queda dos nascimentos. O objetivo é a reprodução da espécie dominante a qualquer custo, mesmo que seja o da extinção em massa. E a espécie dominante não é simplesmente a humana: na verdade, trata-se de um protótipo humano bem definido, branco, hábil, masculino, cisgênero.
Mas não só. Essa perspectiva pós-humana afunda suas raízes no trabalho de uma longa lista de autoras, que vai de Donna Haraway a Lynn Margulis, de Alexis Pauline Gumbs a Stacy Alaimo. Um time que tem mantido uma relação complexa com a ciência, muitas vezes, habitando suas práticas a partir de dentro para, depois, construir paradigmas epistemológicos situados, transformadores e não masculinos.
Por isso, Balzano tem consciência de que a ciência neutra não existe e de que é preciso romper com o posicionamento hegemônico que dita seus princípios, identificando seus elementos centrais: a branquitude, o racionalismo cartesiano, a heterossexualidade, mas também o especismo.
A crença de que a nossa espécie constitui o ápice da evolução é o núcleo da supremacia humana, com a convicção de que nós somos a única espécie pensante e de que o que dá valor e dignidade a um indivíduo são suas capacidades cognitivas.
O que, aliás, como aponta a ativista antiespecista deficiente Sunaura Taylor, lembra-nos que o capacitismo e o especismo estão intimamente ligados. O Homo sapiens faz parte de uma “natureza-cultura” há pouquíssimo tempo e literalmente ignora os mundos existenciais de um número infinito de espécies, que certamente não têm menos razão de existir. Por isso, a postura humana é de pura arrogância. A cultura dos cachalotes, para retomar um exemplo citado no livro, contém a memória histórica dos mares: mesmo assim, “o sapiens, no maior cérebro do reino animal, viu apenas o óleo para acender suas próprias lâmpadas”.
Não podemos, portanto, deixar de nos abrir aos parentescos e à justiça transespécies, superando as taxonomias de uma ciência antropocêntrica e extrativista, que exclui todo o mundo não humano e boa parte da própria humanidade da proteção concedida a uma minoria. Como diz Angela Balzano:
“Podemos nos imaginar como parte de uma espécie que não se autodenomina a única espécie sapiente já conhecida na Terra? Não gosto nada dessa nomenclatura. Não sou Homo e me considero modestamente ignorante em relação às inteligências artificiais e dos gatos. Ainda mais importante, sei que milhões de pessoas humanas nunca tiveram acesso aos direitos que o Homo sapiens atribuiu a si mesmo, biológica, jurídica e economicamente” (Eva Virale, p. 163).
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“Eva viral”: por um decrescimento feminista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU