"Sabemos ambos que a região que chamamos de Amazônia foi habitada por diversos povos por um tempo bastante longo. E aprendemos ambos a reconhecer na ideia de natureza uma construção filosófica, ideológica e material que serviu à conquista colonial ocidental, para transformá-la em recurso. A natureza deveria ser uma reserva de pureza, de inocência, diversa essencialmente do homem, que era exceção absoluta entre os viventes. Trata-se de uma construção colonial de recursos, um 'teatro' da inocência, de que se pode apropriar. Desfazer essa ideia de natureza é a tarefa de cada pessoa que queira assumir responsabilidade pelo mundo em que vivemos", assevera a pesquisadora Donna Haraway, que explora a relação entre humanos e outras espécies.
Haraway é filósofa e zóologa estadunidense, professora emérita do Departamento de História da Consciência e no Departamento de Estudos Feministas na Universidade da Califórnia.
Sua obra, O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa (Bazar do Tempo, 2021), foi traduzida por Pê Moreira e Fernando Silva e Silva. Fernando comentou as teorias de Haraway na entrevista Tudo está conectado a algo: o programa teórico e político de Donna Haraway. Entrevista especial com Fernando Silva e Silva.
A entrevista é do filósofo italiano Emanuele Coccia, publicada por 7 Corriere, 26-11-2023. A tradução é de Davi De Conti. A entrevista foi enviada pelo tradutor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
No Manifesto das espécies companheiras a filósofa americana Donna Haraway sustenta que “a escrita sobre o mundo canino é um ramo da teoria feminista”. Por que devemos falar ou escrever sobre cães para tornarmo-nos feministas?
“É uma brincadeira”, responde Haraway, mas uma brincadeira séria: é preciso uma atenção toda feminista para habitar o mundo junto daqueles que vivem conosco e que não possuem uma forma humana, cuidar deles e aprender a prestar atenção neles, tem a ver com o mundo em sua violência, em suas conquistas, em seu possível futuro – um futuro ainda possível. Não falo de prestar atenção somente nas mulheres, ou outras necedades desse tipo: falo do tipo de prática de cuidado e atenção que as mulheres partilharam e ensinaram aos outros, como parte da convivência com outros seres humanos, aos cães inclusive. Não falo dos cães em geral, mas dos cães em seu específico ser no mundo, os cães de companhia compreendidos no sentido de animais domésticos. As espécies de companhia são muito mais numerosas do que os cães: são aqueles com as quais literalmente partilhamos o pão. Mas os cães têm um papel especial. Sou pessoalmente apaixonada pelos cães, ensinaram-me muito, e a vida com eles é melhor, aprende-se a viver de modo menos violento. É nesse sentido que considero que escrever e falar de cães é uma maneira de fazer teoria feminista, um modo de ser no mundo feminista, por meio de uma certa forma de prestar atenção, de tomar cuidado, de ser responsável. Como Vinciane Despret, que escreveu o prefácio, gosto de trabalhar por adição e não por subtração. Quando delineio ou dou forma às coisas, prefiro incluir mais participantes, em vez de abandonar um companheiro, negligenciar uma relação de fidelidade, ou renunciar a um modo de pensar.
Você toma evidentemente distância de uma certa imagem romântica da natureza. No seu Manifesto ciborgue interditava já de modo provocador toda identificação estereotipada da mulher e da natureza. O Manifesto das espécies companheiras é igualmente provocador em sublinhar que a ecologia jamais é um interesse por lugares distantes, “selvagens” e incontaminados, como se imagina ser a Amazônia: ela se encarna ao contrário no amor por uma natureza artificial, que não é antiga porque tem uma história e que não é de todo não humana, porque compartilha nossa história. Os cães justamente.
Sabemos ambos que a região que chamamos de Amazônia foi habitada por diversos povos por um tempo bastante longo. E aprendemos ambos a reconhecer na ideia de natureza uma construção filosófica, ideológica e material que serviu à conquista colonial ocidental, para transformá-la em recurso. A natureza deveria ser uma reserva de pureza, de inocência, diversa essencialmente do homem, que era exceção absoluta entre os viventes. Trata-se de uma construção colonial de recursos, um “teatro” da inocência, de que se pode apropriar. Desfazer essa ideia de natureza é a tarefa de cada pessoa que queira assumir responsabilidade pelo mundo em que vivemos. Por isso, a expressão “natureza-cultura”, nascida da implosão de duas palavras em uma, é o indicativo de algo a mais. Nem a natureza nem a cultura são conceitos realmente utilizáveis. Ambas reconstroem o mundo de modo binário: a cultura seria a esfera da atividade humana, do sentido, da linguagem e assim por diante, ao passo que a natureza seria aquilo que não possui linguagem, aquilo que se pode manipular e assim por diante. Essa divisão do mundo, como sabemos ambos, é incrivelmente destrutiva. É a base ideológica e filosófica de grande parte da destruição da Amazônia e muitos outros genocídios, apropriações e narrativas apocalípticas. O Manifesto das espécies companheiras é apenas um pequeno livro em que busco escrever de maneira diversa e, nesse caso, faço isso com os cachorros!
Não é nada pequeno: é um grande livro, extremamente importante. Numa passagem do livro, você diz que os ciborgues são os irmãos caçulas na família muito maior e queer das espécies companheiras. Acredito que essa seja uma ideia muito interessante, concluo daí que num certo sentido o Manifesto das espécies companheiras está estendendo aquilo que você estava fazendo no primeiro manifesto. A palavra ciborgue torna afinal inseparáveis o cultural e o natural, o orgânico e o artifício, da mesma maneira um cão é o exemplo perfeito da implosão entre natureza e cultura, perfeita encarnação daquilo que você está dizendo sobre a cultura da natureza.
O Manifesto ciborgue e o Manifesto das espécies companheiras são verdadeiramente a mesma coisa, literalmente atados, não porque sejam idênticos, mas porque de algum modo habitam um no outro. Mas há uma diferença entre espécies companheiras e ciborgues. Em lugares muito diversos e distantes do mundo, povos inteiros viveram com outros animais: penso particularmente nos animais de trabalho, nos animais de afeição, naqueles que viveram conosco em nosso projeto. Os ciborgues são organismos cibernéticos que começaram a existir neste planeta apenas por volta da Segunda Guerra Mundial, na cultura da comunicação digital: possuem uma identidade histórica bastante específica. As espécies companheiras são mais numerosas e mais antigas. Não estou opondo o natural ao artificial, mas diversos tipos de entidades criadas através da guerra, a indústria, em particular aquela da comunicação, do entretenimento e assim por diante.
Há uma bela passagem em que você escreve que a relação entre as espécies é algo que se pode avizinhar da teologia negativa, isto é, da ideia de que de Deus enquanto ser infinito só se pode dizer aquilo que não se conhece, para evitar de capturar o infinito no finito e cair na idolatria. E segue por dizer que essa consideração teológica nos ajuda a pensar o adestramento como uma forma de amor.
A capacidade de não saber, de conhecer de modo negativo não é uma forma de estupidez tresloucada, é o que deveria moldar toda pessoa séria. É aquele tipo de esvaziamento necessário para relacionar-se diversamente, para deixar que ocorra algo mais, para ficar surpreso. Com os cães, por exemplo, num certo sentido nos criamos reciprocamente. E na história evolutiva somos literalmente produtos um do outro, vivemos juntos de uma maneira que modificou nossa espécie. Diferentemente dos lobos, seus parentes mais próximos, os cães vivem numa espécie de simbiose evolutiva obrigatória com os seres humanos desde um período tão longo que ambas as espécies se modificaram. Num nível mais individual, quando se se relaciona seriamente com alguém, é absolutamente necessário exercitar essa capacidade de não saber antecipadamente a novidade do outro, alguma coisa que antes não existia e que pode acontecer. E, cada vez que se entrar numa relação com o outro, brincar e exercitar-se juntos, conviver com o outro é uma abertura a qualquer coisa de novo sobre o planeta. É uma das coisas mais importantes para a nossa crise ecológica: a capacidade de não ser cegado pela sensação de uma catástrofe iminente ou de um progresso ameaçador, de não ser cegado pela teleologia, a possibilidade de estar aberto a algo que poderia ainda ocorrer. Apenas desse modo podemos ser parte da abertura.
Tenho impressão de que a cada vez que nos relacionamos com os cães ou com outra espécie companheira esquecemos num certo sentido que pertencemos a uma outra espécie, exatamente como eles se esquecem de que somo humanos. Uma vez que a relação se tenha desenvolvido, relacionamo-nos com eles como se não fôssemos nem cães nem seres humanos, mas apenas uma forma de intensidade de amor e de afeto, assim como quando nos relacionamos com as crianças e nos esquecemos também um pouco de nossa idade. O não saber de que você fala é esse entendimento de uma pura vida que não pertence mais a nenhuma espécie?
É assim em parte. E ao mesmo tempo creio seja realmente importante não transformar o cão num ser humano. É importante saber algo sobre aquilo de que os cães necessitam, sobre como os cães comunicam, sobre aquilo que amedronta os cães. E eles aprendem sobre nós. Muito frequentemente os seres humanos tratam o cachorro como criança humana, ou projetam sobre eles a fantasia de um amor incondicional: “Oh, meu cão me ama incondicionalmente”. Bem...é um absurdo ou um atestado de ignorância.
Pela primeira vez que li o livro, pensei nos contos de fadas do folclore europeu. Também na coletânea de fábulas dos Grimm, encontramos matrimônios proibidos entre seres humanos e outras espécies. Penso na fábula do príncipe sapo: a princesa deve casar-se com um sapo, mas descobre depois que o sapo é um ser humano transformado em animal por uma bruxa. Em certo sentido, a mitologia popular europeia proíbe qualquer forma de relação de amor entre espécies: pode-se amar um sapo apenas quando se sabe que não é um sapo, mas um ser humano. Acredito que seu livro seja revolucionário porque parece sugerir que é necessário pensar sobre a relação entre espécies diversas para compreender o que é o amor também entre indivíduos da mesma espécie. Talvez, aprendendo a amar um cão, que é um exercício extremamente difícil, possamos compreender melhor como amar outro ser humano.
Parece-me também que as fábulas europeias jamais falam verdadeiramente dos outros animais. Também nesse caso, não se trata de um sapo. Para relacionar-se com os sapos é necessário, num certo sentido, esvaziar-se da própria “humanidade”, aprender a não ser a presença imponente. Deve-se aprender de algum modo com o sapo como pode ser um sapo a partir do ponto de vista do sapo. É uma forma de disciplina: requer um trabalho afetivo, intelectual e prático para permitir a um outro ser não ser como você, a sua fantasia, a sua projeção, o seu projeto. Realizar isso com os sapos é ainda mais difícil, porque não são espécies domésticas e não vivem numa relação de simbiose obrigatória com os seres humanos. Nossas obrigações para com eles são diferentes. Alguns biólogos são bons nisso. E creio que a filósofa Vinciane Despret tenha escrito páginas decisivas sobre esse tema.
Pensar sobre os cães significa pensar também sobre os espaços domésticos e, em sentido amplo, também sobre os espaços urbanos. Como você acredita que a arquitetura e que os estudos urbanos deveriam repensar a casa e a cidade a partir dessa relação?
Bem, acredito que os italianos são melhores nisso. Os cães nas cidades italianas podem entrar na maior parte dos lugares, e as pessoas tomam como certo que há cães onde quer que seja, nos restaurantes, nos cafés... As cidades estadunidenses são horríveis no que diz respeito a isso. E os cães nos Estados Unidos tendem a não ser tão diligentes e a habitar os espaços urbanos como fazem os seus similares europeus.
E por quê?
Porque nos Estados Unidos não socializamos nossos cães de maneira tão eficaz. Usamos excessivamente a coleira; os cães não têm a mesma liberdade. E as pessoas os tratam como crianças, dando-lhes demasiada atenção em público. Na Europa, no espaço público, ninguém dá muita atenção à presença deles, e eles são acostumados a passearem e a se comportarem bem. São mais livres. Também porque a lei nos Estados Unidos é absurda. Por um lado, supõe-se que haja um amor absoluto entre seres humanos e cães, por outro lado, os cães não são admitidos nos parques, nos centros históricos... Não são admitidos em lugar algum, não possuem a experiência necessária e tendem, assim, a ter mais medo dos outros, a não serem tão sociáveis como acredito seja a norma na maior parte da cultura canina europeia. Creio que a maior parte dos cães europeus tenha mais competência social.
Há, portanto, uma diferença cultural entre a população canina do mundo.
São mais sociáveis, mais espertos, mais educados. Naturalmente isso não é sempre verdade e ainda menos o é em toda Europa. É diferente se pensamos nos cães de trabalho. São cães de trabalho seja nos Estados Unidos seja na Europa, mas os cães perderam a maior parte de seus trabalhos. A destruição da zona rural e da economia pastoral na Itália, bem como alhures, destruiu os postos de trabalho dos cães; E as relações de um cão de trabalho com os seres humanos são diferentes daquelas de um cão que é fundamentalmente uma companhia de afeto, uma companhia de casa. E no Manifesto das espécies companheiras busco escrever sobre cães de trabalho, sobre cães de experimento e sobre cães de estrada.