Por: Vitor Necchi | 02 Setembro 2017
Há processos e características do Rio Grande do Sul que remetem à obscuridade de tempos remotos, conforme Marcos Rolim. “O provincianismo é arcaico, assim como o machismo, a misoginia, o racismo e a homofobia. O desprezo pelos ideais republicanos e pela democracia, a facilidade com que o preconceito se transforma em paisagem; a opção pela mitologia e pelo dogmatismo em todas as frentes, à direita e à esquerda, isso também é arcaico”, descreve. Rolim amplia a análise: “O gosto pelas cerimônias e pelos discursos que nada dizem; a opção pela formalidade, pelos rituais e o desprezo pela ciência, tudo isso respira Idade Média”.
A crise se agrava porque a intolerância “passou a se reproduzir também pela ação de agentes do Estado, que tratam as garantias individuais como ameaças e que zombam dos direitos humanos, nos aproximam perigosamente da mentalidade fascista que é profundamente arcaica”.
Na política, o cenário é desalentador, tanto que nas últimas décadas o estado teve sua influência reduzida. “O motivo mais forte para esse resultado é que não produzimos novas gerações de políticos especialmente capacitados, intelectual e moralmente”, afirma em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Conforme Rolim, doutor em sociologia, há uma tradição cultural sustentada em uma série de mitos sobre o Rio Grande do Sul segundo a qual os gaúchos teriam façanhas a servir de modelo a toda a Terra. Esse imaginário estabelece uma espécie de “supremacia gaudéria”. Rolim especula que os gaúchos talvez tenham sido afetados por isso.
As ideologias, enfatiza, “se alimentam de dogmas e mitos que servem, exatamente, para proteger determinadas ideias da dura realidade”. No seu entendimento, “toda noção de supremacia entre grupos humanos, seja étnica, histórica, racial, política ou religiosa, é sempre uma tradução da ignorância”. A cultura tradicionalista que vige “transforma a estupidez em virtude”.
Marcos Rolim | Foto: Blog Mundo em colapso
Marcos Rolim é doutor e mestre em Sociologia (UFRGS), especialista em Segurança Pública (Oxford), jornalista (UFSM) e membro do Centro Internacional para Promoção dos Direitos Humanos - CIPDH. Em 1999, recebeu o Prêmio Unesco em Direitos Humanos no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor escreveu em um artigo que talvez se tenha construído no Rio Grande do Sul uma subcultura em torno de uma ideia genérica de supremacia gaúcha. Como se traduz esta idealização de supremacia?
Marcos Rolim – Fiz referência a uma determinada tradição cultural construída em torno de uma série de mitos sobre o Rio Grande do Sul. Para essa tradição, nós, os gaúchos, teríamos façanhas a servir de exemplo a toda a Terra. Essa passagem do hino sul-rio-grandense parece simbolizar o problema da construção de um imaginário popular que é mais forte que o bairrismo. Nesse imaginário, tudo no Rio Grande do Sul seria melhor; uma espécie de “supremacia gaudéria”. Talvez tenhamos todos sido afetados por isso, de uma forma ou de outra. Se a hipótese for verdadeira, por certo teríamos aí uma contribuição destacada para o atraso e para a situação atual no estado onde as coisas não só não são melhores do que em outros lugares, mas, com muita frequência, claramente bem piores.
IHU On-Line – O que alimenta esta sensação de superioridade? E como ela é mantida, mesmo havendo uma série de indicadores e diagnósticos que não corroboram esta perspectiva?
Marcos Rolim – As ideologias desprezam indicadores e diagnósticos. Elas se alimentam de dogmas e mitos que servem, exatamente, para proteger determinadas ideias da dura realidade. Toda noção de supremacia entre grupos humanos, seja étnica, histórica, racial, política ou religiosa, é sempre uma tradução da ignorância. Onde há supremacistas, entretanto, a ignorância se perpetua, porque as chances de percebê-la diminuem.
IHU On-Line – A cultura tradicionalista que se formou no estado valoriza, de maneira geral, traços que poderiam ser chamados de rústicos, chulos e grosseiros. Isso não dá subsídios para que a identidade do gaúcho seja caricatural e machista?
Marcos Rolim – Por certo que sim. Trata-se de uma tradição que transforma a estupidez em virtude. O “espírito objetivo” do gauchismo se estrutura a partir de um universo profundamente hierárquico, masculino e misógino. Os valores dessa tradição legitimam a violência, apresentada sempre como uma característica dos “homens de verdade”, aqueles que se impõem pela força, não pela inteligência. Não por acaso, essa é uma vertente cultural bastante intolerante e que reproduz com naturalidade a homofobia e o racismo.
IHU On-Line – A hipervalorização do que é local não transforma os limites do estado em muralhas, estabelecendo uma visão refratária ao que é de fora, à ampliação das perspectivas?
Marcos Rolim – Entendo que o nome disso é provincianismo. O Rio Grande do Sul é extremamente provinciano, outra marca do atraso de nossa cultura hegemônica. Não nos preocupamos com o que ocorre no resto do mundo, tampouco com o destino da América do Sul ou mesmo dos demais estados brasileiros. O espírito é o do verso de Marco Aurélio Campos: “Sou o pó que se levanta / sou terra, sangue, sou verso/ sou maior que a história grega/ eu sou gaúcho e me chega prá ser feliz no universo”. Nossa tragédia é a de sequer suspeitar o que perdemos ao repetir coisas do tipo.
IHU On-Line – O que há de arcaico e de contemporâneo no estado?
Marcos Rolim – O provincianismo é arcaico, assim como o machismo, a misoginia, o racismo e a homofobia. O desprezo pelos ideais republicanos e pela democracia, a facilidade com que o preconceito se transforma em paisagem; a opção pela mitologia e pelo dogmatismo em todas as frentes, à direita e à esquerda, isso também é arcaico. O gosto pelas cerimônias e pelos discursos que nada dizem; a opção pela formalidade, pelos rituais e o desprezo pela ciência, tudo isso respira Idade Média. Sobretudo, penso que a intolerância que passou a se reproduzir também pela ação de agentes do Estado, que tratam as garantias individuais como ameaças e que zombam dos direitos humanos, nos aproxima perigosamente da mentalidade fascista que é profundamente arcaica.
Há eventos, programas, instituições e pessoas que expressam a contemporaneidade no Rio Grande do Sul. O Fronteiras do Pensamento, o Porto Alegre em Cena e a Fundação Iberê Camargo são contemporâneos. A Reforma Psiquiátrica, a Nau da liberdade e a Parada Gaúcha do Orgulho Louco também. Nei Lisboa, Vitor Ramil, Zorávia Bettiol, Dione Martins (Xadalu), Jorge Furtado, Esther Grossi e Eva Sopher são contemporâneos, assim como a Themis, o Nuances e a Frente por uma Nova Política Prisional. Eliane Brum e Michel Laub são contemporâneos e, talvez por isso, tenham saído do Rio Grande do Sul. Caio Fernando Abreu, Sérgio Metz, Giba Giba, Moacyr Scliar e João Gilberto Noll eram contemporâneos e morreram sem que os gaúchos se enlutassem. Os exemplos de perspectiva contemporânea existem e são muitos. O problema é que, entre nós, a contemporaneidade rema contra a correnteza.
IHU On-Line – Segurança e direitos humanos são áreas às quais o senhor se dedica. Por que o Rio Grande do Sul vive em permanente estado de insegurança?
Marcos Rolim – Vários fatores se combinam para esse resultado. Os mais importantes, me parece, estão vinculados ao papel desempenhado pelo encarceramento descriterioso e em massa que praticamos – o que tem sido extremamente funcional para a formação, fortalecimento e ampliação de facções criminais – e à absoluta ausência de políticas sérias de Segurança, amparadas em diagnósticos com base científica, orientadas por evidências e por boas práticas e que apostem no papel que pode ser desempenhado pelo poder público e pela sociedade civil quanto à prevenção.
IHU On-Line – Por que os presídios gaúchos estão entre os piores do país?
Marcos Rolim – Porque os governantes que já tivemos, todos eles, nunca trataram efetivamente de mudar esse quadro, um desleixo que, assinale-se, sempre foi amparado pela opinião pública. Assim, não devemos apenas responsabilizar os gestores pela inação, pela incúria e pela incompetência. O fato é que as condutas omissivas dos governantes foram a tradução política dos valores presentes no senso comum; no Rio Grande do Sul, mais que em outros estados.
IHU On-Line – No que tange aos direitos humanos, que pessoas são mais vulneráveis no Rio Grande do Sul em função das características próprias do estado e por qual razão?
Marcos Rolim – Não sei se as pessoas são mais vulneráveis no Rio Grande do Sul às violações quando comparadas às realidades vividas nos demais estados. Desconheço, pelo menos, evidências que amparem essa conclusão. Podemos dizer, entretanto, que estamos mais vulneráveis hoje, no RS, do que no passado, o que expressa um grave retrocesso.
IHU On-Line – O senhor exerceu mandatos como vereador, deputado estadual e federal. Por que se afastou do universo político-partidário?
Marcos Rolim – Porque percebi que o partido no qual militei por mais de 20 anos havia se transformado em uma máquina burocrática e arrogante, conivente com práticas de corrupção, e vocacionada apenas para as disputas pelo poder. O PT em que eu militei deixou de existir há muito. O que restou dele é uma caricatura cínica.
IHU On-Line – Há políticos gaúchos que tiveram projeção nacional ao longo da história republicana. Nos últimos anos, que peso o Rio Grande do Sul tem no cenário político brasileiro?
Marcos Rolim – Nas últimas décadas, o Rio Grande do Sul viu sua influência política ser reduzida. O motivo mais forte para esse resultado é que não produzimos novas gerações de políticos especialmente capacitados, intelectual e moralmente. Quando me dizem que políticos gaúchos como Eliseu Padilha e Darcísio Perondi seriam muito influentes no governo federal, fico pensando, inclusive, que, talvez, tenha sido melhor para o Brasil que tenhamos reduzido nossa influência.
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Toda noção de supremacia é tradução da ignorância. Entrevista especial com Marcos Rolim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU