Por: Vitor Necchi | 26 Agosto 2017
Muito se comenta sobre a grave crise econômica que há décadas assola o Rio Grande do Sul e que atingiu seu ápice na atualidade. O professor de literatura Luís Augusto Fischer, atento observador do que se passa em terras gaúchas, parte do colapso financeiro, mas vai além e aponta as várias crises pela qual o estado atravessa. “Tem a crise brasileira, que é nossa também, na economia e na política. Tem a crise social, com violência para todo lado. [...] Tem a crise mais sutil do fim das ilusões sobre o Mercosul e o papel estratégico que o estado teria nele. Tem uma crise de autoestima”, apresenta.
Ao aprofundar sua leitura, dispara contra o governo: “Tem uma outra crise de autoestima relativa ao governo do estado, que é muito ruim, sem capacidade de expor com clareza as variáveis da crise de financiamento da máquina pública e, ao que parece, sem vontade política de enfrentar essa crise de modo democrático e esclarecido”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Fischer se espanta: “É crise que não acaba mais”.
A mistura histórica dos elementos que constituíram a formação do Rio Grande do Sul – “fronteiras, afastamento e alijamento do centro de decisões, consciência aguda de ser algo distinto dos vizinhos, estância senhorial, a figura do gaúcho como um sujeito altivo e independente, num país escravagista – deu uma amálgama muito potente, capaz de engendrar literatura, música, toda uma simbolização enfim, que está na base da nossa disciplina e, antes dela, na realidade empírica”, afirma Fischer.
O professor, ao pensar sobre o governador do estado e o prefeito de Porto Alegre, manifesta que a desesperança se mantém: “Governantes principais sem qualquer apreço pela cultura letrada, mesmo que contem com secretários gente boa, resultam nisso, nesse quadro”. E faz uma provocação: “Convido o leitor a pensar no Sartori e no Marchezan e imaginar qualquer deles abrindo um livro culto, de qualquer matéria ou especialidade, que não seja um manual de qualquer coisa. Impossível”.
Luís Fischer | Foto: Fernanda Davoglio
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde leciona. É autor de vários livros, entre eles Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores), Literatura gaúcha – História, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI) e Inteligência com dor – Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores), de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras), de Amaro Juvenal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Muito se fala em crise no Rio Grande do Sul, para além da questão econômica. Na sua leitura, quais crises o estado vive e por quê?
Luís Augusto Fischer – Tem a crise brasileira, que é nossa também, na economia e na política. Tem a crise social, com violência para todo lado, assassinatos e brigas entre gangues que controlam o mundo das drogas e do sistema prisional, coisas que até pouco tempo pareciam não existir aqui. Tem a crise mais sutil do fim das ilusões sobre o Mercosul e o papel estratégico que o estado sulino teria nele, sonho que vem dos anos 1990. Tem uma crise de autoestima, que para os sulinos sempre é uma dimensão importante em nossa ciclotimia, de muitos de nós nos considerarmos ou muito melhores ou muito piores do que o conjunto do Brasil (ou ao menos do que o centro político e econômico do país). Tem uma outra crise de autoestima relativa ao governo do estado, que é muito ruim, sem capacidade de expor com clareza as variáveis da crise de financiamento da máquina pública e, ao que parece, sem vontade política de enfrentar essa crise de modo democrático e esclarecido, uma vez que prefere ações sem conversa, sem mediação com a opinião pública, atropeladamente. Putz, é crise que não acaba mais.
IHU On-Line – Na canção Deu pra ti, Kleiton e Kledir dizem que, quando estavam de baixo astral, iam para Porto Alegre e era como se tudo se resolvesse. Nos últimos anos, adiantaria ir para a capital? O baixo astral não está generalizado no estado?
Luís Augusto Fischer – Não sei dizer por experiência própria, mas talvez seja assim: as cidades do Rio Grande do Sul, em geral, parecem viver na mesma batida da capital, ao menos no sentido de se verem privadas de esperança para o futuro e de segurança no presente, por exemplo. Mas a letra dessa canção falava de voltar a Porto Alegre desde o Rio de Janeiro, creio: era uma forma de dizer que a velha e boa província mantinha condições de aconchegar os que haviam partido. Nem isso me parece que seja verdade, ao menos naquela visão anterior, de que o Rio Grande do Sul se destacava por índices menores de violência cotidiana, mercê de um padrão de educação supostamente superior, ou mais enraizado etc. De fato, nosso estado desenvolveu, em muitas de suas regiões, especialmente onde houve colonização germânica e italiana (e polaca), um padrão de vida social muito orgânico, em que se via solidariedade social nas pessoas e nas instituições, isso tudo muitas vezes mediado pelas instituições religiosas (cristãs em especial). Não quero dizer que noutras regiões do estado não houvesse solidariedade, mas sim que nessas regiões havia uma extensa e intensa rede nesse sentido. Fico com o exemplo das caixas de socorro e assistência mútua, que tanto fizeram pelo desenvolvimento social no Vale do Sinos e arredores. Hoje, também isso foi engolido, creio, pela hegemonia dos grandes bancos. O Rio Grande também entrou na rotina das grandes corporações globais, o que enfraqueceu essa rede de solidariedade social, que tinha também desdobramentos educacionais, intelectuais, políticos etc.
IHU On-Line – Que obras literárias podem ajudar a compreender o Rio Grande do Sul e por quê?
Luís Augusto Fischer – A lista é imensa! No romance, se poderia mencionar autores que ajudam a entender essas formações sociais, esses tecidos a que me referi acima. Erico [Verissimo] alcançou uma síntese notável, naturalmente com suas limitações, em O tempo e o vento, que dá um mapa do estado entre 1750 e 1950, mais ou menos, envolvendo especialmente a estância antiga, com seus braços urbanos (a vida social) e políticos (os quadros diretivos nascidos neste mundo), mas dando notícia das principais guerras em que o Rio Grande do Sul esteve envolvido nesses 200 anos. Chega a registrar a chegada dos germânicos e outros imigrantes, especialmente aqueles que foram para as cidades.
O mundo da fronteira sul está mais claro em Cyro Martins, autor que hoje se lê com algum peso, por sua voz narrativa um tanto didática, mas também com ganhos, porque seu romance dá a ver aquele mundo de gente solitária, sejam os pobres ou os ricos, gente em geral sem horizonte positivo algum. Josué Guimarães nos dá um mapa muito vivo do mundo germânico inicial, no século 19, em A ferro e fogo, romance com defeitos, mas com a grande virtude de fluência. José Clemente Pozenato segue sendo modelar para vermos o mundo colonial italiano, como em O quatrilho, aquela ética familiar estrita, ligada ao trabalho, que contém problemas os mais diversos, como em qualquer outra gente.
Entre os que vieram a partir dos anos 1970 e 1980, além do Pozenato, há o vasto mundo do Luiz Antonio de Assis Brasil, que nos dá notícia do mundo mental dos fazendeiros bem-sucedidos entre 1830 e 1930, digamos. Há a reconstituição positiva, algo apologética e épica, que faz Tabajara Ruas. Gosto muito do trabalho do Paulo Ribeiro, por exemplo, em Vitrola dos ausentes, que mostra ativamente, num romance experimental, a vida dos miseráveis (sociais e mentais) das pequenas cidades, no caso dele as serranas. Isso tudo falando apenas de narrativas diretamente empenhadas na descrição do mundo interiorano gaúcho — deixei de fora uma penca de gente boa e ótima que se dedicou ao mundo urbano, que por isso mesmo produz uma arte mais desmarcada, quer dizer, menos dependente das variáveis locais para sua intelecção. E nem falamos de poesia, que também mostra coisas recônditas da vida — por exemplo, as notas trágicas da poesia gauchesca do Aureliano de Figueiredo Pinto, um antibravateiro.
IHU On-Line – Escritores costumavam ser chamados para se manifestar sobre diversos temas, como se fossem especialistas de tudo. Isso ocorre com menos frequência, talvez se possa dizer que nem ocorra mais. Os autores eram superestimados ou perderam a capacidade de refletir sobre a realidade?
Luís Augusto Fischer – Esse costume tinha a ver com as gerações dos romancistas de grande fôlego, gente como o Erico, o Cyro, e depois menos talvez. Nunca pensei no caso, nem sei se a tua pergunta tem toda a consistência do mundo, mas me ocorre que esses eram os romancistas com a vocação e o desejo da totalidade social, gente que queria mesmo dar conta da sua sociedade e de seu tempo na narrativa que escrevia. Faz já uns 20 ou 30 anos que tal desejo, tal missão, tal pretensão, saiu do horizonte dos escritores, que, por motivos compreensíveis, mas não fatais, têm preferido o tiro curto, o relato de episódios mais tópicos, menos abrangentes, mesmo em romances de tamanho grande, como, digamos, o Daniel Galera, excelente escritor da geração sub-40. Será? Pode ser também que simplesmente os meios de comunicação massivos tenham desistido de perguntar, também…
Tem esse lado terrível da crise dos antigos meios, né? Quem assiste a tevê aberta? Quem ouve rádio? Quem lê jornal? Não sabemos direito. Todo mundo, ou melhor, “todo mundo” está na internet, que não pergunta nada para ninguém, mas permite que todos falem. A voz daqueles escritores modelares, sugeridos na tua pergunta, dependia de perguntas para se fazerem ouvir.
IHU On-Line – O Rio Grande do Sul tinha um sistema literário peculiar e próprio, envolvendo autores, editoras, livrarias e leitores. No curso de Letras da UFRGS, até hoje é mantida uma disciplina criada por Guilhermino César, chamada Literatura Gaúcha. Esse fenômeno ocorre em outros estados?
Luís Augusto Fischer – Sim, continua. Fui aluno da última turma para quem o Guilhermino lecionou essa disciplina, em 1978, quando ele completou seus 70 e se aposentou. De fato, é invenção dele, e por muitos anos foi a única em seu gênero (um recorte provincial) no Brasil. Creio que hoje em dia já se vê isso em outras províncias, tive notícias disso, mas não acompanho o tema diretamente. Em todo caso, a criação desse curso faz sentido muito forte no Rio Grande do Sul, não por vontade do Guilhermino, mas pelos fatos. Era uma província afastada do centro, primeiro do Império Português e depois do Império Brasileiro (sim, os dois eram impérios, com esse nome!), e já por isso marcada por um sentimento de abandono. Mas era também província de fronteira, o que conferiu ao estado uma marca talvez única em todo o país, a de ser obrigada a pensar sobre o que era, sobre sua identidade, no cotidiano da vida de fronteira, que é o local histórico em que a consciência de pertencimento aparece, obrigatoriamente.
Vou dar uma de acadêmico: cito o grande sociólogo Georg Simmel (1858-1918), que foi um dos inventores de sua disciplina (e influenciou Georg Lukács, Walter Benjamin e Theodor Adorno, entre outros grandes pensadores) e era um heterodoxo, um pensador sem sistema fechado, um ensaísta no melhor sentido da palavra. Num ensaio chamado O espaço e as organizações espaciais da sociedade, de 1908, há uma linda seção dedicada à noção de fronteira, tema que ele devia conhecer vivamente, por ser de Estrasburgo, que pertenceu ao mundo alemão e depois passou para a França. A certa altura, ele faz uma distinção entre fronteiras naturais e fronteiras políticas (estas meramente convencionais, como as que acontecem entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai): “a consciência de ser, no interior de fronteiras, não é talvez tão aguda no caso de fronteiras ditas ‘naturais’ (montanhas, rios, mares, desertos) quanto no caso de fronteiras puramente políticas, que traçam tão somente uma linha geométrica entre dois vizinhos”, motivo por que essas “fronteiras vivas”, que podem se alterar, são mais eficazes psiquicamente, porque não engendram apenas uma “resistência passiva, mas também uma repulsão muito ativa”. Enfim, essas fronteiras vivas são “uma expressão espacial da relação unitária entre dois vizinhos”, implicando “um estado de tensão em que defesa e ataque são latentes e podem explodir” a qualquer momento. (Tradução minha apressada, para trecho da p. 606 de Sociologia – Études sur les formes de socialisation, trad. do alemão por Lilyane D. Gurcel e Subylle Muler, Paris, PUF, 1999.)
Essa sombra ocorreu unicamente com o Rio Grande do Sul ao longo do tempo, desde o século 18: o tratado de Madrid, de 1750, é um marco desse problema, ao haver determinado a posse portuguesa do território do que hoje chamamos de Sete Povos das Missões, povoado de indígenas guaranis e administrado por jesuítas espanhóis até então. Essa sombra é determinante do modo como o RS se compreende, desde então até agora, mesmo passada a hegemonia econômica e política dos estancieiros fronteiriços, que por muitos caminhos foram, mentalmente, o berço, a forja de símbolos identitários com força suficiente para permanecer até agora por aqui. A mistura histórica desses elementos — fronteiras, afastamento e alijamento do centro de decisões, consciência aguda de ser algo distinto dos vizinhos, estância senhorial, a figura do gaúcho como um sujeito altivo e independente, num país escravagista — deu uma amálgama muito potente, capaz de engendrar literatura, música, toda uma simbolização enfim, que está na base da nossa disciplina e, antes dela, na realidade empírica.
IHU On-Line – O que aconteceu com as editoras gaúchas, que décadas atrás tinham expressão e nomes importantes em seus catálogos?
Luís Augusto Fischer – Com elas ocorreu o que tem ocorrido nos mercados todos, a saber, um processo de internacionalização e oligopolização. Assim como as grandes brasileiras foram, talvez em sua maioria, compradas por empresas estrangeiras, mantendo a operação brasileira como parte de uma corporação mundial, ocorreu com as pequenas e médias, entre as quais muitas das gaúchas, um processo de estiolamento, de perda de força. Não sou especialista no tema das finanças das editoras, mas creio que apenas uma se mantém como grande nacional, a ArtMed, e a outra grande gaúcha, a L&PM, está passando por processos complexos — procurou inserção maior no mercado duro brasileiro, que é São Paulo, depois fechou um acordo de venda com uma grande brasileira, mas consta que foi revertida essa operação. E tudo isso deve ser somado com a crise atual, que já dura uns três anos, com baixa forte de vendas e tal.
Mas isso não significa que não existam as locais, e mesmo algumas têm crescido a olhos vistos, como a Não Editora, que se está operando com muita força e visibilidade, pelo que vejo. E há as pequenas, de escala local mesmo, mas de ótima qualidade, que mantêm boa performance, sabe-se lá com que fôlego, como a Libretos e a Arquipélago, talvez a Movimento, que anunciou uma série de lançamentos há pouco, sem esquecer o caso muito auspicioso da Besouro Box, que parece ir muito bem, com uma seção ousada e inédita em seu catálogo, o de livros ligados ao mundo afro-brasileiro, inclusive religioso. E há editoras de serviço, que têm catálogo próprio, mas trabalham por encomenda também, com boa saúde, ao que parece, como a AGE.
Não chegou o apocalipse total, ainda, embora tenha havido uma inflexão forte do mercado. Isso tudo se combina com outro vetor, a saber, o fato de que essa era da comunicação imediata, internet mais smartphone etc., deu visibilidade e trânsito muito maiores do que jamais antes para escritores de toda parte, incluindo os gaúchos, muitos dos quais, na geração mais recente, já começam sua vida editorial em “majors” do setor ou nelas ingressam em pouco tempo, como foi o caso de Daniel Galera, Michel Laub, Paulo Scott, Carol Bensimon e Luísa Geisler, entre outros.
IHU On-Line – Há poucas bibliotecas públicas no Rio Grande do Sul, não existe uma política oficial para compra de livros e as escolas públicas estão em situação precária, justamente em um estado que desde a Primeira República era referência em educação. Em Porto Alegre, o prefeito ameaça um programa bem-sucedido e elogiado como o Adote um Escritor. O que dizer deste quadro?
Luís Augusto Fischer – Isso é uma tristeza sem fim… Governantes principais sem qualquer apreço pela cultura letrada, mesmo que contem com secretários gente boa, resultam nisso, nesse quadro. Convido o leitor a pensar no [José Ivo] Sartori e no [Nélson] Marchezan [Júnior] e imaginar qualquer deles abrindo um livro culto, de qualquer matéria ou especialidade, que não seja um manual de qualquer coisa. Impossível. (E o Sartori é formado em Filosofia…) O que posso dizer é isso: uma gente que despreza a cultura letrada, a cultura exigente, e não percebe que ela é importante não apenas para nós, de classe social confortável, mas para todo mundo, pelo poder que a cultura tem de expressar a vida em níveis sutis, que permanecem soando pelos tempos afora e funcionam como horizontes para todos, como possibilidade, sendo tarefa da educação abrir as portas, oferecer as escadas, enfim dar acesso a esse patrimônio. Uma lástima.
IHU On-Line – No cenário cultural nacional, prevalecem produções do Rio de Janeiro e de São Paulo. Há também expressões importantes de estados nordestinos, como Pernambuco. Por outro lado, artistas que trabalham no Rio Grande do Sul costumam apontar que suas obras têm pouca aceitação nacional. Isso procede? Deve-se ao quê?
Luís Augusto Fischer – Imagino que estejas falando mais de artes de performance, dança, teatro, cinema, canção, shows, e concordo com o diagnóstico: artistas nordestinos aparecem mais na mídia hegemônica de Rio e São Paulo do que gaúchos. Há uma razão sociológica forte e bem elementar para tal: a experiência que os artistas nordestinos expressam é muito mais próxima do grande público do que a experiência expressa pelos gaúchos. Há muito mais nordestinos vivendo no centro do país do que gaúchos, e há muito mais tempo, e já por isso o som até da fala de um artista nordestino é mais compreensível e fala mais à alma do grande público do que o som da nossa fala. Aliás, o nosso sotaque e o nosso vocabulário, sendo imediatamente reconhecidos fora daqui, nos diferenciam das falas brasileiras correntes (chiado nos s, r aspirado, curvas melódicas mais amenas, tudo junto ou em parte) e colocam os ouvintes em situação de atenção e talvez de tensão — qual é a briga que esses gaúchos estão comprando desta vez?
Outra razão: o Nordeste, compreendido como coisa única (que não é), se compõe de estados relativamente pequenos, em sua maioria, e que têm uma tradição bem mais antiga do que a nossa em matéria de elites que sabem se acomodar no poder, em acordos que vêm do tempo colonial, passam por [José] Sarney e o finado ACM [Antônio Carlos Magalhães] e chegam aos gedéis de hoje. As nossas elites tradicionais (não falo dessa geração atual, que em sua talvez maioria podia ter nascido em qualquer parte, tido qualquer educação, que daria no mesmo, por exemplo, aquele deputado federal [Sérgio] Moraes, de Santa Cruz do Sul, ou o inefável [Eliseu] Padilha, braço direito de [Michel] Temer), bem ao contrário, não tinham a manha, nem a vontade, de praticar acordos por baixo do pano, em bem ao contrário só chegavam ao poder se mandassem sozinhos, quase sempre com vezo autoritário.
Isso tudo forma um caldo de cultura que tende a colocar o artista gaúcho como um diferente do estilo manhoso, malemolente, acomodatício, muitas vezes até fazendo o papel do subordinado engraçadinho e piadista, do artista nordestino ou nortista. Sei que estou generalizando, e por favor, não estou me referindo a imensos artistas criadores, que podem provir de qualquer parte porque fazem arte exigente; estou pensando em casos escrachados, até ao nível da caricatura — pensando num plano praça-da-alegria, ou escolinha-do-professor-raimundo, nordestinos, nortistas, caipiras são retratados como esse subordinado alegrinho, que não apenas aceita o papel ridículo como de certo modo extrai prazer dele, ao passo que o gaúcho de caricatura é visto como veado (o Millôr preferia “viado”), quer dizer, é alguém que é preciso simbolicamente emascular, profanar, derrubar, tratar como alguém que precisa aprender a ser posto para baixo.
Uma terceira ordem de motivos também elementares, quero dizer, básicos, tem a ver com a geografia: de fato o Rio Grande do Sul (e os outros dois estados da região também, ao menos em parte) tem diferenças climáticas com o mundo tropical. Para nós “frio” quer dizer um monte de coisas que não significam nada para a experiência tópica dos habitantes do Brasil quente. Se temos coisas em comum, como temos, também temos essa paisagem diferente.
Se formos pensar na experiência social, também temos marcantes especificidades: embora compartilhemos com o conjunto do país uma história de escravidão e patriarcalismo rural, temos uma extensa história de imigração para pequena propriedade tocada com mão de obra familiar, um tipo de experiência social que marca a fundo nossa cultura cotidiana — pensa, para dar um exemplo atual, nos pequenos armazéns, bares e restaurantes tocados por famílias de gente dessa origem, espalhados pela geografia do Rio Grande do Sul. Não é? É quase tão típico da nossa experiência cotidiana quanto era, duas ou três gerações atrás, no Rio, o português dono de padaria e boteco.
Enfim, há todo um conjunto de coisas que, muito antes de nossas idiossincrasias momentâneas, são substantivas razões de diferença na experiência, que não nos tornam melhores, ou piores, mas para e simplesmente diferentes da experiência rotineira ao menos da imensa região litorânea e do espaço da “plantation” brasileira, desde o século 16.
IHU On-Line – Os gaúchos acalentam uma nostalgia pelo passado que tem bases idealizadas e míticas, gerando posturas que podem ser consideradas atrasadas e retrógradas. Por que o tradicionalismo, um movimento nitidamente reacionário, machista, homofóbico e fechado para o que destoe dos seus postulados, se expandiu e fortaleceu ao longo de cerca de sete décadas?
Luís Augusto Fischer – Também há muitas razões para isso. Primeiro talvez a gente deva pensar em dividir o público que aderiu e adere ao tradicionalismo segundo sua experiência sociológica, coisa que faço aqui de modo tentativo, meio intuitivo e meio baseado em experiência pessoal. Para as classes médias e baixas da Metade Sul em geral, com exceção apenas de grandes cidades cosmopolitas como Pelotas e Rio Grande, o CTG [centro de tradições gaúchas] é um importante clube social cuja ética e cuja estética combinam muito bem com a vida cotidiana, ao menos a do passado, uma ou duas gerações atrás, ou seja, até o tempo dos avós, gente que a gente conheceu ao vivo. Num CTG de Caçapava ou de Quaraí, digamos, o cara veste a bombacha mais nova e bonita, mas é bem possível que, se ele tiver algum campo, ele use sempre bombacha, ou, se ele já vive na cidade, então é quase certo que seu pai ou seu avô usavam bombacha para trabalhar. Neste caso, o mundo do CTG tem realmente uma relação de continuidade com a vida real. E, neste caso, os aspectos machista, homofóbico etc. não são uma coisa repentina, uma imposição, mas um costume.
(Coisa curiosa é que ouvi relatos pessoais, de homens gays com essa origem social e geográfica, dando conta de que viviam dentro de CTGs a vida toda antes da idade adulta, dançando nos grupos folclóricos, com muita gente sabendo dessa condição sem sobressalto algum. Só não podiam “dar pinta”. Assunto para um estudo, esse, quero crer.)
Conheci de perto um exemplo, recentemente, relativo às cidades de São Gabriel e de Caçapava, de uma moça negra que havia debutado num CTG (sim, exatamente isso) e foi convidada para debutar em outro, com o detalhe de que este outro não costumava aceitar negros; a menina aceitou o convite da amiga e foi, mas seus pais, quando tentaram entrar nesse outro CTG, tiveram alguma dificuldade, o porteiro causou embaraço, até que apareceu alguém avisando que se tratava dos pais de uma debutante, e então eles puderam entrar.
Para gente como nós, que não vive esse mundo cotidianamente, parece um absurdo, certo? O leitor e eu nunca mais poríamos os pés lá, e talvez procurássemos meios de encher o saco do CTG racista. Mas isso somos nós, que não precisamos daquela instituição…
Outra coisa é o mundo da região colonial com passado e/ou presente ligado à pequena propriedade familiar. Há alguns palpites de que para esse pessoal, antes do nosso tempo (digamos, antes da década de 1990), a imagem do gaúcho se revestia de pelo menos dois valores muito fortes — o fato de andar a cavalo, para os colonos originais e as primeiras gerações de descendentes, revestia o gaúcho de uma aura de superioridade, relativamente à sua condição de camponeses; e o fato de o gauchismo como movimento ter vinculação com a terra, com o mundo rural, o fazia um irmão no apreço pela terra dos pais, a Vaterland dos germânicos. Também para esse pessoal, aderir aos símbolos e valores e práticas gauchescas seria, talvez, uma forma de ao mesmo tempo integrar-se com o novo mundo, em que agora viviam. Nesse universo, talvez seja e tenha sido menor o patriarcalismo e todos os demais traços do CTG, de forma que o Centro funcionava como um ponto de encontro social, coisa aliás essencial, ao menos para os germânicos, em geral, que adoram uma coisa associativa.
Já para o pessoal de cidades grandes o tradicionalismo tem outro sentido, creio: ele tenderia a ser mais claramente associado a uma rejeição ao mundo tecnológico, impessoal e frio que era a rotina vivida. Num CTG, o cara vai para dançar, ver gente da vizinhança, e, é claro, viver uma fantasia de integração com os outros e com um passado imaginário que proporciona, creio, quase a mesma coisa que o Freud chamou de sentimento oceânico, que a religião oferece. Seria neste caso menos preconceituoso este ambiente? Seria de averiguar. Aliás, outro palpite: a ascensão dos CTGs ocorre na proporção do enfraquecimento dos laços antes garantidos pela vida comunitária, via religião, rede familiar (família extensa e convivente) ou vizinhança.
O Tradicionalismo, por mais que nos pareça algo conservador e reacionário, tenho impressão de que é um refrigério para a alma de milhares.
IHU On-Line – Não é curioso que a cultura tradicionalista, de uma maneira geral, valorize como atributo dos gaúchos traços rústicos, chulos e grosseiros?
Luís Augusto Fischer – Mas ao lado desses traços há outros, que os acompanham de modo orgânico, e que são positivos (não importa aqui que sejam realmente existentes ou praticados): lealdade, apreço pela verdade, constância, fidelidade, conhecimento da vida difícil etc. Se colocarmos estes outros na balança, a coisa fica diferente. Eu mesmo acho admirável, por exemplo, a destreza manual implicada no mundo gauchesco, o saber fazer coisas, o conhecimento feito de experiência direta da vida rude e também transmitido através das gerações, por exemplo. Essa dimensão de continuidade, num mundo feito de fragmentos, provisoriedade, obsolescência programada, não tem um grande atrativo?
IHU On-Line – O senhor disse que a combinação de decadência com arrogância tem uma forma de se expressar própria do Rio Grande do Sul, a partir de suas raízes no mundo rural: a bravata. O que caracteriza essa decadência?
Luís Augusto Fischer – O começo dessa minha percepção veio de um palpite do colega e amigo Homero Araújo. Uma vez, conversando sobre, se não me engano, o filme feito sobre o romance do Tabajara Ruas, Netto perde sua alma, ele disse que ali, como em outros escritores gaúchos (Sérgio Faraco era outro), o que sempre se tinha era um duelo. A ética do duelo, disse ele, era o negócio. Isso me ajudou a ver a presença da bravata como um traço muito recorrente entre nós — a bravata é um estilo e uma ética de quem duela: eu não vou te deixar dizer a última palavra, não importa nem se eu precisar morrer para garantir. Isso pode ser visto na bravata do nosso hino, “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra” (que o Hique Gomes disse que deveria ser mudado para “Sirvam nossas modelos de façanha em toda a Terra”, pensando nas Giseles Bündchens e tal), assim como numa miríade de situações. De onde vem isso? Acho que se enraíza na luta (e na fantasia de luta) de fronteira, em que há um lá e um cá nítidos, e um dos dois pode morrer. Isso se perpetua em centenas de casos, que a gente conhece bem, como a lente grenalizada de ver o mundo, assim como na payada, em que dois disputantes se xingam ou procuram se superar até o infinito — a payada, muito mais que o repente (acho eu, sem ser especialista nesses dois gêneros discursivos tão aparentados), é uma luta simbólica que tende ao agônico, quer dizer, mistura o gozo do jogo com o sofrimento da vítima. A decadência objetiva da estância tradicional como matriz social e/ou mental da classe dirigente (pensemos na família de Getúlio Vargas, por exemplo) não impede que o gesto de aceitar o desafio permaneça vivo e atuante.
Sempre lembro de uma historinha que me foi contada por um querido colega, já falecido, professor de Filosofia no Anchieta 30 e tantos anos atrás, João Carlos Barbosa, cuja família tinha esse passado. A historinha dava conta de um estancieiro rico, do que hoje chamamos Metade Sul – como era de esperar –, que um dia passou pela casa de um posteiro seu, um funcionário que vivia num dos limites extremos da grande propriedade, cuidando de tudo, inclusive dos limites. O peão naturalmente era reservado, e a conversa foi breve. Quando patrão ia saindo, o peão disse que tinha algo a dizer, e o patrão esperou, e o peão não sabia como dizer… Até que o estancieiro disse que o cara devia falar logo, e então o posteiro desembuchou: era um aviso para que o patrão não retornasse à sede da fazenda por um determinado caminho, que era o seu habitual. Mas por que, quis saber o patrão; e o posteiro remanchou um pouco, mas finalmente revelou: soube que haviam preparado uma tocaia contra o patrão. Ele corria então risco de vida, indo pelo tal caminho. Qual a reação do patrão? Ficou meio brabo com o seu funcionário e disse algo assim: “Mas e por que tu me contou isso? Agora é claro que eu tenho que ir por esse caminho, se não vai parecer que eu tenho medo”. E foi, e morreu. É uma bravata, numa situação extrema, com componentes trágicos admiráveis.
IHU On-Line – E a arrogância, o que explica ou sustenta esse traço dos gaúchos?
Luís Augusto Fischer – Costuma ser o oposto complementar do sentimento de inferioridade que também nos acompanha: ora achamos que ninguém gosta de nós, que não nos valorizam ou nos levam a sério, ora achamos que somos os melhores do mundo. Essa desmedida oscilante faz parte da nossa relação com o centro do Brasil.
IHU On-Line – O que há de arcaico e de contemporâneo no estado?
Luís Augusto Fischer – Puxa vida, muita coisa. Fico em duas coisas: o arcaico (positivo) de prestigiar a conversa e a leitura, como se pode ver pelo sucesso de eventos como o Fronteiras do Pensamento e o Sarau Elétrico, e o contemporâneo (negativo) de uma geração de políticos horrorosa, igualzinha ao que se encontra em toda parte, com bancada evangélica capaz de sacrificar conquistas iluministas como a laicidade da escola em nome de divulgar a suposta palavra revelada, ou com políticos claramente regressivos como os dois citados acima.
IHU On-Line – De que maneira artistas, escritores e pesquisadores que atuam no Rio Grande do Sul se comportam em relação ao desânimo, à apatia e à crise que se verifica no estado?
Luís Augusto Fischer – Creio que estamos todos sem saber o que fazer, não apenas pelo que vemos aqui ou pelo que queremos mudar aqui no estado, mas porque nosso tempo atual é jogo duro — excesso de palavra para todo mundo, nas ditas redes, e falta de eco para as melhores coisas. Nosso momento histórico é claramente um ponto numa curva para baixo: no Brasil e no Ocidente em geral, desde a Segunda Guerra (com exceção do tempo da ditadura civil-militar entre 1964 e 1989) vivíamos uma onda ascensional de mais cidadania (mesmo durante a ditadura, a partir de meados dos anos 1970). Creio que é esta onda que agora está sendo revertida, ao menos temporariamente, com essas malas como o [Donald] Trump, o Temer, e em escala local o Sartori. Um alinhamento que nos leva para baixo em tantos sentidos. Vamos percebendo, sem muita novidade, que a força da cultura é fraca contra o mal, a covardia, a regressão no curto prazo. Nosso negócio é no longo prazo...
IHU On-Line – E a imprensa?
Luís Augusto Fischer – Fico realmente pasmo de não termos conseguido fazer publicações e veículos (até mesmo digitais) com eco, até agora. Como pode? O que nos falta, se sabemos que incontáveis amigos nossos gostariam muito de dispor de veículos assim? Será que estamos enganados?
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Crise do Rio Grande do Sul também é fruto do desprezo dos governantes pela cultura letrada. Entrevista especial com Luís Augusto Fischer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU