Por: Patricia Fachin | 28 Novembro 2016
Diante do pacote de ajuste fiscal anunciado na semana passada pelo governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, a pergunta a ser feita, diz Paulo Brack à IHU On-Line, é: “Quem ganha com fechamento ou venda de instituições públicas, em sua maioria com mais de 40 anos de existência, com a premissa de ‘corte de gastos públicos’?”
Na avaliação de Brack, a proposta do governador “representa ‘o corte da insignificância’”. Segundo ele, o valor de “130 milhões anuais cortados nas fundações representam 1,5% das isenções fiscais (8,9 bilhões de reais por ano) a grandes setores da economia gaúcha. Sem falar na evasão por sonegação fiscal, que chega a outros 7 bilhões, segundo o Sindicato dos Técnicos Tributários da Receita Estadual. Claro, exigir cobrança dos grandes inadimplentes é incomodar apoiadores e financiadores da campanha de 2014”. Brack diz ainda que o valor a ser economizado com a extinção das fundações “equivaleriam um pouco mais de três vezes o que a FIFA exigiu do estado para instalar, em 2014, estruturas temporárias da Copa do Mundo de Futebol no Estádio do Internacional”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Paulo Brack critica ainda a falta de um “ambiente para qualquer discussão técnico-econômica sobre a viabilidade ou não da permanência de cada órgão previsto para ser extinto”.
Como alternativa ao pacote, diz, o governo do estado poderia “justamente cobrar as dívidas e investir nas instituições que desempenham justamente papel essencial, como ciência, cultura, proteção da biodiversidade e meio ambiente, e planejamento socioeconômico-ambiental, tudo isso que fazem as fundações e os setores que se prevê extinguir”.
Paulo Brack | Foto: Ramiro Furquim / Sul21
Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Desde 2006 faz parte da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio e representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema/RS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor recebeu a notícia de que o governador Sartori pretende extinguir 11 órgãos do estado? Como avalia essa medida no atual momento político e da crise financeira do estado do Rio Grande do Sul?
Paulo Brack - Fiquei - como muitas pessoas - chocado e estarrecido pela ousadia e brutalidade da medida. É um retrocesso incomensurável, ainda a ser contabilizado. O governo desconhece, ou não quer conhecer, o papel destas instituições que prestam serviços públicos essenciais inestimáveis ao estado, seja em pesquisas e planejamento das políticas públicas, via Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde - FEPPS, Fundação de Economia e Estatística - FEE, Fundação Zoobotânica - FZB, Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional - Metroplan, Fundação de Ciência e Tecnologia - Cientec, Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária - Fepagro, Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos - FDRH, e na informação pública, cultura de nossas raízes e da produção artístico-cultural, Fundação Piratini, TVE e FM Cultura e Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore - FIGTF.
Não dá para entender a total falta de sensibilidade da proposta. Provavelmente, seus proponentes devem sofrer de um tipo de obsessão neoliberal profunda que se encaixa na onda reinante no Brasil e no mundo atual. Um “neothatcherismo”, à moda gaúcha. Nosso governador e seu vice, lamentavelmente, alinham-se com seu impopular e ilegítimo presidente da República, hoje via PEC 55, e pelas chamadas reformas que são, na realidade, ajustes neoliberais (previdência, trabalhista etc.) promovidos por ministros que são alvos de ações no STF ou com problemas na justiça.
Há mais de duas décadas, o ex-presidente da Argentina Carlos Menem subjugou aquele país a um tratamento de choque deste tipo, o que a jornalista canadense Naomi Klein chama de Doutrina de Choque, agora não mais via golpes militares, mas por meios parlamentar-midiáticos. Tal projeto, anos depois, demonstrou imenso fracasso em sua estratégia, sendo inclusive o ex-presidente condenado e preso por corrupção, no ano passado. Fica a pergunta: quem ganha com fechamento ou venda de instituições públicas, em sua maioria com mais de 40 anos de existência, com a premissa de “corte de gastos públicos”?
IHU On-Line - O governo do estado argumenta que as medidas irão gerar uma economia de 146,9 milhões por ano. Além disso, segundo o governador as instituições mantidas pelo estado devem servir às pessoas, o que em alguns casos não está acontecendo. Como vê esse tipo de argumento e qual deve ser o impacto dessa medida?
Paulo Brack - Cabe destacar que a justificativa do PL 246/2016, que extingue fundações, tem somente dois magros parágrafos que dão a dimensão da desconsideração com a condição pública, um deles merecedor de transcrição: “As circunstâncias atuais exigem que tenhamos uma estrutura administrativa enxuta, transparente, eficaz, inserida em um modelo pautado pela modernização da gestão e pela priorização das atividades-fim do Estado.” O pacote de Sartori representa “o corte da insignificância”. O governo vai querer economizar no “cafezinho”, ou pior, no corte do uso de “vitamina” para a vida enfraquecida cerebral e da funcionalidade corporal do estado. Os cerca de 130 milhões anuais cortados nas fundações representam 1,5% das isenções fiscais (8,9 bilhões de reais por ano) a grandes setores da economia gaúcha. Sem falar na evasão por sonegação fiscal que chega a outros 7 bilhões, segundo o Sindicato dos Técnicos Tributários da Receita Estadual. Claro, exigir cobrança dos grandes inadimplentes é incomodar apoiadores e financiadores da campanha de 2014...
Por outro lado, o governo do estado argumenta que vai se focar nas áreas chamadas “essenciais”, limitando-se, reiteradamente, às áreas de educação, saúde, segurança e infraestrutura. E, me pergunto, biodiversidade (FZB), ciência e tecnologia (FEE, Cientec, Fepagro), pesquisa em vacinas e doenças (FEPPS), planejamento (Metroplan, FEE), cultura (Fundação Piratini, FGTF) não são essenciais? E o que significa então infraestrutura? Reproduzir a velha lógica colonial de infraestrutura em vias e portos para a exportação de matérias-primas, ou commodities, via grãos de soja, pasta de celulose e minérios, com altos custos socioambientais?
Nós aprofundaremos uma situação que deixa este estado como um corpo alimentador de uma economia do tipo “vampiro”, via exportação de matérias-primas ou commodities e com endividamentos crescentes do estado e do setor produtivo, em grande parte refém do capital financeiro. Vamos entrar no rol do centro da “periferia econômica” mundial?
IHU On-Line - O que seria uma alternativa ao pacote anunciado pelo governador?
Paulo Brack - Voltando aos valores anunciados de 130 a 140 milhões de reais de cortes, os mesmos equivaleriam um pouco mais de três vezes o que a FIFA exigiu do estado para instalar, em 2014, estruturas temporárias da Copa do Mundo de Futebol no Estádio do Internacional. E os governos municipal e estadual assumiram prioridade em obter recursos para isso. Outra comparação, a compra dos 36 aviões-caça que o Brasil está adquirindo da Suécia, em valores de 500 milhões de reais cada um deles (o valor total dos 36 é 18 bilhões), o valor “economizado” corresponderia a menos de 1/3 do valor de um só avião.
Em situação de crise o que é mais importante? Por que o estado do RS não cobra do governo federal e do Congresso a retirada das bilionárias isenções da Lei Kandir, e as compensações que deveriam vir do governo Federal? Lembramos aqui também os 7 bilhões de reais de sonegação de impostos no estado. Então, o que se alega “economizar” com a extinção das fundações e o fechamento de setores como a CORAG (que dá lucro!) é algo menos do que 1% das desonerações e/ou sonegações ou menos do que 0,5% do orçamento do RS!
Por que a grande imprensa, representada principalmente pelo maior oligopólio de informação do RS, não esclarece isso? Este pacote-guilhotina é defendido, de forma descarada, pelas grandes emissoras de rádio, TV e jornal, que deveriam ser denunciadas por propaganda enganosa, junto com o governo. A alternativa seria justamente cobrar as dívidas e investir nas instituições que desempenham justamente papel essencial, como ciência, cultura, proteção da biodiversidade e meio ambiente, e planejamento socioeconômico-ambiental, tudo isso que fazem as fundações e os setores que se prevê extinguir.
IHU On-Line - Como a extinção da Fundação Zoobotânica está repercutindo entre os funcionários da fundação e os especialistas da área ambiental?
Paulo Brack - O orçamento anual da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, instituição criada em 1972, corresponde a 0,045% do orçamento do estado. A FZB presta serviços essenciais inclusive para fazer frente aqui ao cenário mundial de perda em biodiversidade, agravado pela Sexta Extinção em Massa, e num quadro em que temos, por exemplo, um crescimento de 33% de espécies ameaçadas da flora do RS, entre 2002 e 2014. Estamos cobrando da SEMA o porquê de não cumprir o Decreto 51.797/2014 e o Decreto 52.109/2014, respectivamente referentes às listas de fauna (280 espécies) e flora (804 espécies) ameaçadas, e por que não toma providências para a necessária revisão e montagem de banco de dados e programas ambientais para enfrentar esta questão.
A instituição possui coleções fundamentais de exemplares de flora e fauna, inclusive presta serviço de conservação in situ, tanto no Jardim Botânico como no Zoológico. O planejamento da conservação e a promoção da biodiversidade dependem da FZB, por meio de seus técnicos altamente gabaritados. A mera condição de possibilidade de repassar estes serviços para entidades privadas joga esta questão urgente em maior incerteza, descaso típico de um governo que não colocou uma linha sequer da temática ambiental em seu programa de governo antes das eleições. Se prevê um estado de calamidade para a biodiversidade e para a Ciência no RS. No ano passado, o próprio Secretário da Convenção da Diversidade Biológica da ONU, Bráulio Dias, manifestou-se em defesa da permanência da entidade que desenvolve inúmeros convênios e colaboração com instituições internacionais e nacionais na temática da conservação dos ecossistemas e das espécies ameaçadas.
Vejamos outra questão, para garantir atividades fundamentais, inclusive em relação, por exemplo, à produção de soro antiofídico específico com serpentes nativas criadas exclusivamente pela instituição. No que se refere à flora, também, são centenas de plantas conservadas em condição ex situ (fora da natureza) que necessitam de cuidados, até como forma de compensação de atividades que implicaram sua remoção da natureza. Fica também comprometida a produção, por exemplo, de mudas de plantas nativas de centenas de espécies abrigadas no viveiro e coleções vivas do JB, situação que não existe em nenhum outro viveiro ou instituição do estado. Obviamente, as dezenas de técnicos, a sua quase totalidade com doutorado, e outros com enorme experiência de décadas em várias áreas, estão ameaçados junto com este enorme patrimônio.
Lembro-me que no ano passado a campanha em prol da FZB esteve junto com a FEPPS. Esta outra instituição atua em linhas importantíssimas na pesquisa com doenças como tuberculose, hepatites, meningites e AIDS, doenças genéticas raras e investigação de paternidade/maternidade em linhas, com ênfase no desenvolvimento de métodos de diagnósticos. Tudo isso vai para onde? O governo não tem plano B elaborado para a continuidade destas atividades, o que corresponde à suspensão destas atividades que considero estratégicas.
IHU On-Line - Em 2015 o governo já havia mencionado a possibilidade de privatizar a Fundação Zoobotânica. Ao longo do último ano, como essa questão foi discutida entre funcionários, especialistas e o governo? Que propostas foram apresentadas por aqueles que eram contrários à extinção da Fundação e qual foi a resposta do governo?
Paulo Brack - Houve a concordância na FZB, com os técnicos, no sentido de se envidar esforços para a redução de custos e, inclusive, buscar recursos através de convênios e prestação de serviços, situação que já é feita em dezenas de situações na instituição. O ex-presidente da instituição, José Alberto Wenzel, obteve êxitos importantes neste sentido de aperfeiçoamento, inclusive reduzindo custos, e quando anunciou seu plano ao governador, em uma semana foi demitido. Ou seja, para o governo a decisão é meramente político-ideológica de refundar o “Estado Mínimo” no RS, situação antes iniciada pelo governador Antônio Brito.
Então, não existe um ambiente para qualquer discussão técnico-econômica sobre a viabilidade ou não da permanência de cada órgão previsto para ser extinto. E, obviamente, cortar a Fundação Zoobotânica agrada a agenda do setor econômico imediatista e atrasado, que vê as posições dos técnicos em defesa da biodiversidade do RS como algo que atrapalha seus negócios. Isso acontece com a silvicultura e as grandes empresas de celulose e que têm trânsito privilegiado no Piratini e reclamam das posições dos técnicos da área ambiental, principalmente desta Fundação.
IHU On-Line - O que deve acontecer com o acervo da Fundação Zoobotânica caso a instituição venha a ser extinta? O que o governo do estado propõe que seja feito com o acervo?
Paulo Brack - O governo nunca se preocupou com isso. Mostra-se ambientalmente cego ou sofre de miopia econômico-ambiental. Não tem nada concreto para manter os acervos vivos ou exemplares de coleções de centenas de milhares de coletas de exemplares científicos guardados na instituição, por meio do Museu de Ciências Naturais que desapareceria também. É um obscurantismo sem precedentes! E como conceber que se descartem conhecimentos ambientais fundamentais de sua equipe técnica para o estado fazer frente a um dos maiores dilemas de nossa civilização, no caso das mudanças climáticas, da poluição do ar e da água, além da perda acentuada de biodiversidade? A mesma negligência vai se dar em outras áreas como ciência, pesquisa em saúde, cultura, o planejamento econômico e regional, entre outras áreas, em estado de calamidade se houver a concordância do parlamento gaúcho na aprovação de tal pacote.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Paulo Brack - Se os projetos passarem, o que é melhor nem pensar, vai haver muita resistência, e podemos prever uma calamidade científico-cultural, o que se poderia chamar a fundação da “Província de São Pedro do Obscurantismo”. Vamos todos gaúchos e brasileiros lutar para que isso não ocorra!
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“O pacote de Sartori representa o corte da insignificância”. Entrevista especial com Paulo Brack - Instituto Humanitas Unisinos - IHU