13 Fevereiro 2012
"São Sepé Tiaraju com seus mil e quinhentos mártires guarani, junto com as Missões Jesuíticas dos Sete Povos do Rio Grande, ressuscitaram definitivamente no coração e na alma de nosso povo sul-riograndense", atesta Antonio Cechin, irmão marista e miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
O testemunho desta ressurreição é a "verdadeira catadupa de fatos reveldores" que o Irmão Cechin narra.
Eis o artigo.
Nos últimos dias houve verdadeira catadupa de fatos reveladores incontestes de que São Sepé Tiaraju com seus mil e quinhentos mártires guarani, junto com as Missões Jesuíticas dos Sete Povos do Rio Grande, ressuscitaram definitivamente no coração e na alma de nosso povo sul-riograndense. Senão, vejamos:
Nos dias 26 e 27 de novembro de 2011, na cidade de Canoas, um grupo de uns 30 ciclistas fizeram "o Caminho de São Sepé Tiaraju". Entenderam como tal, o percurso realizado em transporte ecológico por excelência que é a bicicleta, percorrendo centro e periferias da cidade, detendo-se em pontos estratégicos e significativos, sempre propícios para desenvolver temas ecológicos. Aqui o local de recuperação de uma nascente de água, ali um lugar público a exigir despoluição através de uma coleta do lixo que foi jogado a esmo por uma população ainda analfabeta em termos de meio-ambiente saudável, acolá o plantio de alguma árvore e assim por diante.
A si mesmos, os corredores se auto-denominaram "Herdeiros de Sepé Tiaraju" tal a maneira com que haviam sido conscientizados pela anterior geração, a que pertencem seus progenitores e seus educadores, sobre preservação do planeta, hoje convertido em Terra de Todos os Males, em contraposição ao verdadeiro Paraíso Terrestre que nos foi legado pelo herói-santo, o prefeito de São Miguel das Missões e comandante do exército guarani, iluminado pelo projeto social, político e econômico de uma Terra Sem Males, utopia dos Sete Povos das Missões.
No dia 14 de dezembro último, foi realizado um treino, nas Ilhas do Guaíba, da grande "bicicletada" estadual, a ser desenvolvida por ocasião do dia de São Sepé e companheiros mártires. Foram escolhidas as ilhas do Guaíba, especialmente a ilha Grande dos Marinheiros, pelo simples fato de serem cenário do mais escrachado contraste entre as comunidades mais pobres de toda a região metropolitana face às mais ricas mansões dos nababos da capital dos pampas.
O treino no lugar mais pobre, preparou com perfeição a ida ao encontro de Quilombolas, Índios, Sem Terra, Catadores, Pequenos Agricultores recém-assentados e Comunidades Eclesiais de Base interioranas.
Nos dias 23 a 27 de dezembro realizamos, em Porto Alegre, o Fórum Social Temático ano-2012. Como todos os Fóruns Sociais Mundiais, o deste ano teve novamente como mote "um novo mundo é possível se a gente quiser". Além de oficinas, conferências de painelistas etc. os companheiros bicicleteiros criaram uma oficina coordenada pela CUT, pela Federação das Associações de Recicladores do RS (FARRGS) e pela Associação Caminho das Águas, sobre Políticas Públicas: Recursos Hídricos e Reciclagem de Resíduos Sólidos. Duas frentes nevrálgicas para a despoluição do Planeta, que funcionam casadas: os mananciais hídricos e os resíduos sólidos. Estes sendo reciclados por mais de um milhão de Catadores no Brasil a fim de acabar com a perversa tradição no Brasil e no mundo de lançar tudo o que é lixaredo dentro dos rios. É a famosa operação transformadora dos pseudo párias da civilização urbana, assim apelidados os carroceiros, carrinheiros e pepeleiros, pelos civilizados urbanos, nos autênticos Profetas da Ecologia, reconhecidos como tais pela teologia da libertação.
Findo o Fórum Social Mundial tomamos a resolução de, no próximo Fórum em Porto Alegre, montaremos uma oficina a fim de comunicar a quantos vierem participar que o Novo Mundo não é somente possível. Muito mais do que isso queremos provar a todos que ele já existiu há quatrocentos anos atrás aqui no Rio Grande do Sul, nas Missões Jesuíticas nas Missões dos Sete Povos, na Terra Sem Males dos Guarani onde imperava o princípio "de cada um de acordo com suas possibilidades para cada um de acordo com suas necessidades". Foi a rica experiência da República "Comunista" Cristã do Povo Guarani.
No dia 2 de fevereiro, véspera do grande evento anual em honra de São Sepé, realizamos ainda, como aperitivo à bicicletada, a Procissão Fluvial de Nossa Senhora dos Navegantes. Neste ano, na marcha triunfal da Rainha da Ecologia e padroeira principal de Porto Alegre, lá estavam nossos bicicleteiros disseminados entre o grupo de teimosos devotos que, desde o ano de 1989 em que os navegantes foram transformados em caminhantes, rezamos e cantamos à Rainha das Águas ao mesmo tempo "madrinha dos que não têm madrinha" nas súplicas do mártir quilombola Negrinho do Pastoreio, amparo e proteção ao longo dos 250 quilômetros de percurso da nossa maratona estadual.
Dia 3 de fevereiro, desde as 8 horas da manhã até dia 7 às 22 horas, realizamos então "o Caminho de São Sepé Tiaraju" que também designamos como a "Nona Peregrinação em Busca da Terra Sem Males". Desde 2004 até 2012, sem solução de continuidade, a cada ano que passa, estamos nós, tendo como símbolo o meio de transporte que além de mais ecológico é o mais saudável, visitando os mais excluídos e deserdados de nosso Rio Grande. Pobres visitando pobres a fim de conhecer sofrimentos, problemas, carências desses nossos irmãos para lhes servirmos de porta-vozes e apoiadores em suas lutas por melhores condições de vida.
O Caminho de São Sepé é uma réplica da Via Sacra que os cristãos costumamos realizar no contexto da Semana Santa em seguimento do Senhor dos Passos ou seja, a caminhada final do Homem Jesus de Nazaré sofrendo Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão aos céus. Através desta Caminhada dolorosa Jesus deu demonstração plena de que é autenticamente Caminho, Verdade e Luz para a humanidade inteira.
De Rio Pardo a São Gabriel, São Sepé Tiaraju e seus mil e quinhentos companheiros mártires guarani sofreram também sua paixão, morte, ressurreição e ascensão aos céus, numa demonstração de que "não há maior prova de amor do que dar a vida por seus irmãos" segundo a palavra canonizadora de Jesus, de todo aquele que morre mártir. São Sepé definitvamente disse ao mundo a que vinha, segundo o nome que lhe deram. Tiaraju em guarani quer dizer "Facho de Luz" a iluminar todos os riograndenses do sul.
O primeiro ato da Peregrinação foi a meio caminho da estrada asfaltada que liga Pantano Grande com a cidade de Rio Pardo. Ali existe um lindo local onde uma fonte de água límpida jorrava dia e noite para gozo de viajantes de todo tipo: gente a pé e a cavalo mais antigamente, gente embarcada em carroças, depois em automóveis, ônibus, motos e bicicletas. Muros elegantes enquadram a bica da água. Três filas de cinamomos fornecem sombra fechada para viajantes em dias caniculares. A estrada caprichosamente duplicada num trecho de 50 metros, a fim de facilitar o estacionamento de pessoas e carros, Qualquer ser vivo, pessoa ou animal, necessitado de matar a sede, de se refrescar, de encher radiadores. Tudo muito limpo e bem sombreado. Junto à fonte, até uma tabuleta marcando parada do ônibus de passageiros a fim de que eles próprios como viandantes, tenham ocasião de espichar as pernas e sorver do rico manancial. Uma linda pintura em azulejos, de paisagem familiar e campestre em cores vivas, dando o tom de total acolhimento.
Mas e a água? Cadê a água?... se perguntam imediatamente todos os bicicleteiros estacionados. Acontece então a desilusão total. A água tão deliciosa de antanho se acabou. Nem mais torneira existe. A causa? Logo atrás do lindo muro azulejado, com sua tão linda pintura, uma imensa plantação de eucaliptos, a perder de vista. Essa verdadeira floresta da planta exótica vinda do continente australiano, acabou com todas as fontes da região. Não estranha portanto que o Rio Grande do Sul esteja vivendo terríveis tempos de seca.
Estamos em pleno coração do latifúndio. De chofre somos mergulhados na história. Morto São Sepé Tiaraju, defenestrado o povo guarani e destruiídos os Sete Povos das Missões, os senhores oficiais militares receberam em recompensa, nestes mesmos lugares em que se deu a guerra guaranítica, as sesmarias prometidas. O latifúndio ocupou absolutamente tudo. A Terra Sem Males do Povo Guarani, abençoada por Deus e seu Arcanjo São Miguel virou a atual terra de todos os males. A mentalidade cultural que impera em toda a região que atravessamos em nossa peregrinação é a dos grandes fazendeiros, totalmente insensíveis diante dos pobres e diante dos males que infligem ao meio-ambiente. Oprimem ao mesmo tempo pobres e natureza. Não é por mero acaso que a ocupação da Fazenda Southal produziu ultimamente mais um mártir de nome Élton, da estirpe de São Sepé Tiaraju.
Entrando na cidade de Rio Pardo, o foco principal de nossas atenções, além da Tranqueira onde Sepé esteve preso, foram os quilombolas, pelo fato de Rio Pardo durante longos anos ter tido escravos que foram os reais construtores da cidade, principalmente dos principais monumentos e ruas tais como a Igreja Matriz, a calçada do imperador, etc. Também continua de pé uma senzala, lugar obrigatório para quem quer conhecer o apartheid reinante em nosso Brasil que foi o último país do mundo a abolir a escravatura.
Na Tranqueira portuguesa, Sepé esteve preso, porém conseguiu se evadir num golpe de inaudita coragem. O nome Tranqueira foi dado porque o forte tinha a finalidade de servir de estorvo ao povo guarani em sua vigilância permanente sobre estranhos que viessem do lado do mar. Não somente para fazer escravos para os bandeirantes, mas também para roubar gado das estâncias guarani que se estendiam até as "vaquerias del mar".
Neste local da antiga fortaleza, fizemos um ato soleníssimo em homenagem a Sepé, contando com a presença de mais de mil jovens do movimento "Levante da Juventude", que, vindos de todo o Brasil, estavam reunidos em Santa Cruz do Sul debatendo seus problemas.
Entretanto a maior emoção que tivemos em Rio Pardo aconteceu na visita que fizemos à Comunidade quilombola do Rincão dos Negros. O calor humano com que fomos acolhidos, jamais poderemos esquecer. As lágrimas nos vieram aos olhos enquanto nos contavam a própria história, particularmente as lutas do presente, pelo simples fato do direito que adquiriram a partir da constituição brasileira do ano de l988, a cidadã.
Nada menos que uma extensão de terra de 1.500 hectares é a terra a que tem direito a comunidade sobrante de 30 famílias que ainda resistem à ocupação branca de latifundiários. Correm risco de vida no local. Qualquer movimentação que façam ou visita que recebam não escapa da observação dos olheiros de mau olhado porque não admitem devolução de apenas 500 hectares, ou seja um terço das terras a que teriam direito.
Aí também aparece sem rebuços o apartheid histórico de nossa própria igreja até o Concílio Ecumênico Vaticano II: duas capelas católicas, a primeira bem pobrinha e a outra flamante, distanciadas apenas de 20 metros, ladeadas dos respectivos locais de festa num aberrante contraste. O orago de ambas é Nossa Senhora da Conceição. O sacerdote rezando missa de um lado e de outro, e em 8 de dezembro que é dia da padroeira, a procissão dos negros indo para o lado esquerdo e a dos brancos, colonos imigrantes europeus, do lado direito. Podemos imaginar o que poderá ter sido a alimentação festiva de um lado e do outro. Hoje devido ao problema terra, só os negros continuam fazendo sua festa anual na capela. Os brancos, em guerra aberta, não conseguem sopitar o próprio racismo.
Na cidade de São Sepé nossa atenção se concentrou numa Comunidade Eclesial de Base da periferia da cidade. Depois de trocarmos experiências entre nossas Cebs urbanas e rurais, o que mais nos impressionou na comunidade sepeense, foi sua abertura ecumênica e ecológica. Junto com esta Comunidade, recolhemos o lixo deixado pela população num parque campestre. Também juntos visitamos um terreiro de umbanda vivendo em comunhão com a comunidade nas duas dimensões: a religiosa e a ecológica.
Em São Gabriel já estavam os índios guarani do Rio Grande do Sul à nossa espera no parque tradicionalista. Durante dois dias estavam planejando suas ações para o ano todo de 2012. Aprofundamos nosso relacionamento com os dois povos presentes: os guarani e os kaingang.
Dia 7 de fevereiro, data do martírio de Sepé Tiaraju, fomos todos à grande celebração guarani na Sanga da Bica, o lugar histórico em que o grande guerreiro e prefeito da cidade de São Miguel embebeu a terra com seu precioso sangue. Dentro de uma oca construída especialmente para o ato, não faltaram orações, discursos, cantos e danças típicas do povo guarani em memória de seu grande herói-santo.
No caminho de volta para Porto Alegre, ainda demos uma entrada na cidade de Caçapava, sendo acolhidos por pessoas e órgãos da administração municipal. Os ciclistas aproveitaram para uma viagem de 8 quilômetros até a famosa Pedra do Segredo. Se hoje, na rua, qualquer caçapavano for interrogado sobre qual o segredo da Pedra do Segredo, ele imediatamente responderá: "É que lá, na gruta existente, o grande Prefeito São Sepé Tiaraju foi sepultado. Foi daqui desta nossa região que nosso santo com seus 1.500 companheiros também mártires, "tomou no céu posição. Sepé é hoje o Cruzeiro do Sul."
Como conclusão de nossa 9ª Peregrinação em busca da Terra Sem Males, legado de São Sepé, participaremos em Porto Alegre, do 1° Congresso Internacional de Ciclismo, a realizar-se entre os dias 23 e 26 deste mês de fevereiro. Fomos convidados a organizar uma das oficinas do evento pelos "bicicleteiros da Massa Crítica". Com o imbroglio que arrumaram com seus passeios ciclísticos pela cidade quando da arremetida daquele estranho cidadão que com seu automóvel quis dar "lições", o grupo "Massa Crítica" colocou o ciclismo porto-alegrense no mapa mundial. O resultado está aí: Não bastasse ser cidade do Fórum Social Mundial, nossa capital também será sede de congressos internacionais de ciclismo.
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São Sepé Tiaraju e os Sete Povos das Missões ressuscitam no coração do povo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU