02 Julho 2007
"Quando nada mais houver, / eu me erguerei cantando, / saudando a vida / com meu corpo de cavalo jovem. // E numa louca corrida / entregarei meu ser ao ser do Tempo / e a minha voz à doce voz do vento", disse Caio Fernando Abreu em Alento. Baseado em sua obra, Ana Maria Cardoso concluiu a tese “Caio Fernando Abreu: o entre-lugar de cartas e contos”. Sobre a pesquisa, Ana diz que “a expressão literária de Caio Fernando Abreu demonstra o impacto das forças sócio-históricas no cotidiano dos sujeitos dos anos 1970”. Assim, a IHU On-Line, entrevistou Ana, por e-mail. Ela define o que há de sonho e o que há de transgressão na obra deste expoente escritor brasileiro. Na conversa, Ana fala também sobre o jovem de hoje que lê a obra de Caio Fernando Abreu e sobre como o autor discutia sua doença em seus textos.
Ana Maria Cardoso é Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS. Na mesma universidade, graduou-se em Literatura e fez especialização em Educação. Seu mestrado, em teoria da literatura, foi realizado na PUCRS. É autora do livro A justa medida: um estudo de Osman Lins (Caxias do Sul: Editora do Maneco, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você define o sonho e a transgressão na obra de Caio Fernando Abreu?
Ana Cardoso - A expressão literária de Caio Fernando Abreu demonstra o impacto das forças sócio-históricas no cotidiano dos sujeitos dos anos 1970. Durante o período, a sociedade vivenciava um período traumático, pois havia uma violência institucionalizada pelo regime militar e um estímulo ao pensamento padronizante voltado aos interesses no desenvolvimento da economia. A coletânea de contos O ovo apunhalado (1) revela um escritor atento aos movimentos rebeldes, como a Contracultura, o rock’n’roll, a Tropicália (2). Aliás, ele faz com que estes elementos sejam incorporados à sua literatura de maneira contundente sempre com um estilo singular em relação à literatura brasileira e à sul-rio-grandense. A inquieta atitude de Caio, tanto a do escritor quanto a do sujeito social, deve-se a uma atitude de transgressão permanente, uma vez que ele não aceitou as imposições, as convenções da época. Isto porque teve coragem de sonhar com uma sociedade mais humana, criativa e sensível.
IHU On-Line - Caio mostrava a realidade dos jovens das décadas de 1970 e 1980. Como você vê o adulto de hoje que acompanhou sua obra?
Ana Cardoso - Uma significativa parcela destes leitores se viu representada na obra de Caio, uma vez que ele soube expressar o silêncio opressivo que se expandia nas mesas de jantar, nas salas de aula, nas ruas e, simultaneamente, uma força de reação a isso pelo trato de temas marginais, ou por uma linguagem literária ousada: o uso de gírias, o palavrão e ainda o uso de conhecimentos que não se faziam presentes na literatura, como a ioga, o I-Ching (3) e a astrologia. Como estas gerações tinham a intenção de mudar os valores tradicionais e autoritários e não tinham acesso fácil à informação e ao conhecimento diversificado, os livros se consolidaram como um foco de resistência e subversão. Através das leituras dos contos de Caio havia o fortalecimento do sonho coletivo e pessoal: acreditava-se que se podia fazer diferente.
IHU On-Line - Você acredita que o jovem dos anos 1990 e 2000 se reconhece na obra de Caio? Ela continua contemporânea?
Ana Cardoso - Os jovens dos anos 1970 e 1980 procuraram abolir a tradição, seja ela da família, da escola, da Igreja ou do Estado. Infelizmente, a renovação destes valores não teve tempo de se fortalecer e, após a abertura democrática, a indústria se sentiu autorizada a transformar tudo, inclusive os valores libertários, em mercadoria. O que se observa é que as forças que vigoram hoje não são muito diferentes das que permeavam o cotidiano nos anos ditatoriais. No entanto, obviamente que, agora, se encontram de forma atenuada. Talvez por isso a nova geração tem se sentido atraída pela obra do contista. A obra de Caio exprime uma vivacidade que é rapidamente reconhecida pelo leitor interessado na condição humana; por esta razão, a obra tende a permanecer, já que o lirismo e universalidade são, sem dúvida, o seu maior legado.
IHU On-Line - Como Caio Fernando Abreu encarava esses tempos em que a democracia cedeu lugar a um regime de exceção ou a uma ditadura militar?
Ana Cardoso - É importante dizer que no conturbado ano de Maio de 1968 (4), Caio era um jovem estudante de 20 anos. Durante os anos 1970, exigia-se dos artistas e intelectuais um engajamento em relação à arte, ou seja, esperava-se que ela fosse diretamente combativa ao regime militar. Caio subverte esta ordem em busca de inusitadas formas expressivas, por meio do diálogo com a literatura latino-americana, com escritores como Julio Cortázar (5) e Gabriel García Márquez e, no contexto brasileiro, com as literaturas de Clarice Lispector (6) e Hilda Hilst (7). Aqui, o escritor ultrapassa o previsível, pois demonstra que os eventos históricos influenciam a vida social e particular das pessoas. Por isso, as coletâneas O ovo apunhalado e Pedras de Calcutá, elaboradas durante os anos ditatoriais, exprimem o desespero, o terror e a angústia dos indivíduos que não se reconhecem no que é instituído socialmente. Isto porque o comportamento ousado na maioria das vezes não é aceito pela sociedade inclusive nos dias de hoje.
IHU On-Line - Como você vê a discussão a respeito do HIV/Aids na obra de Caio Fernando Abreu?
Ana Cardoso - Caio sempre ousou no seu ofício de escritor e de jornalista, assim como na própria vida. As suas cartas são reveladoras neste sentido. É muito instigante que grande parte das mudanças que vivenciamos hoje se deva ao período dos anos 1960 e 1970. Aqui é possível enumerar vários movimentos, sendo que o principal deles foi o da revolução sexual, estimulado pelo feminismo e pelo direito à livre expressão sexual. Caio escreveu a respeito destes temas e inclusive discutiu o impacto do HIV/Aids na sexualidade, isto é, assinala o quanto a possibilidade da contaminação faz com que as pessoas se tornem mais distantes e impessoais nas relações amorosas.
IHU On-Line - Quais são as obras que você destacaria de Caio que apresentam rupturas temáticas, transgressão e ousadias formais até então pouco recorrentes entre os escritores?
Ana Cardoso - Os contos de O ovo apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977) e Morangos mofados (1982) são fundamentais para entender a literatura de Caio Fernando Abreu, porque neles se encontra a essência do seu fazer literário. Há ainda as intensas e líricas crônicas de Pequenas epifanias(1996), publicadas originalmente nos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo.
Notas:
(1) Publicada em 1975, a coletânea de contos O ovo apunhalado apresenta uma diversidade tanto ficcional quanto formal, sendo situada na vertente social da literatura do Rio Grande do Sul, já que muitos contos enfocam a discussão de problemas sociais, como a opressão do homem pelo homem, a dificuldade de interação social, a solidão e as crises existenciais de sujeitos em busca de sua própria identidade. Com freqüentes referências ao contexto social da década, as narrativas se propõem a representar a sociedade por meio de uma linguagem sem muitos arranjos formais, mas que mescla denotação e conotação, o “real” e o surreal, o individual e o coletivo, mostrando como a literatura pode interiorizar a sociedade à sua própria estrutura estética.
(2) Foi um movimento cultural que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, mesclando manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960.
(3) O I Ching, ou Livro das Mutações, é um texto clássico chinês composto de várias camadas, sobrepostas ao longo do tempo. É um dos mais antigos e um dos únicos textos chineses que chegaram até nossos dias.
(4) Em 2 de Maio de 1968, iniciou o "maio de Paris”, ou seja, foi o dia em que os estudantes se manifestam contra o "status quo". Barricadas foram levantadas nas ruas e ocorreram confrontos com a polícia. No dia 3 de Maio, a Universidade de Sorbone é fechada pelas autoridades. A UNEF (Union nationale des étudiants de France) organizou passeatas que são dissolvidas com violência cada vez maior pela polícia. Em 10 de Maio, aconteceu a "noite das barricadas". Os estudantes ganharam as simpatias de bancários, comerciários, funcionários públicos, jornaleiros, professores e sindicalistas, que aderiram à causa estudantil. De protesto estudantil contra o autoritarismo e anacronismo das academias, rapidamente o movimento, com a adesão dos operários, transforma-se numa contestação política ao regime gaulista.
(5) Escritor argentino. Seu livro mais conhecido é o romance O jogo da amarelinha (1963). No entanto, a maior parte de sua obra é composta por livros de contos.
(6) Foi uma escritora judia brasileira nascida na Ucrânia, na época uma República Socialista Soviética. Seu romance mais famoso, embora menos característico, quer temática quer estilisticamente, é A hora da estrela, o último publicado antes de sua morte.
(7) Poeta, escritora e dramaturga brasileira. Hilda Hilst escreveu por quase cinqüenta anos, tendo sido agraciada com os mais importantes prêmios literários do Brasil.
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O ontem e o hoje em Caio Fernando Abreu. Entrevista com Ana Maria Cardoso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU