31 Março 2017
“Pensei que conhecesse o Central. Mas só agora passei a conhecê-lo.”
A frase, dita por um oficial da Brigada Militar que, em períodos alternados, integrou por quase uma década a força- tarefa que atua no presídio, resumiu sua sensação ao término de uma das sessões de pré-estreia do documentário Central, em Porto Alegre.
O comentário é de Renato Dornelles, publicado por Zero Hora, 29-03-2017.
O pensamento do policial militar, um major, hoje na reserva, não é muito diferente do meu e de muita gente que acredita conhecer o Central. Com 30 anos de jornalismo, boa parte em reportagens na área de segurança pública, cobrindo questões relacionadas à criminalidade, ao trabalho policial, aos sistemas jurídico, penal e, principalmente, penitenciário, aprendi durante as filmagens e a montagem do documentário que nunca sabemos o suficiente a respeito do presídio para nos considerarmos exímios conhecedores de suas particularidades.
Estas são muitas e dinâmicas. Transformam-se do dia para a noite, infelizmente, seguindo o frenético ritmo imposto pela criminalidade.
Central segue uma sequência de trabalhos iniciados com uma série de reportagens em 10 edições do Diário Gaúcho, em 2007, sobre o crime organizado no Estado. Premiado, o trabalho virou livro, lançado no ano seguinte, com o título Falange Gaúcha – O Presídio Central e a História do Crime Organizado no RS.
Tão interessada nos temas prisional e do crime organizado quanto eu, a também jornalista Tatiana Sager, dois ou três dias após o lançamento, me procurou com a proposta de cedência dos direitos do livro para adaptá-lo para uma obra audiovisual, pela produtora Panda Filmes. Surgiu então o projeto do curta-metragem O Poder Entre as Grades, aprovado em edital do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) do Estado. Com direção da própria Tatiana e de Zeca Brito, o filme foi rodado em 2013 e exibido na TVE em 2014. Nele, tive minha primeira experiência no audiovisual, como roteirista.
O tema instigante e a quantidade de material, entre entrevistas e imagens captadas pela equipe, não aproveitado no curta, nos fizeram sonhar com um longa, especificamente sobre o Central. A aprovação do projeto em um novo edital, desta vez de finalização do Instituto Estadual do Cinema (Iecine), nos fez acreditar que o sonho era possível.
Mas aí veio a parte mais difícil: como mostrar a realidade crua, com imagens inéditas, de uma prisão que, de antemão, sabíamos que em boa parte é dominada por grupos organizados? Esse era o nosso maior desafio. Tatiana seguia como diretora, e eu, agora, era o codiretor.
Primeiro, obtivemos autorização do Judiciário, através da Vara de Execuções Criminais (VEC). Depois, da Superintendência dos Serviços Penitenciários. Até aí, foram poucas as dificuldades. Mas a corda começava a ficar curta. Foram muitos dias de negociação até que a direção da casa foi entregue ao sociólogo Dagoberto Costa, um major da BM, integrante da forca-tarefa. Ao compreender o nosso propósito de documentar a realidade do maior presídio do país, nos autorizou a entrega de câmeras aos presos, para que eles próprios registrassem o cotidiano de galerias superlotadas, algumas delas com mais de 400 homens, onde nem mesmo a guarda entra quando eles, os detentos, estão lá.
Faltava agora o mais difícil: convencer os próprios presos. Como em tudo no presídio, qualquer negociação com a massa carcerária passa pelos plantões, que são espécies de líderes das galerias da prisão, chamados de “prefeitos” pelos presos e que, na maioria dos casos, são os líderes de facções.
Em um primeiro encontro, Tatiana e eu nos reunimos com seis presos, líderes reconhecidos das cinco facções da época. Em meio a questionamentos, apresentamos os nossos propósitos. Um deles, de antemão, se negou a colaborar com o filme. Os demais prometeram submeter o projeto a seus comandados. Foram mais duas reuniões, com mais recuos do que avanços.
Até um dia em que, mediados pelo juiz da VEC Sidinei Brzuska, eu e a diretora nos reunimos com 26 líderes de galerias (dois representantes de cada uma). Além das facções, estavam ali representados os grupos, como os dos presos trabalhadores, dos gays e das travestis, dos autores de crimes sexuais e dos evangélicos, entre outros. Eu e a Tatiana argumentamos. O diretor de fotografia, Pedro Rocha, e a diretora de produção, Cátia Muller, acompanharam o encontro.
A reunião foi tensa. Alguns aceitavam colaborar. Outros, não. Durante os debates, aprendemos uma lição que jamais esqueceremos: ao contrário da maioria dos presos, os líderes não reclamam da superlotação. Pelo contrário, quanto mais cheia a cadeia, maiores são seus lucros com a cobrança de pedágios para o acesso a direitos fundamentais, como atendimento médico. Por conta disso, muitos se recusaram a colaborar quando, com nossa franqueza e transparência, admitimos que um de nossos propósitos era mostrar as dificuldades geradas pela transformação da prisão em depósito humano. Ainda assim, obtivemos a concordância de quatro líderes, dois dos quais de galerias dominadas por facções.
Foram cerca de 70 dias no interior do presídio, respirando um mau cheiro inigualável, um misto de mofo, urina, fezes, suor, esgoto e comida estragada. Tatiana, eu e Rocha fizemos entrevistas e imagens nos corredores, pátios, muros e pontes. Cátia, a técnica de captação de som Isabel Cardoso e o assistente de produção Luiz Alberto Muniz também foram assíduos.
Captado o material intramuros pela equipe de filmagens – e intraportões de galerias pelos próprios apenados –, reunimos tudo com as entrevistas e os depoimentos na ilha de edição, com os montadores Lucas Alverdi e Ricardo Zauza. Foram noites, madrugadas, finais de semana quebrando a cabeça, Tatiana e eu, para redefinirmos a linha e selecionarmos o que seria usado, em uma hora e meia, das cerca de 200 horas captadas. Por pensarmos de forma parecida, Tatiana e eu chegamos logo a um roteiro final consensual, contando com a ajuda de Alverdi. O resultado, vocês podem conferir a partir de amanhã nos cinemas.
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Mergulho na rotina hostil do Central - Instituto Humanitas Unisinos - IHU