04 Julho 2024
Ando sempre com as huipalas que uma mulher indígena do Equador me deu. Este lenço contém as cores da paz, atravessadas por um fio vermelho. Representa a mensagem de que todos os povos, culturas e religiões se podem entrelaçar harmoniosamente". O indômito padre Alex Zanotelli, símbolo do pacifismo internacional, desde sempre na linha da frente e contracorrente para ajudar os últimos, celebra 60 anos de sacerdócio em Livo, nas montanhas de Trento, onde nasceu em 26-08-1938.
Missionário comboniano, o Pe. Alex Zanotelli abraçou a África no Sudão e no Quênia. O seu centro são as periferias. Hoje, o Rione Sanità.
A entrevista é de Domenico Agasso, publicada por La Stampa, 02-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Você foi uma criança boa?
Não exatamente... Eu era arteiro, digamos assim. Aprontei bastante quando era criança, não era um "santinho". A minha mãe ficava desesperada porque eu não queria estudar, sobretudo matemática.
Como é que a vocação se apresentou?
Um dia, na 5ª série, um missionário comboniano veio nos falar sobre o seu trabalho e perguntou se alguém queria ter uma vida assim. Eu levantei a mão. Todos ficaram espantados.
Depois do Sudão, em 1978, na casa mãe em Verona.
Os combonianos me nomearam diretor da revista Nigrizia. A partir daquele cargo, compreendi que os problemas africanos muitas vezes decorrem de nós.
Não vai acabar bem...
Comecei a analisar a política italiana em relação à África, a cooperação e o tráfico de armas.
No meu editorial de janeiro de 1986, intitulado ‘O rosto italiano da fome africana’, ataquei a lei proposta pelos socialistas e radicais sobre a fome no mundo. Eu criticava o súbito interesse dos políticos italianos pela fome na África, sugerindo que fosse motivado pela fome do dinheiro destinado à África. O artigo causou um pandemônio, envolvendo nomes como Craxi e Piccoli. Em seguida, fundei a associação ‘Bem-aventurados os pacificadores’, exortando à objeção fiscal contra as despesas militares. Explodiram ferozes polêmicas a meu respeito. Spadolini e Andreotti, com suas influências dentro do Vaticano, pressionaram o Papa Wojtyla: João Paulo II, por sua vez, pressionou o cardeal da Propaganda Fide, Jozef Tomko, que pediu aos meus superiores que me pressionassem para deixar o cargo.
Como foi no Quênia?
Vivi 12 anos entre os favelados de Korogocho, a poucos metros da maior lixeira do mundo. Aí compreendi o verdadeiro significado do Evangelho. No último dia, um grupo de pessoas insistiu para que eu não partisse sem uma oração ‘sobre mim’. A oração durou três horas. No fim, um deles convidou-me a ajoelhar. ‘Imponham as mãos sobre ele’. Sentia centenas de mãos na minha cabeça.
Onde vive atualmente?
“Em Nápoles, no coração do Rione Sanità. Vivo numa pequena casa na torre do sino. Escolhi ajudar os necessitados nessa zona de enormes dificuldades sociais. E desde as primeiras publicações, a pedido de Dom Tonino Bello, dirijo ‘Mosaico di Pace’”. Em 18 de maio, estava no palco da Arena de Verona com o Papa Francisco para o evento com as associações pacifistas.
Nunca teria imaginado sentar-me à esquerda do Pontífice, uma posição que teve a aprovação da Santa Sé, depois de um longo período em que o meu nome nos Sagrados Palácios causava incômodo, porque expressei críticas sobre várias questões, mesmo dentro da Igreja. Foi como uma reavaliação do meu trabalho depois de décadas de hostilidade por parte das hierarquias.
Teve crises de fé?
Sim, muitas, sobretudo no inferno de Korogocho. Diante da morte de crianças e garotos devido à fome, à sede, mas também a doenças como a AIDS, perguntei-me: onde está Deus?
Como as superou?
Fui ajudado pelos pobres da favela, que não perdem a esperança apesar da miséria extrema e absurda. E, em particular, marcou-me Florence, uma garota de 17 anos. Uma noite estava à sua cabeceira: sofria terrivelmente por causa da AIDS, estava coberta de feridas. No entanto, no seu leito de morte, rezava com uma luminosidade impressionante. Perguntei a ela: mas quem é Deus para você? Ela respondeu-me: ‘Deus é mamãe'.
Alguma vez se apaixonou por uma mulher?
Não.
Nunca se arrependeu de ter-se tornado padre?
O sacerdócio torna-se muitas vezes um poder perigoso, mas a missão salvou o meu sacerdócio transformando-o num serviço radicalmente dedicado aos excluídos da terra.
Não sentiu falta de ter filhos?
Na verdade, tive muitos [risos]: a minha foi uma paternidade espiritual pelos pequeninos esquecidos nos barracos de Korogocho.
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'Um político italiano pediu ao Papa que me repreendesse. Entre as crianças que morreram de AIDS, eu duvidei de Deus.' Entrevista com Alex Zanotelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU