27 Junho 2024
"Segundo a antiga tradição de “não antecipar o fim” prevista pelas doutrinas cabalistas antissionistas, que incentivam a se dedicar ao estudo para estar preparados para a chegada do messias, evitando qualquer ação política que possa acelerar indevidamente os tempos", escreve Davide Assael, judeu italiano, fundador e presidente da associação lech lechà, professor de filosofia e escritor, em artigo publicado por Domani, 25-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em Israel, parece estar se reacendendo o conflito entre os poderes do Estado, que já imobilizou o país nos meses anteriores a 7 de outubro. O embate interno reflete diferentes concepções do judaísmo. Espera-se que ninguém use a fronteira Norte como possível rota de fuga.
Primeiro de tudo a intimação da Corte Suprema ao governo para resolver a controversa questão do alistamento militar, do qual estão atualmente isentos os alunos das yeshivòt (escolas rabínicas), que vivem de subsídios estatais para ter tempo para estudar a Torá.
Segundo a antiga tradição de “não antecipar o fim” prevista pelas doutrinas cabalistas antissionistas, que incentivam a se dedicar ao estudo para estar preparados para a chegada do messias, evitando qualquer ação política que possa acelerar indevidamente os tempos.
Instâncias representadas no atual governo pelo partido Yahadut HaTorah e pelo sefardita Shas, que já teve que passar pela vergonha de ver seu líder Aryeh Deri cair dos cargos governamentais, considerado, sempre pela Corte, inadequado para desempenhar as funções que lhe foram atribuídas por Benjamin Netanyahu.
Agora também o conflito com o exército, que decidiu uma pausa humanitária diária de algumas horas para implementar a entrada das ajudas humanitárias, de acordo com os desejos do aliado estadunidense, dos países árabes, com quem já se discute o pós-guerra, e do Tribunal Penal Internacional liderado por Karim Khan.
Inútil contornar a situação, o conflito institucional se reabriu em Israel, já abundantemente antecipado pela retomada das manifestações antigovernamentais, que viram as antigas partes contrapostas reunirem-se em torno do tema dos reféns e da responsabilidade pela guerra.
Assim cai o manto retórico que indicava o 7 de outubro como um momento de reconstituição da unidade nacional perdida durante os meses quentíssimos da reforma judiciária. Assim como era verdade que o conflito social anterior, incluindo as manifestações antigovernamentais dos líderes da polícia nacional e a recusa dos reservistas em responder à convocação do estado, comportasse uma ameaça à defesa do país, assim como era uma narrativa superficial e consoladora a ideia de que a inevitável compacidade, típica do Estado judeu nos momentos de emergência, sobre a necessidade de um a resposta militar ao Hamas, pudesse reparar as fraturas que, na realidade, representam dados culturais profundos aberto não há anos, não há décadas, mas há séculos, escondendo uma relação que nunca foi completamente resolvida entre o judaísmo e a modernidade.
Dificuldades que se transferiram para dentro das fronteiras do novo estado fundado em 1948. Em Israel se opõem duas partes que parecem inconciliáveis: de um lado, uma galáxia tradicionalista-ortodoxa, na qual desempenha um papel cada vez mais relevante um componente messiânico, e um ligado aos ideais liberais e aos movimentos de emancipação europeus, que a própria cultura judaica contribuiu para fundar e desenvolver.
Não é por acaso que existe uma tese filosófica segundo a qual a modernidade é judaica, tantos são os autores e as autoras judeus que moldaram o imaginário cultural entre os séculos XIX e XX, no momento em que o judaísmo saiu dos guetos.
Tese ainda mais evidente no ano kafkiano que estamos vivendo. Em todo esse cenário bastante fragmentado, se insere a conspícua minoria árabe, que, como o atual conflito está demonstrando, já decidiu que sua conveniência é ficar com os dois pés firmemente plantados nas fronteiras do estado judaico, que lhe garante um padrão de vida impensável em qualquer país árabe.
Sem que, infelizmente, essa escolha se traduza numa ativa participação política, embora a participação no governo anterior da chapa árabe Ra'am não seja um dado negligenciável. Movimento míope, sem dúvida alimentado pelo clima de desconfiança que rodeia hoje os árabes israelenses, porque seria a fatia da população mais afetada por uma virada tradicionalista e autoritária do país.
A reabertura do conflito entre os poderes do Estado é mais um elemento para esperar a queda de Netanyahu, que mais do que qualquer outra pessoa alimentou a divisão interna para fins eleitorais, já a partir da oposição a Oslo.
Mas Bibi, mesmo lidando com turbulências na maioria, sempre se reergue quando parece estar contra a parede e o aumento das tensões no Norte não deixa entrever nada de bom sobre a forma como ele pretende se desvincular de mais um aperto. Mesmo que pessoalmente eu não acredite num prolongamento do conflito, corre-se o risco de seguir a clássica partitura do “tanto trovejou até que choveu!”.
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Para além da retórica de 7 de outubro. O conflito institucional se reabre em Israel. Artigo de Davide Assael - Instituto Humanitas Unisinos - IHU