22 Mai 2024
É fácil argumentar que a Igreja não está passando por uma crise de autoridade e que não são necessárias mudanças importantes. O escândalo do abuso infantil por parte de pessoas em posições de responsabilidade na Igreja (titulares de cargos), tanto abusadores como cúmplices, diz o contrário.
A reportagem é de The Tablet Editoriale, publicada por Settimana News, 17-05-2024.
Já grave em si mesmo, este escândalo aponta, no entanto, para algo mais profundo, a saber, o fato de existirem problemas subjacentes na estrutura eclesiástica, no seu governo e nas pessoas que o exercem. Um grupo de pesquisadores do Centro de Estudos Católicos da Universidade de Durham, na Inglaterra, lançou luz sobre esta área obscura ao publicar um relatório no qual perguntam, com sofrimento e raiva, como uma instituição pôde ter caído tão baixo e não foi capaz de proteger muitos dos seus membros mais vulneráveis.
Este doloroso exame de consciência, intitulado A cruz do momento, é assinado por três investigadores acadêmicos, um dos quais, professor Pat Jones, resumiu os resultados em The Tablet (2 de maio de 2024, p. 6-8). O relatório é ainda mais importante dado que o programa de reforma lançado pelo Papa Francisco está agora a atingir um dos seus momentos decisivos com a assembleia sinodal de outono deste ano em Roma.
Estamos cientes de que este evento não resolverá as questões fundamentais. O Relatório Durham também levanta questões que só podem ser respondidas a partir de uma questão mais profunda: a ideia de um governo hierárquico da Igreja é compatível com o evangelho? Pode tal Igreja ter-se tornado uma “estrutura de pecado”?
O Relatório cita a teóloga moral irlandesa Enda McDonagh: “O perigo constante é que a retórica do serviço substitua a dura realidade do serviço. É muito difícil para os leigos reconhecerem a sua proclamada condição de servos nos privilégios e nas práticas dos padres, bispos e papas”. É a cultura do clericalismo, uma ideologia invisível para aqueles que a mesma cultura mantém reféns.
Mas até onde podemos ir? Não existe, por trás do clericalismo, uma cultura mais oculta e perniciosa que o Relatório chama de “hierarquismo” e define “a cultura exclusiva do poder do episcopado”? Os autores se perguntam: “É possível deixar de lado a perspectiva segundo a qual o bispo deve sempre ter as respostas, deve ocupar sempre o centro e sentar-se sempre à cabeceira da mesa?” No Evangelho de Mateus, Jesus diz aos seus discípulos: "Vocês sabem que os governantes das nações dominam sobre elas e os seus líderes as oprimem. Não será assim entre vocês; mas quem quiser tornar-se grande entre vós deverá ser vosso servo” (Mt 20,25-26).
A hierarquia é um fenômeno generalizado em todas as sociedades humanas: no exército, nas profissões, nas empresas, na política. Talvez seja inevitável; mas existem muitas tentações que podem ser prejudiciais ou mesmo perigosas. A sociedade civil tenta proteger-se dessas tentações inatas do hierarquismo através de freios e contrapesos – eleições democráticas e liberdade de imprensa; instâncias onde reclamações podem ser apresentadas; indenização juridicamente exigida pelos danos causados; e outros casos ainda.
A Igreja Católica, apesar da sua estrutura hierárquica divinamente ordenada, não tem praticamente nenhuma destas garantias. Em vez disso, promove inconscientemente uma cultura de deferência e de obediência acríticas. Títulos como “sua eminência” ou “sua excelência” designam o estatuto daqueles que os ostentam e os colocam, quer queira quer não, numa posição precisa dentro de um sistema hierárquico que é feudal na sua essência.
É tão surpreendente que ele tenha estragado tanto?
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