10 Mai 2024
"O impacto cultural da IA em relação ao mundo religioso não se limita ao espanto expresso como entusiasmo acrítico ou como terror obscurantista diante de um experimento", escreve IlenYa Goss, teóloga e pastora da Igreja Valdense de Mântua e Felonica, em artigo publicado por Riforma – revista semanal das igrejas evangélicas batista, metodista e valdense, 10-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
IlenYa Goss é coordenadora da Comissão para os problemas éticos postos pela ciência das igrejas batistas, metodistas e valdenses. Falará no domingo, 12 de maio, no templo valdense de Pinerolo, às 18h, com Paolo Zebelloni e Ilaria Valenzi no debate sobre “Inteligência artificial e Palavra: onde está realidade?"
Qual pode ser a relação entre Inteligência Artificial e teologia? O simples fato de colocar a questão sugere que se algumas disciplinas mostram facilmente, mesmo para um público leigo, a potencial aplicação da Inteligência Artificial em seu âmbito, outras parecem mais distantes, quando não decididamente refratárias, à revolução digital e às suas amplas e generalizadas repercussões. Definir a Inteligência artificial não é fácil: de fato, desde que se começou a falar sobre isso no século XX como um projeto de informática, tecnológico e matemático-estatístico para o desenvolvimento de máquinas capazes de desempenhos chamados "inteligentes" quando executadas por seres humanos, o conceito mudou muito: a redução das expectativas fez com que desaparecessem definições de IA "forte", passando para perspectivas realistas de desenvolvimento que ainda assim questionam profundamente o pensamento e a autoconsciência humana.
O impacto da inteligência artificial na nossa vida cotidiana e nos equilíbrios políticos, sociais e econômicos em ampla escala só agora começa a ser percebido por um público maior: a partir da experiência simples dos chatbots ao assistente virtual que temos em casa, à domótica, às aplicações de IA na medicina, no campo de seguros, na gestão dos recursos na empresa, até os desenvolvimentos de metaverso, a entrada de dispositivos, programas, máquinas “inteligentes” e a necessidade de criar interface cada vez mais frequentes com interlocutores não humanos, nos obrigam a repensar também do ponto de vista filosófico e teológico, conceitos que resistiram ao teste dos séculos.
Nesse cenário que muda tão rapidamente a ponto de cavar um fosso cada vez maior entre as gerações, o que acontece com a teologia? Daquela disciplina que, como a filosofia, mas em bases diferentes e certamente sem um índice de compartilhamento comparável às disciplinas científicas, coloca perguntas incontornáveis para os seres humanos?
As questões que, repetidamente declaradas fora de questão na cultura ocidental, voltam a aparecer em toda existência individual e coletiva: o significado de existir, a presença da dor, da doença, da morte, mas também da injustiça, da loucura, da experiência artística. A necessidade de um propósito, de um amor, de uma finalidade e de uma direção, o mundo das relações e a identidade individual e toda a imensa área que a nossa cultura chamou de ética constituem o ambiente em que a IA se insere e deve encontrar a sua função: no entanto, as máquinas "inteligentes" (por mais que hoje seja claro que a palavra não é usada de forma unívoca e pode ser enganosa) mudam a nossa forma de compreender também a peculiaridade da nossa forma de estar no mundo, da nossa posição específica na realidade e, do ponto de vista teológico, na criação.
O impacto cultural da IA em relação ao mundo religioso não se limita ao espanto expresso como entusiasmo acrítico ou como terror obscurantista diante de um experimento. A invenção do robô BlessU-2 ou o “pastor” avatar, o sermão preparado com a ajuda do ChatGPT, a informatização de alguns aspectos da vida das igrejas não são o elemento mais profundo da revolução que estamos vivendo: enquanto a inovação for entendida como a introdução de instrumentos para a operação humana, trata-se mais de gerir uma complexidade maior, não de mudar radicalmente o nosso ponto de vista no mundo.
No entanto, o impacto da IA é tão forte porque toca o sentido da identidade do ser humano como "inteligente" por definição: uma tradição cultural, que identificou o humano com a Imago Dei com base nos dados bíblicos e tentou identificar e dar forma a essa sua autopercepção é inevitavelmente questionada nas próprias bases do que é “inteligência” e quem é o humano que começa a interagir com a máquina de uma nova maneira. Nesse aspecto da identidade e da relação, a pergunta do que é a inteligência, de qual é o papel das performances inteligentes, sobre qual é a ética do uso da máquina que aos poucos torna-se “autônoma” nas decisões que envolvem o ser humano, o questionamento filosófico e teológico é poderosamente chamado em causa.
A Comissão para os problemas éticos postos pela ciência das igrejas valdenses, metodistas e batistas das quais presido os trabalhos, há um ano começou a se aprofundar no tema da IA: não se trata de um argumento distante da vida cotidiana, nem da profundidade do pensamento ético e teológico, pelo contrário, trata-se de trabalhar numa área fronteiriça nevrálgica do nosso tempo e de trazer à tona as questões críticas das aplicações desse enorme potencial científico e tecnológico na vida dos indivíduos e nos grandes equilíbrios do nosso mundo.
Não se trata de um trabalho rápido nem simples: o estudo dos problemas e os cenários que se descortinam são vastos e logo percebemos as inevitáveis implicações culturais.
Voltar a pensar questionando e deixando-se confrontar com o texto bíblico imerso na realidade presente e ampliando as suas competências não só de usuários desconhecedores, mas de sujeitos capazes de pensamento crítico significa tornar-se buscadores daquele centro de gravidade sempre em movimento sobre o qual se alicerça a identidade: o sujeito ético que está na relação com um “Tu” que o questiona, que o nomeia e que com o nome lhe abre um caminho, é agora mais uma vez levado a dar nome e função às coisas, distinguindo a si mesmo dos seus instrumentos, do destino em que caminha e em que desempenha parte de responsável não-único. Na realocação dos objetos e dos instrumentos no mundo habitado existe o traço da tarefa presente: num horizonte que para a teologia é traçado por uma Palavra pronunciada não primeiramente pela boca de um ser humano, mas por uma voz fugidia à qual o pensamento teológico atribui o nome de Deus.
Na realidade a tarefa não é nova, mas é reproposta de forma inédita capaz de sacudir e despertar a inteligência de uma espécie de torpor, chamando-a a redefinir a si mesma diante de algo que parece seu alter e tal não é exceto em chave limitada e funcional; o que é realmente novo é o tipo de cultura a que essa revolução está dando origem, propondo a nós que vivemos os seus primórdios, a grande questão da sua gestão para as gerações que virão.
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IA: sujeito ou instrumento? Artigo de IlenYa Goss - Instituto Humanitas Unisinos - IHU