Metaverso ainda é a palavra do momento. Todo mundo a usa, mas o seu significado é discutido acaloradamente. Isso porque, apesar do hype, trata-se de um projeto em grande parte não realizado, uma ideia posta no mercado muito antes da sua concretização.
A reportagem é de Valentina Tanni, publicada em Artribune, 17-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em entrevista concedida a Kara Swisher do New York Times em dezembro passado, o escritor estadunidense de ficção científica Neal Stephenson – que cunhou o termo “metaverso” em seu romance “Snow Crash” – declara não entender o que há de realmente inovador nos projetos anunciados com tanto frisson por Mark Zuckerberg no fim de outubro.
“A ideia de fazer reuniões virtuais onde todos são representados por um avatar. A ideia de jogar um jogo de tabuleiro com alguém que está virtualmente do outro lado da mesa, mas na realidade está muito longe. É coisa velha. É difícil para mim entender o que eles afirmam estar fazendo de novo, exceto, talvez, implementar essas velhas ideias em uma escala mais ampla, para um público mais amplo.”
A postura de Stephenson representa bem a da sua geração e, mais em geral, a impressão de quem tem idade suficiente para já ter assistido pelo menos algumas ondas de hype centradas nos “mundos virtuais”. Isso ocorreu entre os anos 1980 e 1990 com a chegada ao mercado dos primeiros e rudimentares visores de realidade virtual; depois, nos anos 2000, com novos dispositivos, uma experimentação mais intensa no setor dos videogames e a ativação online de plataformas como Active Worlds e Second Life. E, por fim, em 2021, em plena era pandêmica, com os projetos de grandes empresas como Facebook/Meta, Microsoft, Epic Games, Niantic, Nvidia, Decentraland.
Mas o que é o metaverso? E por que se investe tanto na sua construção?
Embora o termo só tenha chegado à grande imprensa no ano passado, principalmente como resultado da mudança de nome do Facebook, já se fala dele há muito tempo no mundo da tecnologia. Tim Sweeney, CEO da Epic Games, empresa que produz jogos muito populares como Fortnite (considerado por muitos como o objeto real mais próximo da ideia de metaverso), declarou em 2016 à revista Venture Beat:
“O metaverso é uma daquelas ideias que as pessoas rejeitaram por muito tempo, porque experiências como o Second Life não decolaram em grande escala. Sistemas muito simples como o Facebook, por sua vez, decolaram, mesmo que já tivéssemos gráficos 3D na época. Assim, nós nos esquecemos disso por cerca de 15 anos. Quando a realidade virtual voltou, e começamos a ver as potencialidades de sistemas como a captura de movimento em tempo real, ficou claro que estávamos a poucos anos de distância de conseguir capturar o movimento e as emoções humanas e transmiti-los em uma experiência interativa de uma forma muito próxima da realidade.”
Segundo Sweeney e muitos outros como ele, o metaverso não será simplesmente “um” mundo virtual, mas a nova versão da internet. Uma versão imersiva tridimensional e convincente.
Matthew Ball, um capitalista de risco estadunidense que publicou uma série de extensos e aprofundados artigos sobre o tema em seu site – o Metaverse Primer –, descreve-o como uma grande rede digital composta de muitos ambientes 3D persistentes, renderizados em tempo real e habitados por um número infinito de usuários.
Dentro dessa rede, é possível ter “um senso da própria presença individual” graças à persistência e à continuidade dos dados acumulados: dados sobre a própria identidade, a própria história, as próprias interações, a posse de objetos. Dentro do metaverso, será possível socializar, criar conteúdos, assistir filmes, jogar, trabalhar, vender e comprar.
Idealmente, esse novo ambiente deverá se caracterizar por um alto grau de interoperabilidade: o que significa que todas as empresas que contribuem para a sua construção terão que se pôr de acordo e adotar protocolos compatíveis. Dessa forma, avatares, objetos digitais e dados seriam legíveis em qualquer lugar e “transportáveis” de um mundo para outro.
Por fim, essa visão da Web 3.0 se entrelaça profundamente com o mundo das criptomoedas e do blockchain em geral, que deverá desempenhar um papel importante na estrutura econômica, favorecendo a descentralização.
Essa corrida rumo à construção do metaverso, que para muitos parece nada mais do que um déjà-vu, demonstra substancialmente duas coisas: a incrível persistência de um sonho humano (a geração de mundos) e a necessidade da indústria tecnológica de buscar sempre novas “fronteiras”.
Quanto ao primeiro fator, trata-se de uma evidência difícil de negar: dos afrescos da Villa dei Misteri em Pompeia ao “Sensorama” de Morton Heilig, passando pelos panoramas oitocentistas, as trompe-l’oeil barrocas, a “Artificial Reality” de Myron Krueger e “A Espada de Dâmocles” de Ivan Sutherland, a construção de espaços ilusórios, capazes de enganar os sentidos, tem sido uma constante na história humana.
Um sonho da worldbuilding não dá sinais de desaparecer, alimentado por muita literatura e cinema de ficção científica, sempre equilibrado entre a magia e o terror. A possibilidade de criar mundos artificiais perfeitamente credíveis traz de volta sobre a mesa a hipótese da Teoria da Simulação, com a sua inquietante pergunta: a realidade em que vivemos é por sua vez uma simulação de computador, gerida talvez por inteligências alienígenas superiores (como ocorre na saga Matrix)?
O segundo aspecto a se considerar é que a máquina tecnocapitalista precisa constantemente de mitos, narrativas e novos territórios para conquistar. Em suma, ela precisa “perseguir o futuro”: isso lhe permite atrair capital e enfeitiçar usuários e investidores em busca da Next Big Thing.
O que deve ficar claro neste ponto é que o metaverso ainda não existe. No entanto, muitíssimas empresas ao redor do mundo já o estão vendendo. O que mais se assemelha a ele atualmente são os videogames online, plataformas que há muitos anos experimentam com sucesso a construção de mundos virtuais persistentes, habitáveis, dotados de uma economia própria e de uma população afeiçoada. Uma população cada dia mais vasta, que percebe a própria presença – mesmo sem os avatares hiper-realistas sonhados por Tim Sweeney – e constrói experiências e lembranças dentro desses mundos junto com a sua comunidade de referência.
Mas o metaverso entendido como um ambiente abrangente, renderizado inteiramente em tempo real em grande escala e aberto a todos é pouco mais do que uma ideia. Uma ideia complexa, cara e muito provavelmente insustentável do ponto de vista energético.
O aspecto inquietante da narrativa mainstream em torno do metaverso diz respeito à tendência a idealizar esse hipotético mundo artificial: um lugar onde tudo é possível, todas as coisas são personalizáveis e tudo é... melhor do que o mundo real.
Por outro lado, “Snow Crash” era um romance distópico, e o seu protagonista escapava para o Metaverso para esquecer uma realidade devastada. “Hiro absolutamente não está onde ele se encontra”, escrevia Stephenson em 1992, “mas sim em um universo gerado por computador que a máquina está desenhando nos seus grandes óculos e bombeando nos fones de ouvido. No jargão do setor, esse lugar imaginário é chamado de Metaverso. Hiro passa muito tempo no Metaverso. Ele o ajuda a esquecer a vida de merda do D-Posit”.
O próprio romance não deixava de nos avisar que, mesmo que o Metaverso seja projetado para nos fazer nos sentirmos um pouco menos deprimidos, também há nele ricos e pobres, servos e senhores, exploradores e explorados, bairros de luxo e zonas de má reputação, roupas caras e baratas. Dentro dele, o crime, a desigualdade e a exploração também são persistentes.
Na discussão entre apocalípticos e integrados, que se reproduz pontualmente nos momentos de avanço tecnológico, há quem veja no projeto-metaverso a possibilidade de consertar uma internet já “quebrada” – desprovida de liberdade e sujeita ao monopólio das Big Techs –, estabelecendo protocolos mais abertos e participativos; e quem, no mesmo futuro, veja apenas um aumento do controle e da exploração.
A pergunta a ser feita, portanto, é: se a construção de um novo mundo está realmente em andamento, o que queremos levar para dentro dele? Que ideias, que valores, que sistemas de governança? Em suma, a batalha pelo mundo-de-dentro deve ser travada primeiro aqui, no mundo-de-fora.