Ilenya Goss é pastora da Igreja Valdense de Mântua e Felonica. Graduada em filosofia e medicina-cirúrgica, ela é membro da Comissão de Bioética das Igrejas Batistas Metodistas Valdenses. É teóloga e musicista.
A entrevista é de Andrea Cappelletti, publicada por Settimana News, 30-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dra. Goss, gostaria de nos contar como se tornou pastora da igreja valdense?
Nasci no coração dos vales valdenses, em Val Pellice, precisamente em Luserna San Giovanni, perto de Pinerolo, de uma família mista: todo o ramo paterno é valdense enquanto o materno é católico. Desta forma, pude conhecer logo essas duas formas de ser cristãos e, portanto, me apaixonar por elas.
Eu era o que se chama de uma adolescente inquieta e cresci com o desejo de entender o sentido da vida, meu lugar no mundo, de que melhor maneira poderia usar o meu tempo. As figuras pastorais que via pregar me atraíam. Eu era apaixonada pelo estudo e queria satisfazer meu desejo de conhecimento. Não fui imediatamente atraída pela teologia.
De fato, o meu percurso de estudos começou com a licenciatura em filosofia e, através dela, senti a necessidade de adquirir uma forma concreta de me colocar ao serviço das pessoas. Assim, também me formei em medicina, tendo depois a oportunidade de lecionar as disciplinas de ética médica e história da medicina no curso de graduação em enfermagem da Universidade de Torino.
No entanto, uma inquietação ainda persistia dentro de mim. Senti a necessidade de aprofundar meus conhecimentos da Bíblia, da qual sempre fui uma leitora apaixonada, buscando os textos originais em hebraico e grego: portanto, matriculei-me em um curso de graduação em teologia valdense.
Disso nasceu - ou melhor, aumentou - o desejo de me empenhar com a igreja valdense a que pertenço, em Pinerolo, e de verificar a minha vocação pastoral. É claro que essa escolha incidiu muito sobre a minha família com as amizades que eu tinha e que me consideravam encaminhada para uma carreira puramente acadêmica.
O empenho pastoral hoje - especialmente na Itália - certamente não tem a mesma visibilidade e reconhecimento público que o ensino universitário. Apesar de todas as perplexidades, minha família me apoiou e acompanhou, como de resto em todos os caminhos tomados.
A escolha vocacional, obviamente, não permite ser imediatamente pastores: requer um percurso específico. A pessoa que se candidata é examinada pela igreja local, que deve declarar a uma comissão específica - a comissão de ministérios - a manifestação de tal desejo. A própria igreja local expressa uma primeira opinião de atitude com base no conhecimento da pessoa. Nesse ponto, inicia-se um percurso acadêmico obrigatório de pelo menos sete anos, através do qual é obtido o título de mestrado.
Depois de completar os estudos – em que está incluído um último ano de estudos no exterior (para mim em Estrasburgo) – passa-se para um período de verificação: a pessoa é enviada a uma comunidade - com funções de pastor - pela duração de dois anos eclesiásticos. No final da experiência, o pastor de referência elabora um relatório: naturalmente, somente se todos os juízos - tanto da comissão, tanto da comunidade quanto do pastor tutor - forem positivos, se pode passar para um exame final na presença de potenciais colegas. A consagração ocorre para os pastores no sínodo de Torre Pellice - assembleia anual da igreja valdense italiana - composto por 180 pessoas, entre pastores e não pastores. E isso foi o que me aconteceu.
Você pode nos explicar o motivo da escolha mais profunda justamente pela igreja valdense?
Sempre me senti próxima da sensibilidade da fé protestante: se eu tivesse nascido na Alemanha, provavelmente teria me tornado luterana. Uma primeira razão, como disse, está nas minhas origens: nasci e cresci nos vales valdenses e aquela cultura foi a minha referência. Amo esta igreja também por sua ligação com o território alpino e sua história. Mas é sem dúvida a eclesiologia reformada - na qual não existe nenhuma hierarquia eclesiástica - que me fascinou.
A fé para mim - dados meus interesses e cursos de estudos filosóficos e científicos - deve possuir pressupostos de conhecimento e credibilidade. Não encontrei no modelo católico - especialmente naquela época - uma atenção adequada ao texto bíblico, às suas línguas originais, bem como a outros aspectos de conhecimento.
Além disso, sou fascinada por uma eclesiologia que vê a todos como irmãos, que entende o sacerdócio não como status por meio de uma ordenação, mas como um serviço inspirado no conceito de sacerdócio universal. Na igreja valdense, a mulher acessa o ministério da mesma forma que o homem, porque o pastorado feminino foi reconhecida em 1967.
Estudar teologia, proclamar e pregar, liderar uma comunidade, cuidar do crescimento de homens e mulheres na fé, são possibilidades que - como mulher - na Igreja Católica eu nunca teria.
Sempre senti, de forma muito forte, nesta minha igreja, o sentido de um verdadeiro acolhimento evangélico da pessoa com suas capacidades e talentos, sem sentir o peso de uma instituição que está acima dela. A visão do papado e uma certa concepção dos sacramentos são estranhas para mim. Tudo isso me confirma na minha adesão.
Medicina e filosofia também estão na sua vida: de que maneira?
Eu diria, em particular, no âmbito da bioética. Com esses meus estudos e interesses, hoje faço parte da comissão de bioética das igrejas valdenses-metodistas-batistas. Com os metodistas somos uma única igreja, não com os batistas que, no entanto, participam com seus representantes, em igualdade de condições, na mesma comissão. Também sou colaboradora da Universidade de Turim, onde ensino bioética para estudantes de medicina do quinto ano.
A bioética constitui um resultado espontâneo da minha formação, tendo trabalhado, depois dos meus estudos, numa casa de saúde para idosos onde cuidava de doentes muito graves, inclusive em estado vegetativo: tendo cumprido essas tarefas antes do pastorado, o então moderador Eugenio Bernardini propôs que eu participasse da comissão que mencionei.
O próprio mestrado em teologia de Estrasburgo foi focado no "fim da vida". Esta "matéria" envolve-me muito: permite-me relacionar-me com as diferentes Igrejas, com os diversos teólogos, perguntando-me e perguntando-nos como o Evangelho pode ser anunciado hoje nos grandes problemas da vida concreta: problemas que, obviamente, afetam sociedades e pessoas de pertencimentos muito distintos, religiosos e leigos. Sinto que essa tarefa como parte integrante do meu ministério.
O que você considera serem os elementos que caracterizam a fé na Igreja valdense em comparação com a católica?
Os pontos mais fortes de distanciamento encontro-os na eclesiologia, como disse. A igreja valdense não vê diferenças entre clérigos e leigos. O pastor é um leigo que tem uma formação específica e que é encarregado de realizar um determinado serviço, mas não há sacralidade na figura.
Essa posição vem da adesão estrita ao texto do Evangelho, onde Jesus diz “… e todos sois irmãos”, como lemos em Mateus 23,8. A sinodalidade é central na nossa Igreja: as decisões são tomadas pela assembleia que opera as formas de orientação, renunciando assim a qualquer estrutura de caráter verticalista. Certamente, isso torna as decisões e posturas mais lentas e com mais nuances. Mas isso não pode ser um problema.
Como se sabe, nossa igreja reconhece dois sacramentos: o batismo e a santa ceia, os únicos que têm base nas escrituras bíblicas. A Palavra tem centralidade absoluta. Há um momento em nosso culto que antecede a leitura bíblica chamada de “oração da iluminação”.
É típico da teologia calvinista - que inspirou a igreja valdense - e invoca o Senhor para que abra a inteligência e o coração de cada fiel ao entendimento. É muito significativo: através desta passagem a palavra bíblica, que é palavra humana, torna-se Palavra de Deus: a Bíblia pode ser lida também apenas em chave filosófica ou filológica, enquanto se torna Palavra de Deus, para cada um, em o momento em que é pregada e recebida sob tal luz.
Outro aspecto que diferencia é certamente aquele ético. Nas minhas colaborações ecumênicas - locais e nacionais, pelas quais sou profundamente grata pelo enriquecimento produzido em mim - encontro dificuldades. Especialmente neste último período - em que a Igreja valdense certamente assumiu posições, por assim dizer, liberais, ou seja, de grande abertura ao mundo e à laicidade - diferenças significativas estão se evidenciando nas formas de viver eticamente a fé cristã.
Como eu disse, a Igreja Católica tem um magistério que traça os limites em termos de ética, enquanto a Igreja valdense aborda até as questões éticas mais delicadas por meio de assembleia e votação. Por exemplo, sobre o tema da bênção dos casais homoafetivos - recentemente debatido também na Igreja Católica - nosso sínodo expressou um parecer favorável.
É preciso dizer que as pessoas que pedem a bênção pertencem à nossa Igreja e fizeram um percurso: a elas se dedica uma liturgia na qual é invocada a bênção do Senhor; a comunidade simplesmente reconhece que essas pessoas têm um projeto de vida comum. Portanto, não se trata de casamento nem de outra coisa, mas de reconhecimento da dignidade integral da pessoa humana, cristã, também na sua esfera afetiva e sexual.
Deve-se acrescentar que dentro de nossa igreja existem comunidades locais que também têm histórias diferentes entre si, com opiniões diferentes, como entre as Igrejas Metodistas. Na Itália trabalhei neste tipo de comunidade com membros, por exemplo, de origem africana e sobre esse tema devo dizer que existem opiniões naturalmente diferentes. No final, portanto, apesar do parecer do Sínodo, prevalecem as decisões das comunidades locais, dotadas de plena autonomia em tal sentido.
Que lugar a música e o canto ocupam na liturgia da igreja valdense?
A consideração pela música é grande, mas o discurso é colocado em pelo menos dois planos: aquele da teoria e aquele da práxis. Os problemas se apresentam principalmente em comunidades menores, onde faltam músicos, instrumentos e um número suficiente de pessoas para constituir um coro. Nos vales valdenses o coro é uma instituição, uma realidade muito forte, feita de canto, agregação e sociabilidade.
Mas agora é um momento difícil para a música no culto. Certamente estamos tentando cultivar a tradição. Em 2017, por exemplo, foi realizado um grande projeto sobre as cantatas de Bach. Mas na realidade cotidiana e semanal do culto, devemos dizer que às vezes somos obrigados a usar bases musicais gravadas. O canto, porém, continua sendo fundamental: nossos fiéis sabem "de cor" o hinário e suas canções.
No plano histórico-teológico, a música é certamente a pedra angular do culto: um momento chave em que a assembleia reunida responde à Palavra do Senhor. Existem poucas outras vozes, além do pastor, na liturgia. A assembleia tem o seu papel no canto coral. Isso pode ser rastreado até as reformas propostas por Lutero, que era músico e considerava o canto – a música - uma parte fundamental do culto (enquanto para Calvino a música estava mais ligada ao canto dos salmos). Muitas vezes acabo desempenhando o serviço de músico em algumas comunidades devido à falta do instrumentista: fico feliz em colocar minhas competências musicais à disposição.
Você está muito empenhada no diálogo ecumênico: quais passos foram realizados e quais ainda precisam ser dados?
Se eu pensar nas origens do movimento ecumênico – ou seja, o encontro de Edimburgo de 1910 e o acordo de Leuenberg de 1973, no qual finalmente reconhecemos os ministérios e sacramentos comuns - eu diria que um longo caminho já foi feito, especialmente entre as confissões protestantes. Celebramos a santa ceia aberta, isto é, presidida por pastores de qualquer confissão protestante. Também vivemos a hospitalidade eucarística: qualquer pessoa - mesmo de diferente confissão - pode participar no nosso culto. Costumamos dizer que a ceia não é nossa, mas é do Senhor.
O que faço hoje é dirigido à Igreja Católica. Em nível local, em Mântua, encontrei uma diocese e líderes muito ativos e sensíveis, com os quais estamos organizando iniciativas de certa relevância, tanto no plano ecumênico como de diálogo inter-religioso. Em nível nacional, colaboro com o Secretariado para as Atividades Ecumênicas.
Creio que os passos a serem feitos podem ser colocados em três níveis: aquele de base, que diz respeito às comunidades de fiéis, que muitas vezes são difíceis de envolver; depois, aquele da alta teologia que, neste momento, não me parece particularmente ativo; enfim existe aquele - podemos dizer - da faixa intermediária em que há uma reflexão teológica aliada a uma efetiva relação com a base dos fiéis das respectivas confissões: é nesta faixa que hoje atuo e quero dedicar meu empenho.
Muitas vezes, quando se trata de encontros oficiais, tudo vai bem, mas, depois, na vida cotidiana, há uma tendência a se retirar e a cultivar a fé cristã a uma distância respeitosa. Volto, portanto, ao tema da hospitalidade eucarística, sobre o qual penso haver um trabalho muito urgente a ser feito: para os protestantes é um fato adquirido, enquanto para os católicos - e ainda mais para os irmãos ortodoxos - não é: percebo que existe sempre um forte constrangimento. O meu desejo para um futuro próximo - aquilo pelo que me empenho - é poder partilhar o momento fundamental da manifestação da fé entre todos os cristãos.
Uma última pergunta: qual é a posição das Igrejas Reformadas sobre o fenômeno da secularização e do abandono da prática religiosa?
Gostaria de dar uma resposta em dois níveis: o primeiro do ponto de vista das igrejas em geral e o segundo do meu ponto de vista, mais pessoal, como pastora e teóloga.
Nas comunidades, principalmente nas menores, o fenômeno da secularização sem dúvida gera muita preocupação e, às vezes, cai no desânimo. Acho que o desinteresse que se percebe não diz respeito ao sentimento religioso em si, mas às formas como ele se expressa. Por um lado, portanto, percebe-se a preocupação de anunciar a Palavra a um mundo que parece cada vez mais distante, enquanto, pelo outro, se tenta entender quais são as razões da crise.
A nossa igreja realizou recentemente um grande trabalho de análise por meio de uma pesquisa sociológica para tentar entender quem são os protestantes históricos italianos, tanto em termos numéricos quanto de idade: naturalmente, evidenciou-se o problema das gerações mais jovens, que realmente estão ausentes nas nossas igrejas. Estamos nos perguntando o que não funcionou na transmissão, na passagem do bastão.
No plano pessoal, penso que estes momentos de crise - acentuados pela pandemia - obrigam-nos a tomar conhecimento de uma realidade da qual não queremos ter plena consciência, porque nos põe numa situação de grave desconforto. Falo, portanto, de uma oportunidade pastoral a não perder e de um grande desafio teológico.
Estamos, de fato, diante do ocaso de um mundo e, portanto, de uma modalidade de transmitir a fé cristã. É tarefa da nossa geração preparar hoje um futuro – do qual nenhum de nós poderá ver o desenvolvimento - no qual reinventar a modalidade do testemunho. Trata-se de corresponder a uma fome de sentido e de transcendência que ainda existe, de abrir canais diferentes de comunicação da fé. A tarefa do cristão hoje passa a ser aquela de compreender como levar a água viva que recebemos para quem a procura para saciar a sede, evitando a dispersão na busca.
Devemos alimentar uma grande abertura de fundo a tudo que é busca humana de Deus, com atitudes muito menos confessionais do que no passado. Portanto - se temos algo significativo - devemos oferecê-lo sem nos entrincheirarmos no nosso mundo, nos nossos âmbitos, nas nossas tradições, usando uma linguagem que todos possam entender: quero dizer a linguagem da dor humana - do desespero – assim como aquela da alegria, do entusiasmo. Falar as “línguas” significa hoje poder nos encontrar como seres humanos e compartilhar o que temos de mais precioso na humanidade.