10 Mai 2024
Reproduzimos a seguir o prefácio escrito pela diretora Liliana Cavani para o livro do Padre Antonio Spadaro: Gesù in cinque sensi. Un racconto di carne e ossa (Marsilio).
O prefácio foi publicado por Avvenire, 07-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gesù in cinque sensi. Un racconto di carne e ossa (Foto: Divulgação)
Esse é um “filme escrito”, como chamá-lo de outra forma? Talvez “cinema da palavra”, mas pareceria redutivo pela falta de imagens, elemento que, ao contrário, curiosamente, para quem lê pode tornar-se um estímulo para “ver”, para construir as imagens com a fantasia e seguindo as sugestões do autor, agindo de acordo com atitude e caráter pessoais. Para que se possa ver acontecer na própria mente o “fenômeno” evangélico é preciso concentrar-se mais do que diante das sequências filmadas. Requer um esforço maior mas pode induzir a participar com mais atenção e curiosidade no relato que se desenvolve página após página.
Enquanto lia, me veio à mente o livro Pai Nosso de Simone Weil, no qual a autora recita as frases da oração associando a cada uma delas uma interpretação própria, como se dissesse que – obviamente – cada ser humano compreende o Evangelho à sua maneira, segundo as suas origens e a cultura da qual dispõe. No texto do Padre Spadaro, portanto, desenvolve-se uma espécie de filme mudo, um filme para ser lido que se torna uma meditação profunda e desemboca em emoções que é belo e justo comunicar ao próximo. Uma viagem ao mundo do Espírito?
Também. Trata-se de um filme rodado não com a lente da câmera, mas com a força do espírito de quem escreveu e aquela do espírito de quem lê. Afinal, cada um de nós é uma espécie de câmera cinematográfica. Desde o momento em que chegamos ao mundo, gravamos cena após cena e podemos nos deparar com o Evangelho, que também é um grande filme sobre a vida, do mesmo gênero das obras-primas de um Dostoievski.
Penso, por exemplo, no capítulo “Toquem-me”, cheio de significados, e em particular no episódio em que o Padre Spadaro descreve os discípulos após a morte de Jesus: assustados, desconsolados e confusos, quase não conseguem conversar entre si, ainda vítimas do assombro que os assolou. A morte do Mestre os aniquilou a tal ponto que não conseguem evocá-la. Acreditavam que fosse imortal, mas quando se revela diante deles, custam a reconhecê-lo. Porém, no episódio há a prova de que o Mestre é Deus, não o seu cadáver. Mas até mesmo diante da evidência, os apóstolos têm dificuldade em acreditar e Tomé chega a pedir para ver e tocar as feridas. É sempre uma cena devastadora. O “medo” desorientou os apóstolos, fragilizou-os. No entanto, eles tinham visto com os seus próprios olhos os milagres realizados por Jesus.
Claro que num filme teríamos os atores numa cena chave, mas nesse “filme para ler” somos nós, leitores, que temos que imaginar.
E talvez seja mais fácil escrevê-lo do que filmá-lo - pensei enquanto o lia -, porque a atmosfera daquele encontro, o assombro de rever Jesus vivo, depois de ter assistido à sua morte na cruz, é muito difícil de realizar, é demasiado particular. Aquela situação sublinha de fato a fronteira entre a vida normal dos apóstolos e a vida sobrenatural de Jesus Cristo. Embora o episódio esteja sobre a linha que separa o mundo real e o mundo da Fé, Spadaro escreve sobre ele com grande clareza. O assombro dos apóstolos narrado pelo Evangelho é notícia realista? É possível, em nome da Fé.
Mas, para além da Fé, quanto é possível? Quanto conhecemos do Universo? Muito pouco, embora as investigações sobre o Universo tenham se multiplicado. Muitos de nós somos como Tomé: gostaríamos de ter provas. Mas então, quando se pensa como somos nós, humanos, se descobre que as pessoas capazes de realmente amar a vida são capazes de acreditar mesmo na ausência de provas científicas. A Fé tem esse potencial. É lindo ler o texto de Spadaro justamente porque estimula a reflexão sobre a Fé. É um percurso que envolve a investigação sobre o Ser que somos e sobre o Universo em que vivemos.
Mas a Fé não é uma investigação científica. É uma investigação num território que pode ter fronteiras muito distantes a alcançar, mas também - pode acontecer - estar perto, perto o suficiente para pairar sobre nós. O livro de Spadaro estimula a conquista da Fé, permite entrar no território que não é o da ciência, mas também não a renega. É o território da vida humana, com a sua imensa carga de perguntas.
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O Evangelho lido com a “câmera” do nosso espírito. Prefácio de Liliana Cavani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU