29 Abril 2024
De Veneza para o mundo. No domingo o Papa Francisco esteve na Bienal. O Cardeal Tolentino explica as intenções e os significados que o Pavilhão da Santa Sé assumiu no mundo da arte contemporânea: “Ainda tenho uma coisa para lhes dizer”.
O artigo é publicado por Il Sole 24 Ore, 28-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
José Tolentino de Mendonça, cardeal, é o prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação.
No fim do histórico encontro em que reuniu os artistas na Capela Sistina (23-06-2023), o Papa Francisco quis transformar o seu discurso num gesto de profunda confidência, passando das razões do intelecto às do coração. “Antes de me despedir, tenho mais uma coisa para lhes dizer, que é importante para mim”. O que era essa coisa que o Papa deliberadamente tinha guardado para o final do seu discurso? E por que quis ressaltar a importância daquilo que ia dizer, revelando com singular intensidade o seu envolvimento pessoal nesse pedido? As suas palavras são eloquentes: “Eu gostaria de lhes pedir que não se esqueçam dos pobres, que são os preferidos por Cristo, de todas as maneiras em que se é pobre hoje. Também os pobres precisam da arte e da beleza. Alguns vivenciam formas duríssimas de privação da vida; por isso, precisam mais. Eles geralmente não têm voz para se fazerem ouvir. Vocês podem se tornar intérpretes de seu grito silencioso".
Esse apelo é ainda mais poderoso porque se inspira numa referência biográfica central e esclarecedora. Ao recordar o Conclave que o levou à Sé de Pedro, Jorge Bergoglio cita muitas vezes o impacto da frase que lhe foi sussurrada pelo cardeal brasileiro Cláudio Hummes, no momento da eleição. O amigo de longa data o abraçou e disse, para que só ele ouvisse: “Não se esqueça dos pobres!” Foi esse pedido, que o tocou profundamente, que o fez escolher o nome de Francisco e, certamente, que determinou o rumo que o seu pontificado tomaria.
É por isso que a oração do Papa aos artistas não é uma oração bem-intencionada e lateral, mas a expressão daquilo que ele próprio viveu como um ponto de virada.
A filósofa Adela Cortina cunhou o termo "aporofobia", combinando duas palavras gregas: áporos, o pobre, o indefeso, e fobéo, que significa temer, odiar, rejeitar. Assim como xenofobia é a “aversão pelos estrangeiros”, aporofobia é “a aversão pelos pobres porque são pobres". A pensadora criou esse novo termo porque precisamos dar nome às coisas para reconhecer que existem e que podem ser enfrentadas com responsabilidade. Essa exigência está perfeitamente alinhada com o diagnóstico de Adriano Pedrosa, curador geral da LX edição da Bienal de Arte, quando denuncia “os riscos e as armadilhas escondidas dentro da linguagem".
As línguas devem se tornar laboratórios de busca de sentido e de justiça. De fato, precisamos rever a semântica de muitos termos culturais que chegaram até aqui, até ao presente, como sonâmbulos, mas temos também de encontrar novas palavras e alcançar realidades banidas da visibilidade dominante. Para conseguir tudo isso, porém, não basta uma simples cosmética: é necessária uma mudança na base. Adela Cortina afirma isso claramente, numa reflexão ampla, que nos obriga a refletir também sobre os dispositivos de circulação e afirmação da arte contemporânea: “Se o sucesso, o dinheiro, a fama e os aplausos são os valores supremos das nossas sociedades, é praticamente impossível garantir que as pessoas tratem todas as outras em pé de igualdade, reconhecendo-as como iguais."
Como Bergoglio, a arte contemporânea precisa de um ponto de virada. Uma virada que a ajude a preservar e fortalecer seu espaço de crítica, criação e liberdade, permitindo-lhe compreender com maior consciência a sua contribuição para a comunidade humana como um todo. Recusando a condição exclusiva de “estrutura de mercadoria” (Lukács), a arte a contemporânea necessita, por exemplo, se redescobrir, sob diferentes formas, como uma corajosa estrutura de reciprocidade.
O pedido de Francisco é que a arte contemporânea não fuja do risco do diálogo com aqueles que “experimentam formas duríssimas de privação da vida”, tornando-se intérprete “do seu grito silencioso." O Papa sabe bem do que está falando.
Acredito que o número realmente impressionante das visitas a prisões já realizadas por Francisco ainda não foi adequadamente avaliado como elemento "político" e teológico do seu pontificado. Francisco é o líder mundial que presta maior atenção a esses espaços e aos seres humanos que os habitam. Basta dizer que ele visitou os presos na prisão 17 vezes (12 vezes na Itália e 5 no exterior). Essa escolha representa também um "grito silencioso" que devemos ouvir.
Não é, de forma alguma, estranho, portanto, que o Pavilhão da Santa Sé tenha identificado como sede a prisão feminina da Ilha da Giudecca. E aqui gostaria de expressar minha gratidão às autoridades nacionais e locais, a começar pelo Ministério da Justiça italiano, que imediatamente compreendeu o alcance da proposta da Igreja e tornaram-na possível. Há muito o que fazer nesse campo! Como diria George Steiner, trata-se de empreender um “deslocamento hermenêutico” que promova a responsabilidade de todos no cuidado das populações prisionais e estimule experiências de humanização e esperança. A justiça é uma tarefa coletiva inacabada, porque exige reparação, mas também escuta, reconstrução da vida, reabilitação da confiança, portas que se abrem e não apenas portas que se fecham.
O que a arte contemporânea pode fazer nesse âmbito? A arte pode estar ausente dos lugares de dor, em que se elaboram as maiores e mais difíceis demandas? Essa é a pergunta que tentaram responder dois curadores extraordinários, Bruno Racine e Chiara Parisi, convidando um coletivo de artistas para se expressar sobre o assunto e tomar posição.
E foram todos eles e elas, presentes no nosso Pavilhão, que responderam ao apelo: Maurizio Cattelan, Bintou Dembele, Simone Fattal, Claire Fontaine, Sonia Gomes, Corita Kent, Marco Perego & Zoe Saldana e Claire Tabouret. Mas não responderam sozinhos e sozinhas, cada um por si. Faziam-no sempre na companhia das mulheres presas na prisão veneziana. Porque um dos aspectos mais significativos dessa história é o fato de que foram essas mulheres a oferecer inspiração, afeto e histórias aos artistas, e que agora são elas que interpretam as suas obras ao longo da duração da Bienal, assumindo o papel de guias da exposição.
E duas coisas sejam talvez mais evidentes para todos nós no final desse processo. Primeira: quando o nosso grito é ouvido, nos tornamos mais capazes de interpretar o grito dos outros. Segunda: o grito de dor que se ouve nesses recintos de sofrimento que são as prisões pode tornar-se a parábola urgente de todo grito humano. O grito que nós, na correria da vida cotidiana, temos dificuldade para ouvir.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O grito silencioso que a arte nos faz ouvir. Artigo de José Tolentino de Mendonça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU