07 Novembro 2022
Francisco, como pastor, reivindica o direito de poder usar a palavra “paz”, invocá-la, desejá-la. Ele se põe do lado do povo e reivindica seu direito à paz.
A opinião é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Catollica, em artigo publicado em La Stampa, 06-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Estou no Bahrein, onde acompanho Francisco em sua viagem apostólica. O papa decidiu visitar um pequeno país onde existe uma pequena Igreja que é um “mosaico” de línguas, povos, origens, culturas.
Mas o país em si mesmo, em geral, é composto majoritariamente por imigrantes. O papa apelou à Constituição, porque todos são chamados a trabalhar juntos pelo bem comum como cidadãos. Ser cidadão é a base para construir a paz, compondo as diferenças para um projeto compartilhado.
As tensões existem: a maioria xiita é governada por uma monarquia sunita. Mas é justamente a partir daí que se eleva o grito de paz e reconciliação. Juntos, o papa e o imã de al-Azhar invocaram um inédito, mas indispensável, diálogo intraislâmico. É preciso confiança e imaginação, mas hoje, mais do que nunca, isso é necessário para pensar o futuro da humanidade.
A partir desse lugar tão composto, Francisco está olhando para o mundo e nos ajuda a olhá-lo com sabedoria. E o que ele vê? Parece-me que ele vê surgir “o pior lado do ser humano”, a “realidade monstruosa e insensata da guerra, que por toda a parte semeia destruição e erradica a esperança”. Sabemos que Francisco ama as imagens para expressar seu pensamento. Aqui, eu o escutei enquanto falava de dois mares. De um lado, o “mar calmo e doce da convivência comum”; de outro, o mar “agitado por ventos da guerra, com suas ondas destruidoras cada vez mais tumultuadas, que correm o risco de esmagar a todos”.
Não há necessidade nenhuma de explicar o sentido do contraste entre essas águas. Mas, depois, Francisco foi preciso, cirúrgico, na análise. À luz das contraposições que animam a política internacional neste tempo, o juízo tornou-se impiedoso: “Poucos poderosos se concentram em uma luta resoluta por interesses de parte, exumando novamente linguagens obsoletas, redesenhando zonas de influência e blocos contrapostos”, disse. Em duas palavras, fez a fotografia das dinâmicas da política internacional dos nossos dias.
Francisco não é um político: é um pastor. É claro que ele tem uma visão do mundo. Ele a explicou pouco tempo atrás: continua-se a governar o mundo como um “tabuleiro de xadrez”, em que os poderosos estudam os movimentos para estender o predomínio em detrimento dos outros. Sua ideia sobre a guerra baseada nos “novos imperialismos” sempre foi clara. Ele a reiterou aqui no Bahrein. Francisco levantou a perspectiva de “amargas consequências” se não “pararmos de distinguir de maneira maniqueísta quem é bom e quem é mau, se não nos esforçarmos para nos entender e colaborar pelo bem de todos”. São sempre palavras dele. Precisas.
Mas, a partir desse deserto da Península Arábica – nas estratégicas rotas marítimas do petróleo –, que se volta ao Irã, ele fez uma afirmação muito severa: “Parece que estamos assistindo a um cenário dramaticamente infantil: no jardim da humanidade, em vez de cuidar do todo, brinca-se com fogo, com mísseis e bombas, com armas que provocam pranto e morte, cobrindo a casa comum de cinzas e ódio”.
Brinca-se de guerra, como se as bombas fossem bonecas. Pelo contrário, trovejou, devemos aprender “a olhar para as crises, os problemas, as guerras, com os olhos das crianças”. Uma coisa é ter os olhos das crianças, outra é ser infantil. Não, não é bondade ingênua, mas sabedoria, porque só pensando nas crianças “o progresso se refletirá na inocência ao invés do lucro e ajudará a construir um futuro à medida humana”, disse ele.
Este é o ponto: perdemos o futuro! Achamos que o futuro não é mais possível, não temos mais os olhos de quem deve crescer neste mundo fracassado. Francisco, como pastor, reivindica o direito de poder usar a palavra “paz”, invocá-la, desejá-la. Ele se põe do lado do povo e reivindica seu direito à paz. E, então, as pessoas fazem bem em gritar por paz, em articular esse grito pelas ruas, muitas vezes silenciado pela retórica bélica. Saímos às ruas porque a invocação da paz não pode ser suprimida.
O grito não conhece fórmulas mágicas para sair dos conflitos, disse Francisco no recente encontro promovido pela Comunidade Santo Egídio, mas igualmente tem “o direito sacrossanto” de pedir paz e merece escuta e respeito.
Celebrando a missa, Francisco lembrou que o profeta Isaías imaginava o Messias. E dizia dele que “grande será o seu poder, e a paz não terá fim”. Francisco comentou amargamente: nestes tempos, “parece uma contradição”. Por quê? Porque, no cenário deste mundo, “quanto mais se busca o poder, mais a paz é ameaçada”. O poder se conjuga com “visões despóticas, imperialistas, nacionalistas e populistas”. E esse é, portanto, um segundo ponto-chave dos discursos destes dias: reconciliar poder e paz.
Por isso, hoje é mais do que nunca importante sair às praças e às ruas gritando “paz”: para que as pessoas possam dizer que ainda querem acreditar no futuro e para que possam expressar o desejo de um poder que seja sinônimo de paz. E, a partir das ruas desérticas do Bahrein, deste canto do mundo, Francisco hoje está gritando “paz!”.
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O direito de gritar “não” às armas. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU