06 Abril 2024
"Hoje, estamos sob o jugo do paradigma tecnocrático: as tecnologias são instrumentos para estabelecer uma relação de dominação e manipulação do ser humano e da natureza, explorando seus recursos como se fossem infinitos".
O comentário é de Paola Springhetti, professora da Pontifícia Universidade Salesiana, em Roma. O artigo foi publicado em Vino Nuovo, 02-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Somos como galinhas, que cacarejam por um pouco de comida, incapazes de alçar voo, apesar do risco de cair no abismo de uma tripla crise: ecológica, digital e espiritual?
Seria possível dizer que sim ao ler o livro de Fabio Pasqualetti, intitulado justamente Ecologia, digitale, spiritualità (editora Castelvecchi, 2024), que investiga a relação “complexa e problemática” entre essas três dimensões – que hoje se tornaram três abismos a serem superados, se quisermos ter um bom futuro –, apenas aparentemente desconectadas e independentes entre si: na realidade, não são três abismos diferentes, mas sim três aspectos de um único precipício. Um precipício construído ao longo das décadas pelo ser humano.
"Ecologia, digital, espiritualidade", em tradução livre, novo livro de Fabio Pasqualetti. (Foto: Divulgação)
Escolhemos viver de acordo com um modelo de desenvolvimento insustentável. Nos anos 1960, seguimos o paradigma da modernização, que apostava tudo no crescimento econômico, na escolha tecnológica, no planeamento do desenvolvimento, enquanto as causas do subdesenvolvimento eram atribuídas a causas internas dos vários países daquilo que então se chamava de Terceiro Mundo.
Nos anos 1970, seguimos o paradigma da dependência: uma série de autores, especialmente latino-americanos, denunciavam a dependência dos países do Terceiro Mundo em relação ao Ocidente. Mas esse paradigma também não funcionava, porque acabava negando os problemas internos dos países pobres e reduzia o debate aos aspectos tecnológicos e econômicos da modernização.
Hoje, estamos sob o jugo do paradigma tecnocrático: as tecnologias são instrumentos para estabelecer uma relação de dominação e manipulação do ser humano e da natureza, explorando seus recursos como se fossem infinitos. Um paradigma ainda predominante, apesar de estar se tentando uma transição para a sustentabilidade e apesar das propostas de pensadores como Serge Latouche (que propôs o paradigma do decrescimento, contra o totalitarismo do economicismo) ou o Papa Francisco, da Evangelii gaudium (“esta economia mata”) à Laudato si’ e à Laudate Deum.
Já se entendeu que a transição para a sustentabilidade exigirá mudanças fundamentais, e não apenas no campo energético. Pasqualetti lembra que, segundo Jørgen Randers, a busca de um modelo de desenvolvimento que não seja mais linear, mas adaptável à “capacidade de regeneração planetária”, acabará pondo novamente em discussão o modelo capitalista e também a democracia, ainda que, enquanto isso, as tensões sociais aumentarão, devido ao contínuo aumento da distância entre ricos e pobres e à multiplicação das desigualdades.
Uma verdadeira mudança só pode acontecer graças a uma combinação de escolhas políticas – que os governos deveriam implementar – e escolhas individuais – pelas quais cada cidadão é responsável – porque se trata de mudar estilos de vida pessoais e comunitários. Parece um pouco fácil demais confiar na tecnologia para resolver os problemas da poluição e das mudanças climáticas, em particular na inteligência artificial à qual somos tentados a confiar a tão em voga transição verde: “Uma versão atualizada do ‘santo graal’ capaz de dar uma nova vida ao nosso planeta” (p. 39). Não existe a possibilidade de delegar as responsabilidades neste campo, nem mesmo para a inteligência artificial.
A tecnologia certamente teve e tem muitos méritos, mas levanta dois problemas fundamentais. O primeiro diz respeito à intensa atividade de coleta de dados, na qual os instrumentos das novas tecnologias baseiam seus ganhos e seu poder: uma atividade que nos fez entrar na era da vigilância e da modificação comportamental.
O segundo reside no consumo de energia que o uso dessas tecnologias implica, embora muitas vezes sem que tenhamos consciência disso. Além disso, a “revolução digital” facilitou a “avidez econômico-financeira que se expressa no primado do lucro [...] oferecendo ao sistema econômico uma instrumentação altamente sofisticada e poderosa” (p. 46).
Todos esses são elementos que põem em risco a democracia, assim como a desordem informacional a que as novas tecnologias deram um impulso determinante e que se expressa não só na difusão massiva de mensagens de propaganda e de fake news, mas também na desconfiança em relação ao jornalismo profissional e se alimenta pelo hábito de se informar pelas mídias sociais, onde não há distinção entre comunicação e informação, e onde a informação, quando chega, chega “personalizada”, pois é selecionada e hierarquizada pelos algoritmos, e não pelo cidadão.
Soma-se a isso o “mito” da precisão e da indiscutibilidade da inteligência artificial. Um mito que, no âmbito da informação, esperamos que desmorone em breve.
Em síntese, o digital e sua contínua evolução favoreceram a economia de marca neoliberal, globalizando também a pobreza e tornando o poder “cada vez mais invisível e difícil de rastrear”.
O abismo ecológico e o abismo digital têm alguns traços comuns:
- o protagonista é sempre o ser humano, “que, com sua criatividade e suas capacidades tecnorracionais, soube dominar o habitat em que vive e moldá-lo à sua vontade” (p. 66);
- o ambiente, porém, perde: parece destinado a ser consumido, por assim dizer, sempre que o ser humano acredita que está progredindo;
- a harmonia evapora-se cada dia mais: seja aquela entre o ser humano e o ambiente, seja entre os seres humanos, a paz e o diálogo parecem cada vez mais palavras evanescentes, desintegradas pela desinformação, pelas fake news, pelos discursos de ódio, pela sobrecarga de informação…;
- o individualismo tornou-se a marca registrada dos indivíduos e das pessoas em suas relações com o ambiente, com a comunidade, com o território. Relações cada vez mais adoecidas e incapazes de construir o bem comum.
Como responder a tudo isso? Precisamos repensar a economia, a política, a ética. Mas isso não é suficiente para estes tempos em que “as respostas das religiões aos problemas contemporâneos [...] não satisfazem mais a mente adulta, madura e independente do ser humano contemporâneo” (p. 69).
O terceiro abismo a ser superado é a falta de uma espiritualidade que nos ajude a encontrar as respostas. Razão pela qual, sim, como escreve Pasqualetti, “às vezes tem-se a impressão de que o mundo imaginário que construímos para nós mesmos e os desejos que o ser humano cultiva não estão muito distantes das galinhas, que cacarejam por um pouco de comida, incapazes de alçar voo rumo a outros e altos ideais”.
Portanto, é preciso focar em uma nova espiritualidade, que devolva a Deus “sua absoluta independência de toda forma de manipulação humana e devolva ao ser humano a consciência de um pertencimento a todo o cosmos” (p. 74). Que restaure esperança e perspectivas, assim como indicações para evitar o apocalipse à beira do qual estamos vacilantes.
Uma espiritualidade que se baseie na relação sagrada que existe entre nós e a criação que Deus nos deu. “A crise ecológica é uma crise espiritual do ser humano contemporâneo, os desertos fora de nós estão relacionados com o vazio e o deserto existencial que o ser humano ocidental criou. É necessária uma mudança de estilo de vida, mas ainda mais urgente é uma mudança de mentalidade que passe da posse das criaturas para o cuidado de todos os seres vivos, da atitude de sermos predadores da terra para sermos guardiães da criação” (p. 81).
Nos últimos anos, o Papa Francisco criou e divulgou um verdadeiro algoritmo do encontro, com suas mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais e outros escritos. É muito mais do que um ponto de partida: é um caminho traçado.
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Ecologia, digital, espiritualidade: três crises em uma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU