04 Abril 2024
"Tiranias e autocracias, desde o tempo dos assírios já tinham elaboradas complicadas técnicas de tortura, certamente não levantam problemas sobre os limites judiciais. Muito menos aquelas tão ternamente pós-soviéticas. Naquele mundo, em qualquer processo histórico, havia sempre um lado positivo e um negativo".
O artigo é de Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 26-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É um caso clássico: cometer o mal em nome do bem, ou melhor, pelo bem da Causa. Intenções demasiado radiantes, isto é, prevenir novos delitos, salvar inocentes, coroando assim as piores ignomínias. Falamos, sim, da tortura, a tortura para revelar as tramas do terrorismo, desarticular as redes dos fabricantes de cadáveres em nome de Deus, que já atacou e ameaça atacar novamente. É assim que a violação da interdição que foi cara a Verri e Beccaria se reduz a uma pequena exceção administrativa. E torna-se o deslize que demonstra como, ao frequentar o inimigo, é impossível não ser contagiados pela mesma lógica. O Direito adormece nas nossas mãos.
Menos escrúpulos! O sacrossanto resultado é mais importante do que os meios utilizados para o obter.
Por que falar sobre isso agora? Sabe-se lá se os presos pelo massacre de Moscou são realmente jihadistas ou a mão de obra sanguinária de provocações bem mais retorcidas. E sabe-se lá se as suas “confissões” tão rápidas e aparentemente completas, não permanecerão nos arquivos dos herdeiros da KGB e dos implacáveis letões da Cheka com a sua verdade; e aquela que será tornada pública e utilizada para a sequência punitiva será outra, que faz parte dos planos do Kremlin empenhado na guerra total, isto é, por todos os meios e formas, com a Ucrânia e o Ocidente.
E precisamente isso, o contexto, a guerra, é o motivo para refletir. Depois de 2001 e da obra-prima de Bin Laden, a guerra estadunidense contra o terrorismo legitimou vastas e profundas exceções ao direito, entre as quais o recurso à tortura para obter nomes, provas e informações sobre a internacional islâmica.
Um desvio que no Ocidente, sem aquele choque homicida, teríamos contestado com veemência como intoleráveis limitações e lesões à democracia. Bem, no clima de uma emergência bélica muito mais ampla do que a jihad dos apóstolos da Al Qaeda e herdeiros mais ou menos espúrios, no ‘vamos nos preparar’ para o ataque da tirania não do califado, mas de Putin, o novo Medo pode iniciar e justificar (já podemos perceber os sinais) outras e mais rígidas distinções.
Certamente não há dúvida sobre a forma como os interrogatórios são conduzidos em Moscou para obrigar a falar os autores culpados pelo massacre. Tanto que um deles apareceu horrivelmente deformado pelo corte de uma orelha.
Tiranias e autocracias, desde o tempo dos assírios já tinham elaboradas complicadas técnicas de tortura, certamente não levantam problemas sobre os limites judiciais. Muito menos aquelas tão ternamente pós-soviéticas. Naquele mundo, em qualquer processo histórico, havia sempre um lado positivo e um negativo. Uma coisa elementar, em suma, uma dialética. Stalin era um mestre férreo, quase primitivo. Tortura-se, portanto, mas o importante é que os traidores, os espiões, os inimigos do povo confessem: e sobretudo falem os nomes dos cúmplices. Como em muitas coisas, o putinismo nada mais faz senão confirmar, prolongar, imitar.
É curioso que a acreditar apaixonadamente no retorno do perigo jihadista, do terrorismo generalizado, do qual já se anunciam controles reforçados e reuniões de urgência de serviços de inteligência e de gendarmarias, são apenas os ocidentais. Enquanto as vítimas, os russos, ou seja, aqueles que possuem as melhores ferramentas para decifrar a realidade do que aconteceu, quase não falam sobre isso.
Além disso, há os homens. O que importa os homens se o seu sacrifício é útil? Existem as intenções. O que importa se estabelecemos que, em alguns casos, as boas anulam as más? Somos nós, o Poder, que o estabelece. Impedir atentados contra pessoas inocentes, por exemplo, é uma ideia santa. Mas quando em nome da necessidade semeamos a violência e a violação daquilo que defendemos, a lei, o que restará daquela ideia santa?
Porque aqui não estamos falando de Putin, de Bashar ou dos ferozes tiranos do Sul global. Falamos também de Guantânamo e Abu Ghraib: a tortura democrática com o aval de excelentes Cortes, tribunais e parlamentos. A toda objeção se retrucava: mas diante do terrorismo, a democracia ocidental afunda! E na verdade afundava em Guantânamo e em Abu Ghraib. E para falar sobre o jihadismo do Hamas e do seu 7 de outubro, afunda nas prisões israelenses, se forem confirmadas as denúncias de alguns prisioneiros de guerra de Gaza. Vimos a democracia afundar e com ela o direito nos anos de Bush e companhia. Quando dissemos: depois de ver o que esses fanáticos fazem, por que deveríamos torcer a boca diante de inspeções sem regras, garantias atenuadas, prisões fantasmas e até alguns interrogatórios violentos? Em nome de que escrúpulos? A tortura para aterrorizar e escravizar, aquela dos tiranos, essa não, por caridade! É um negócio torpe, nós a proibimos e a denunciamos como um feitiço maligno sangrento e metódico. Mas é necessário para a segurança coletiva, para nos defendermos de cada turvo foco, proceder a alguma suspensão, momentânea, seja claro. Vamos lá! Faça-os falar de qualquer maneira, por qualquer meio, elimine-os, torture-os.
No Ius da (santa) Inquisição proclamava-se que o pedaço de corda servia para salvar a alma do suspeito herege, para encontrar outros desviados por Satanás. O que era exigido não era tanto a evidência da culpa do acusado, mas as indicações para outras prisões de pregadores funestos, para queimar livros venenosos e para identificar covis de sabá. As ideologias totalitárias assumiram a batuta, passando da corda aos choques eléctricos. E muito mais...
Depois das Torres Gêmeas, a justiça ocidental assumiu publicamente a sua cota de violência, o uso do sofrimento saiu das sombras e das regras para se tornar um ato processual e administrativo explícito. O corpo dobrado, humilhado e espancado volta a ser o alvo direto da ação penal.
O caráter atroz da tortura reside em colocar o desafio inquisitorial no plano da resistência do ser humano à dor. Conheci um miliciano islâmico sírio que se vangloriava de ser capaz de manter vivo durante semanas um prisioneiro de quem queria extrair “a verdade”, submetendo-o a rodadas de tortura feroz todos os dias: meu recorde é de duas semanas! dizia. E confessava, com modéstia, que havia aprendido a “técnica” copiando o que os torturadores de Bashar Al-Assad experimentavam nas prisões do regime contra opositores ou islâmicos.
Quem interroga torturando e o prisioneiro lutam não com base na evidência dos fatos e das provas, mas num espaço de direitos abolidos que dão licença à inventividade do anatomista do sofrimento.
Bem, que fique claro: nenhum jihadismo e nenhuma guerra nos justificam a gerir e nos aproveitar das ilegalidades.
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De Abu Ghraib às prisões de Assad quando a “segurança” cancela o homem. As torturas dos terroristas e as fronteiras da humanidade. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU