Perfurar as masculinidades para que possa entrar oxigênio. Não para criar modelos de homens ideais, mas para ampliar o que é ser um homem e mudar significados e hierarquias sociais. Em Perforar las masculinidades (Bellaterra), Alfredo Ramos (Madrid, 1978) reflete sobre um tema recorrente nos últimos tempos, mas com a carência de novas abordagens. Doutor em ciências políticas, Ramos tem participado de diversas experiências de economia social e por vários anos trabalhou no grupo do Podemos, na Comunidade de Madrid, experiência da qual provém um dos capítulos mais afiados do livro.
O texto aposta em ressignificar a vulnerabilidade e o fracasso, dois pilares da masculinidade: “A vulnerabilidade esconde uma trama relacional, algo muito contrário a esse ideal do sujeito masculino autônomo. Colho muito da ideia de Gilson de que nos apaixonamos porque somos vulneráveis. Uma das coisas que temos de pensar nas políticas públicas e nos espaços de dissidência é como afetamos e como nos deixamos afetar”.
A entrevista é de Ana Requena Aguilar, publicada por El Diario, 25-03-2024. A tradução é do Cepat.
Uma das abordagens mais comuns para falar sobre masculinidade é a dos privilégios, mas você propõe se afastar dessa forma de olhar ou, ao menos, não trabalhar só a partir dela. Por que considera esta abordagem problemática?
Seria absurdo, como ponto de partida, negar a existência de privilégios. As masculinidades se assentam sobre um dividendo patriarcal muito evidente. Nós, homens, gozamos de direitos e privilégios que as mulheres não têm e existe uma injustiça de gênero evidente.
Contudo, enfrento a questão dos privilégios por duas razões. Em primeiro lugar, porque acredito que os privilégios não são um elemento homogêneo dentro da condição masculina e é problemático quando esse discurso homogeneiza a experiência dos homens. É preciso unir elementos de raça, de classe... E, sobretudo, o mais problemático é essa ideia de jogo de soma zero: você tem que perder alguma coisa para que eu ganhe.
Para repensar as masculinidades e a justiça de gênero precisamos imaginar novos direitos. Se o enfoque está em que queremos que o mundo seja como é e simplesmente dividimos as posições dentro das condições atuais, penso que estamos prestando um fraquíssimo favor a nós mesmos em termos de imaginação política. É o que as masculinidades hegemônicas defendem.
Você defende a masculinidade como uma norma social que não apela apenas aos homens, toda a sociedade constrói a masculinidade. Pensar em outras masculinidades possíveis é uma tarefa coletiva?
Olhar dessa forma questiona a ideia da própria autonomia dos homens na hora de trabalhar a masculinidade. Se fica parecendo que é apenas uma coisa de homens, então, parece que posso fazer o que quiser com ela, que posso me livrar dela, que sozinho no meu quarto, em uma manhã, traumatizado pela leitura de uma postagem no Instagram, derrubarei todos os muros da minha masculinidade.
Isso implica não assumir que a masculinidade faz parte das instituições que nos governam e que convive com o patriarcado, da mesma forma que convive com os preceitos da modernidade, com muitos elementos racistas e coloniais.
Então, deveríamos estar mais conscientes de que, por exemplo, as expectativas sociais, mas também as expectativas, atitudes e ideias concretas de homens e mulheres contribuem para construir um modelo de masculinidade?
Sim, é um elemento fundamental. Muitas vezes, soa como uma complexidade adicional, como: “Minha mãe! Agora, ainda preciso me ocupar da masculinidade”. Contudo, abre um campo de possibilidades. Ou seja, todos e todas participamos de uma forma ou de outra na construção do masculino e da masculinidade e, portanto, também podemos participar da sua transformação.
Essa sensação de cansaço por cuidar ou se ocupar também deste assunto, muitas vezes, é arrastada por muitas mulheres feministas, que têm a sensação de que sempre fazem o ativismo e o esforço, em muitos casos sozinhas, ou de não serem ouvidas e consideradas por muitos homens. Por que as feministas devem incluir este tema em sua agenda?
O problema é que o abordamos como se tratasse de nos preocupar por coisas de homens. Vou dar dois exemplos. Primeiro, a clássica campanha da menina e da mulher na ciência. Basicamente, nós nos acostumamos a se deparar com a campanha típica: “Isabel, torne-se engenheira civil” ou “Natalia, torne-se matemática”. Neste marco, uma das coisas que acontece é que configuramos que o lado bom das coisas é o masculino, ou seja, as profissões masculinizadas, que é onde você será importante na sociedade. Contudo, não vemos nenhuma campanha que seja assim: “Carlos, querido, faça educação infantil” ou “Antônio, chegar em casa às oito da noite, todos os dias, não é bom para você, nem para ninguém”.
Então, não se trata de nos preocuparmos com as coisas dos homens, mas com o lugar hegemônico que as coisas dos homens têm, porque é bom para todos e para todas. Queremos construir condições de vida melhores e mais justas para a sociedade como um todo. Outro exemplo é a insubmissão, que foi basicamente uma rebeldia contra uma instituição masculina patriarcal. Foi uma rebelião coletiva de homens e mulheres contra algo que, embora em certo sentido estava encarnado por homens, modificava os imaginários sociais.
Então, estamos nos concentrando muito em pensar que a solução para a masculinidade está na mudança pessoal? Isso não pode ser uma desculpa para muitos homens não se responsabilizarem por seus comportamentos ou justificá-los porque estão condicionados pelas estruturas?
Não acredito que os grupos de homens sejam a solução, não acredito que sejam uma ferramenta muito eficaz. Alguns dos textos mais relevantes que li para escrever este livro foram produzidos por grupos de homens, mas para mim o mito do homem que se constrói, exceto casos muito excepcionais, parece-me muito limitado em seu impacto e nada mais faz a não ser restaurar esta figura do sujeito masculino onipotente que pode tudo e que pode reescrever a sua própria história.
É algo que se baseia no que chamo de guinada emocional nas masculinidades, pensar que o único problema que tenho é que havia perdido a conexão com a minha criança interior. Então, pode ser que você seja um misógino, um totalitário, um sacana, mas está muito conectado com a sua criança interior.
Onde está o meio-termo entre pensar que se trata de uma mudança estrutural e acreditar que tudo se resolve indo a um grupo de homens para se repensar e compartilhar com os outros?
O problema dos grupos de homens é que costumam ser extremamente homogêneos, ao menos os que eu conheço. E têm uma história complicada: os grupos que surgem nos anos 1960, 1970, 1980, a partir de certas ondas do movimento feminista, acabam se tornando o germe dos grupos de defesa dos direitos dos homens. Ou seja, são homens fechados conversando entre si sobre a condição masculina. Isto pode dar certo, mas pode dar muito errado.
A defesa da condição masculina acaba se tornando a defesa dos direitos dos homens. E há um limite muito claro: eu posso passar meses me desconstruindo como homem, mas será que em uma entrevista de emprego vou dizer que não quero uma vaga porque a outra pessoa que estavam entrevistando era uma mulher muito mais qualificada? Não, entre outras coisas porque provavelmente não a conheço. Existem muitas barreiras e fronteiras que têm a ver com as instituições que nos governam, que cinco senhores em uma sala não transformarão.
Existem grupos que são muito necessários em termos de terapia e coisas assim, mas também há o problema dos homens que se acostumam a conversar entre eles, que é o que fizemos durante a vida toda. O resto dos agentes que estão fora desse grupo, mas que se supõe que estão intervindo nesse problema e que em muitos casos são mulheres, perdem legitimidade. Existe uma tendência que leva a perder o reconhecimento dessa figura e acaba sendo o espaço autoprodutor da homossocialidade.
Já desde o título, você fala em perfurar as masculinidades para torná-las porosas, para que mais pessoas possam decidir o que significa ser um homem. Mais do que uma nova masculinidade concreta, seria o caso de abrir a possibilidade do que é ser um homem?
Sim, e isso tem a ver com pluralizar o debate. Os grupos de homens são homens que refletem eles próprios. Contudo, é preciso oxigenar os lugares a partir dos quais você pensa e as pessoas com quem pensa. Não se trata de passar do desejo de ser Arnold Schwarzenegger para ser Timothée Chalamet. Não é produzir outros homens ideais, mas, sim, avançar em nos perguntar outras coisas.
É preciso dar mais visibilidade aos custos negativos da masculinidade para os próprios homens?
É preciso visibilizá-los, mas dentro dos custos da masculinidade em geral. Porque pode acontecer que termine neste discurso de “que eu também estou deprimido” ou que pareça que os homens sentem que estão passando pior que a outra. É um diálogo que não faz sentido algum, porque se trata de uma norma social problemática para a sociedade como um todo. Visibilizar os efeitos negativos da masculinidade é muito necessário, mas em geral.
Por outro lado, questiona que alguns discursos fomentem muito a culpa nos homens e que isso é contraproducente...
A culpa é um conceito pouco mobilizador e há muitas maneiras de abordá-la. Parte disso tem muito a ver com essa ideia de se fazer culpado por coisas que excedem o seu alcance. Você faz coisas das quais é culpado porque fazem parte de suas ações, mas nem tudo está ao seu alcance. E, sobretudo, parece-me que é um discurso que na prática está levando a guinadas mais conservadoras do que para uma tomada de consciência.
Quer dizer que são discursos que alimentam a extrema-direita?
Sim, penso que o discurso culpabilizador, especialmente a pessoas jovens, mobiliza para o outro lado.
Dedica um capítulo inteiro ao Podemos, onde trabalhou por um tempo, e sua relação com a masculinidade. Será que o Podemos fracassou em sua tentativa de feminizar o partido e a política, como propuseram?
O Podemos tentou? Para mim, é a primeira pergunta. Para além do fato de que existia um debate, de que havia uma área de igualdade que o promoveu muito, de fato, para mim, o Podemos nunca tenta, de suas narrativas iniciais ao seu desenvolvimento posterior.
O Podemos é uma tentativa muito ousada de fazer política, mas que reproduz ponto a ponto as características essenciais do que é uma organização política masculina no tipo de lideranças, na organização interna, na narrativa que faz de si mesmo, independente de ações muito concretas que não vinham das lideranças do partido, mas de áreas muito específicas, ou de gestos simbólicos muito particulares, e de encher a boca com essa questão de feminizar a política. Então, o Podemos não fracassa em desmasculinizar a política porque penso que jamais faz tal tentativa.
Por falta de convicção, por inércia, por ser pouco propensos às ideias daqueles que, sim, estavam tentando...?
Mais do que por falta de convicção, por força de outras convicções, por assim dizer, do debate sobre a máquina de guerra eleitoral ao modo como os conflitos são geridos no Podemos. O tipo de figura para a qual o Podemos abre as portas não é de forma alguma aquela que diz: “tenhamos um momento que nos permita sentar, pois isto tem uma tendência muito masculina”.
Reproduz uma forma de se organizar que tem muito a ver com a hipótese populista, com certas tradições de esquerda, e sem qualquer interesse real em questionar quais são os problemas dos imaginários masculinos na política porque estrategicamente é mais coerente com a sua proposta.
Conta, por exemplo, que a rapidez com que tudo é construído e a ideia de uma militância incansável limitaram o tipo de pessoa que poderia acessar determinados debates e espaços porque era incompatível com sustentar os cuidados, por exemplo. Entendia-se que o compromisso com o partido estava ligado à disponibilidade total, como costuma acontecer em qualquer empresa ou organização?
Lembro-me daquela parte das memórias de Íñigo Errejón ao contar que em uma reunião, no início, várias pessoas disseram “vamos foder com a vida”. Fora o fato de que seria necessário discutir se foderam com a vida, você pensa: Quem pode estar aqui? Quem pode participar desta vida? Quem pode correr tão rápido? Porque existe quem pode estar ali, mas também ter outras coisas para fazer, outros interesses, ou pensar que o seu corpo não dá conta o tempo todo.
Parece-me que o Podemos propõe uma margem muito estreita para fazer política, quando justamente o que sempre dizia era que vinha para ampliar o número de pessoas na política. Tem uma parte que, sim, foi ampliada, mas a dimensão qualitativa dessa abertura não foi tanta.
Relaciona a masculinidade de Abascal e a de Iglesias. Possuem algo em comum?
Diria o que possuem de diferente, qual a diferença entre Abascal e Iglesias em termos de performance, para além da ideologia. São ambas masculinidades muito carismáticas, muito vigorosas, que entendem muito bem o conflito de determinada forma, que limitam muito a esfera pública porque limitam a interação a essa brincadeira de pátio de escola, de valentões que são agressivos, extremamente conflituosos.
No fundo existe a ideia de que os debates não fazem sentido algum, porque ninguém vai mudar o seu ponto de vista, e para mim essa é uma das coisas que acredito que é bom mudar. Um debate no qual ninguém vai mudar o seu ponto de vista é uma exibição, não é um debate. E levam essa capacidade de se exibir a um extremo muito heroico, mostrando-se extremamente responsáveis pelas pessoas. Para mim, a fronteira entre os dois é muito tênue em termos de estilo.
Mas, por exemplo, Iglesias desfrutou da licença-paternidade integral e revezou com Irene Montero.
É verdade, talvez a masculinidade dele seja mais contraditória e tenha suas coisas boas. Pelo que me lembro, além disso, ele próprio criticou o famoso cartaz ‘Volta’. Miquel Missé lembra que Pablo foi entrevistado logo após voltar da licença e disse algo assim: “entendi um pouco mais sobre como vai o mundo’. Acredito que jamais alguém em licença-paternidade neste nível teria dito isto.
No livro, ressalta a importância das masculinidades cuidadoras, algo que também é destacado outras vezes. Por que você considera que introduzir essa variável tem tanto potencial de mudança?
Em primeiro lugar, porque um dos pilares básicos da masculinidade, em seu sentido mais clássico, é que um homem não precisa cuidar e não precisa ser cuidado. O modelo é um senhor que parece nunca ter sido cuidado em sua vida e que um dia apareceu do nada e se tornou CEO.
O cuidado é um acidente biográfico nas vidas masculinas, algo que passa muito de repente e que, além disso, não tem nada a ver com a essência masculina, que é a de provedor e protetor. Para mim, revisar as masculinidades a partir do cuidado permite começar a abordar um dos muitos pilares que sustentam a construção da masculinidade. A violência é outro, o poder, outro.
Concentramos esse discurso do cuidado na paternidade, mas ouvimos e vemos muito menos sobre homens que cuidam de pessoas dependentes, de doentes, de seus pais, de seus avós... Esta parte do cuidado é menos atraente?
Gosto de definir isso como a gentrificação do cuidado. Nós nos envolvemos mais com os ‘cuidados fáceis’, ou seja, a brincadeira, a conversa, o passeio. Ignora-se a carga mental e, sobretudo, ignora-se o que tem a ver com o cuidado de outros tipos de pessoas dependentes. Isto tem a ver com a rearticulação desta esfera pública androcêntrica na qual o cuidado tem pouquíssima importância.
Ser pai é a parte mais atraente e tem um reconhecimento simbólico muito rápido. As exigências para ser reconhecido como um bom pai são muito mais simples do que como uma boa mãe. Basta ver quais são as consequências das licenças por nascimento iguais, porque, neste momento, aí permanece a diferença de gênero nas extrapolações e nas reduções da jornada. São necessárias políticas públicas muito corajosas para buscar desmontar esta hierarquia do trabalho nas vidas masculinas.
Quais podem ser essas políticas públicas?
Sou um forte defensor de duas: a renda básica e redução da jornada de trabalho. Mas uma coisa que me parece que seria interessante é mudar os critérios das férias, para que quando as férias vão ser distribuídas em uma empresa, o critério deixe de ser a antiguidade e passe a ser as necessidades de conciliação. É uma discussão, mas, claro, a antiguidade é o único mérito que existe.
É preciso insistir em pluralizar as formas de reconhecimento dos cuidados nas leis. Por exemplo, uma licença para poder cuidar dos filhos de meus amigos. É como essa coisa que os ativistas trans dizem sobre abolir a família, que soa muito mal e, em certo sentido, tem a ver com expandi-la. É isso que as políticas públicas deveriam fazer.