13 Junho 2022
Federico Campagna (Sondrio, Itália, 1984) é um filósofo apaixonado pelos desafios metafísicos e éticos do niilismo contemporâneo, refratário às queixas e militante da possibilidade de elaborar uma arquitetura filosófica fundamental da emancipação. Trabalha como diretor de direitos na Verso Books, em Londres, e é colaborador próximo do pensador Franco Bifo Berardi. Acaba de ser publicado em espanhol seu último ensaio, Cultura profética (Enclave de Libros), texto no qual reivindica a profecia (entendida como compreensão do presente) como terapia de fazer mundo.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ctxt, 06-06-2022. A tradução é do Cepat.
O profeta não como alguém que anuncia o futuro, mas que “vê” o presente. O que é necessário para isso?
Para ver o presente, é preciso separar-se dele pelo menos um pouco. O profeta é capaz de “ver” melhor que os outros, não porque esteja mais mergulhado no presente, nas “coisas atuais”, mas precisamente porque está parcialmente desapegado delas. O que o profeta vê? Vê a própria essência do tempo. Vê os limites do tempo e tudo o que contém. Vê como o tempo é apenas um ritmo através do qual observamos a realidade, e não uma coisa existente em si mesma. Nesse sentido, o que o profeta realmente vê não é o presente, o passado ou o futuro, mas a eternidade que os cerca.
Você defende que a realidade não existe de maneira autônoma, mas depende de quem está olhando para ela. É conveniente olhá-la e construí-la individual ou coletivamente?
A realidade sempre deve ser construída individualmente. E depois, como um instrumento musical, deve ser afinada junto com os outros. Se, ao contrário, cometermos o erro de acreditar que a realidade deve ser construída coletivamente, corremos o risco de obter uma monotonia assustadora. Ou melhor, por metáfora, não mais criar uma realidade maleável de acordo com as necessidades de cada um, mas uma ideologia rígida e totalizadora: a jaula de uma “natureza”.
Do que depende para que a profecia possa fazer o mundo?
Cada um de nós constrói o mundo a cada momento. A cada instante, devemos colocar uma “ordem” na avalanche de percepções que nos dominam: devemos fazer do caos perceptivo um cosmos, ou um mundo. A profecia é um estilo particular de narração, capaz de apresentar uma determinada maneira de fazer o mundo.
A cultura profética é uma épica da metafísica?
De certa forma, sim. É uma épica, no sentido de que é uma forma de “falar” (a raiz do termo épica) de uma imagem total de um mundo. E é também épica no sentido homérico: seu autor não age como autor, mas como um ouvido que sabe escutar a realidade para ouvir a voz das Musas.
Falou-se do silêncio de Deus, mas o homem pós-moderno agora o silenciou. A que preço?
O silêncio é a condição normal de Deus (ou o que geralmente é designado por este termo). Nesse sentido, não se pode dizer que o homem moderno tenha silenciado Deus. O problema do homem moderno, pelo contrário, é que ele não pode suportar o silêncio de Deus; ele quer informação, entretenimento, barulho. Ele quer que o divino fale com ele pelo megafone. E, diante do seu silêncio, ele se sente perdido.
Se “o mundo é uma construção artificial da imaginação”, significa que não somos capazes de encontrar uma alternativa a este mundo em decadência porque há uma crise de imaginação?
A imaginação metafísica parecia ter adormecido nas últimas décadas. Mas, nos últimos anos, talvez também em resposta às várias crises iminentes, parece ter despertado um pouco. Estamos apenas no início de uma nova imaginação metafísica, e é importante não parar agora.
“A ideologia da modernidade ocidentalizada está atingindo seu clímax.” Devemos temer isso ou desejá-lo?
Por um lado, é de desejar, já que depois de um pico geralmente há uma queda. Por outro lado, é de temer, porque o desinflamento de uma ideologia raramente ocorre de maneira pacífica: como um animal ferido, gira, gira e tenta coçar-se. Às vezes, tenta arrastar tudo com ele para o abismo. Vamos torcer para que não aconteça desta vez também.
O que acontecerá quando as novas tecnologias estiverem fora do nosso controle? Ou é o contrário, quando nós estaremos fora do controle das novas tecnologias?
As tecnologias estão fora do nosso controle há muito tempo. Pensemos em uma das primeiras tecnologias, a escrita. Ela escapou do nosso controle imediatamente depois da sua invenção. Ou outra tecnologia antiga: o Estado. Durante quase cinco milênios, o Estado ganhou vida própria e se esforça para nos dominar por todos os meios. E o mesmo acontece com a tecnologia do dinheiro, e muitas outras. As tecnologias muitas vezes ficam fora de controle. E a resposta, a cada vez, é nos lembrarmos que são apenas tecnologias, não “coisas” vivas. Nos lembram que são apenas ficções. Este é, por exemplo, o trabalho que se costuma fazer com um psicólogo: recordar que até o nosso ego, afinal, é uma tecnologia que não devemos permitir que nos subjugue ou nos domine.
O que o fato de que “os valores financeiros são mais legítimos do que as iluminações místicas” nos diz sobre o homem moderno?
Diz-nos que o homem moderno é muito supersticioso. Ele acredita em tudo e se deixa governar por tudo. Inclusive pelos valores financeiros.
Sem mitos, sem profetas, sem símbolos: como será o mundo vindouro?
Eu realmente não acredito que o mundo vindouro seja desprovido de mitos, profetas e símbolos. Teremos que ver.
O que podemos oferecer aos que vierem depois de nós para ajudá-los a construir um novo mundo após o colapso do atual?
Podemos oferecer-lhes ajuda para criar um novo mundo. Podemos proporcionar-lhes uma grande epopeia metafísica que possa inspirar a construção de um mundo novo, diferente do nosso. Esta é a cultura profética sobre a qual escrevo.
Por que a cultura “é incapaz de sobreviver ao corpo social do qual emergiu”?
Porque a cultura é a voz de um corpo social.
De todos os profetas que conhecemos ao longo da história, e que perambulam pelas páginas deste livro, por qual deles você tem especial simpatia?
Sem dúvida, Homero. Um profeta que não fala, mas escuta, que não descreve situações, mas que desenha mapas do universo, que não se limita a fazer literatura, mas é o arquiteto de mundos vindouros.
Você concorda com a afirmação de Bifo, “abandonar a totalidade, fazer proliferar singularidades”, como forma de democracia pós-capitalista? Seria essa singularidade profética?
Concordo com o Bifo, nisso e em muitas outras coisas. Embora seja possível que ele não aceite, acho que há um elemento de intuição mística em sua afirmação, assim como em grande parte de seu pensamento. Uma posição não muito distante da de Simone Weil.
Por fim, gostaria que você fizesse um breve comentário sobre a parte final de "Cultura Profética", a parte narrativa da viagem com suas alegorias e seu processo “homérico”. Quando embarcamos?
A parte final do livro é uma história de viagens, quase como as que conto para o meu filho. Escrevê-la foi a única maneira que encontrei para descrever minha visão da realidade como um grande cosmos multidimensional, no qual nossa consciência se move e se transforma sem nunca se perder. Um profeta não é um autor, mas um lugar cosmológico: é um ponto de vista diante da avalanche de percepções que nos invade, e é uma forma de “afinar” inclusive o próprio modo de ver e sentir.
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“O homem moderno é muito supersticioso. Deixa-se governar por tudo, inclusive pelos valores financeiros.” Entrevista com Federico Campagna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU