26 Março 2024
"O canto litúrgico do tempo pascal retoma de domingo a domingo o significado sacramental das liturgias que permite a assembleia celebrante entender com maior clareza os mistérios da nossa fé com conhecimento de causa. Seguramente este canto pascal sublinha a especificada fonte e origem de nossa fé, o próprio Mistério Pascal", escreve Euri Ferreira, professor de música, teologia e filosofia, com mestrado em teologia pela PUC-SP.
Começamos esta celebração da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém imitando as crianças hebreias que, ao verem Jesus entrar montado num jumentinho, estenderam seus tapetes e o aclamaram com ramos, dizendo: “Bendito aquele que vem em nome do Senhor!”
O canto deste domingo reveste-se da veste da glória do Cristo que será enaltecida na sua entrega de cruz. As crianças hebreias com seus ramos nas mãos são a imagem e destaque do Salmo 24: aquelas que “têm mãos puras e inocente o coração”, a quem desejamos imitar com a mesma reverência que Jesus teve ao assumir sua paixão na mansidão com a qual “subirá até o monte do Senhor”.
É no Hosana, grito da vitória dos mais simples, que se destaca que o Filho de Davi é o Salvador, aquele que, fazendo-se Servo Sofredor, conduz e aponta a vitória dos remidos para a glória definitiva com Deus através da sua cruz.
Mas o grito de vitória parece ser contraditório quando nos deparamos com o relato evangélico da Paixão de Cristo. E o Salmo Responsorial (Sl 22), expressão da ressonância do brado angustiante de que o mundo padece da dor da derrota, será a chave da compreensão deste Domingo que abre as portas da Semana Santa, sobretudo porque Deus não abandonará seu Filho obediente nas mãos da morte de cruz, mas exaltando-o com a força da ressurreição.
O canto litúrgico desta celebração, ocasião em que recordamos os últimos gestos da ceia do Senhor, recorda os grandes mistérios da redenção humana. A passagem do Senhor deste mundo ao Pai é o sinal significativo desta celebração em que através dos sinais litúrgicos e sacramentais, pão e vinho, a própria Igreja se associa em íntima comunhão com seu Senhor.
O canto desta assembleia reunida reflete o espírito de Jesus que, “tendo amado até o fim aqueles que estavam no mundo”, não hesita em oferecer-se em alimento, tomando pão e vinho e distribuindo-os a seus amigos como prova de que só o amor tem a última palavra. Pelo canto de abertura, que se trata de um texto paulino (Gl 6,14), a comunidade celebrante exprime o caráter pascal da vida cristã que se gloria na cruz do Senhor, unicamente no qual se encontra a salvação.
Pelo Salmo Responsorial (Sl 115), a assembleia responde à palavra de Deus com um texto de ação de graças, de bênção para o grande benefício recebido no dom da eucaristia. O canto que acompanha o rito do lava-pés expressa o acento da comemoração histórica do gesto de Jesus ligado ao serviço na humildade e na caridade com aqueles que mais necessitam.
Ao se aproximarem da mesa das oferendas, os fiéis entoam o Salmo 116(115), fazendo ressoar em suas vidas a pergunta do salmista: “Que poderei retribuir ao Senhor por tudo aquilo que ele me fez?” Ou ainda, com o canto “Onde o amor e a caridade”, da riquíssima Tradição da Igreja, traduz as imagens da fé, da união do corpo eclesial e se une à esperança escatológica com a qual deseja reunir-se na mesma mesa no banquete futuro.
Os que se aproximam da ceia do Senhor para receber o sacramento do Corpo e Sangue de Jesus cantam as mesmas palavras quando da sua última ceia, expressando a alegria de associar-se à sua páscoa, comendo e bebendo do alimento espiritual com o qual desejam participar das celebrações dos mistérios que se seguirão ao longo desses três dias.
Calcada num tom de alegria, a assembleia cantante vibra com o Senhor através de um canto de libertação contrapondo o ódio daqueles que o entregaram à morte. Homens e mulheres, seres humanos desejosos também da libertação das amarras da morte, associam-se à entrega ritual do Senhor, e desejam que essa alegria seja, por fim, completada pelos dias que se seguem.
Na Sexta-feira da Paixão do Senhor, celebramos a Palavra de Deus como mistério que anuncia o sentido prefigurado da morte de Jesus. Neste dia, é atualizada a memória da cruz, com sua estreita ligação com a ressurreição.
O espírito dos que cantam o mistério da entrega de Jesus nesta celebração é revestido da atitude da Virgem Maria aos pés da cruz que contempla e medita os fatos do cotidiano marcados por tantas entregas e paixões, por sofrimentos, morte e violência a qualquer custo, atingindo todas as camadas da vida social, mas que aguarda a feliz expectativa da ressurreição dos corpos mutilados pela dor e vilipendiados pelo ódio.
Pelo Salmo Responsorial (Sl 30) fazemos nossa a súplica de alguém que sofre a espera de quem experimentou a bondade do Senhor e sabe que ele não se cansa de defender os seus fiéis, que conhece bem a atividade dos seus inimigos e dos maus em geral. Sobretudo, em nosso momento de privação e de dor, esperamos confiantes que o Senhor nos liberte das mãos daqueles querem ver o nosso fim: a doença, a fome, a falta de moradia, de emprego, de saúde para todos, o mal causado pelo ser humano por causa das mudanças climáticas em curso... A oração de Jesus no jardim das oliveiras lembra esse salmo quando pede ao Senhor que o livre de todas as forças do mal.
Mas nesta celebração não cantamos o canto dos fracassados, visto que parece que tudo termina ali com a cruz. É a impressão que tiveram os discípulos de Emaús, no caminho de volta para casa, na tarde da ressurreição. Jesus experimentou tudo aquilo que o Salmo 21 diz, revivido agora pelo canto do Salmo 30 nesta celebração.
Convencidos de que Jesus realmente passou por um desmoronamento radical, “esvaziando-se de si mesmo”, o beijo da cruz é acompanhado pelo canto que narra as dores do mundo, com as quais Jesus se associou, por isso tomou sobre as nossas dores, simbolizada pelo peso da cruz e, através da qual, fazemos também a nossa cruz.
Em Jesus, seu corpo estendido na cruz é agora considerado como instrumento para o voo ao alto, e não mais como inimigo. É na cruz que seus braços abertos abraçam o corpo do mundo, como sendo seu próprio corpo, numa total liberdade de entrega. O Cristo se torna na cruz pessoa autônoma, que acredita que vencerá a morte passando pela morte, como previa o Salmo 16(15). O mistério contemplado neste dia é o mistério da entrega do Senhor, também contemplado pelo mistério de nossa entrega individual, mas também pela entrega de toda a Igreja reunida para ouvir sua Palavra e interceder por todos, a partir da imagem da cruz.
Jesus foi sepultado num jardim por um discípulo clandestino que pediu autorização para retirar seu corpo da cruz, reservando-lhe um túmulo entre os ricos (cf. Jo 19,38-42). Está no símbolo da nossa profissão de fé que Jesus “padeceu e foi sepultado” ou “desceu à mansão dos mortos”.
Tomando essas referências, a Igreja conservou esse dia dedicando-lhe toda reverência. “Ela (a Igreja) permanece junto ao sepulcro do Senhor, meditando a sua paixão e morte, a sua descida aos infernos, e esperando na oração e no jejum a sua ressurreição” (Paschalis solemnitatis [PS], 73).
Neste dia, nosso cantar é solene, pois reverenciamos o silêncio. No Sábado Santo, nada se celebra, a não ser o Ofício Divino, valorizando nele o silêncio e a sobriedade, retomando textos, cânticos e hinos que contribuem para a reverência do ambiente espiritual com a qual deu origem a esta memória.
É dia de cantar a lembrança do Salmo 15(16), o mesmo que será entoado na Vigília da Ressurreição desta noite, que exprime na oração o abandono confiante em Deus, em cujas mãos é colocada a vida. A referência a Cristo sepultado e ressuscitado está evidente no versículo: “E minha carne repousa em segurança, porque não me abandonarás no túmulo, nem deixarás o teu fiel ver a sepultura”.
No cantar deste Salmo, a experiência de alguém que confia plenamente no Senhor, renunciando até a não obedecer a outros deuses; em meio a alegria, sente-se seguro, pois sabe que em Deus tem a garantia plena de que ele nem na morte o abandonará.
É dia de cantar uma pedagogia espiritual que expressa a Igreja, pois este dia sugere a meditação memorial da sepultura do Senhor que é feita através dos sinais sensíveis: “a celebração do Ofício Divino, recomendado com insistência, ou de uma celebração da palavra ou outro ato de devoção” (PS, 73); “a exposição da imagem de Cristo na cruz ou deposto no sepulcro, ou a imagem da sua descida aos infernos, que ilustra o mistério do Sábado Santo, bem como a imagem da Virgem das Dores” (PS, 74). Recomenda-se ainda que os fiéis sejam instruídos sobre a natureza particular deste dia (PS, 76). O aprofundamento da “Antiga Homilia do Sábado Santo”, do século IV, cuja autoria é desconhecida, pode ser uma ótima recomendação para a aplicação desta norma.
Nesta noite, cantamos o esplendor de uma luz que jamais se apagará. Proclamamos as maravilhas de Deus que nos libertou das trevas e da morte e nos devolveu à vida. Revigoramos nosso compromisso batismal. E, enquanto nos alimentamos da ceia eucarística, cantamos um canto em honra do Senhor, reverenciando-o como aquele que passou da morte para a vida. Ele é a morte da morte na morte.
É nesta noite, mãe de todas as vigílias, que a Igreja toda permanece à espera da ressurreição do Senhor, acolhendo novos cristãos e fazendo memória de seu papel de povo de batizados com os sinais sacramentais próprios desta celebração: fogo, água, pão e vinho, tomados da natureza, nos recordam a atuação de Deus no plano da história da humanidade, que quer salvá-la, ‘pas-calizando-a’ por meio de Cristo Jesus.
Como povo de batizados, cantamos o “Banhados em Cristo, somos uma nova criatura”, fazendo memória de nosso batismo, com o qual passamos a pé enxuto os mares das forças do mal, mas que chegamos com o Cristo à terra prometida. Como novo Moisés, o Cristo, o melhor e verdadeiro salvador, agora é nosso condutor na marcha para a terra futura, pois “nosso peregrinar pela face do mundo terá seu final lá na casa do Pai”.
O tempo pascal que se inicia da tarde do Domingo da Ressurreição é um tempo forte e especial para a Igreja. Recheado de significados especiais serão lembrados nos domingos que se seguem as várias manifestações do Ressuscitado aos discípulos e à Igreja reunida (aquele que transmite o dom da paz, o reconhecido que reparte o pão, a videira perfeita, o que opera o amor com o qual nos mantém unidos a ele, o pastor que guarda o seu rebanho, o caminho, a verdade e a vida e o que promete o Paráclito consolador) até atingir seu ponto culminante com a Ascensão e o Pentecostes, ocasião em que o Espírito é derramado sobre os que se encontram no cenáculo, evento que desencadeia todo o processo de expansão do mandato do Senhor: “Levai a todos os povos o anúncio da salvação!”
O canto litúrgico do tempo pascal retoma de domingo a domingo o significado sacramental das liturgias que permite a assembleia celebrante entender com maior clareza os mistérios da nossa fé com conhecimento de causa. Seguramente este canto pascal sublinha a especificada fonte e origem de nossa fé, o próprio Mistério Pascal.
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Cantar a Semana Santa. Artigo de Euri Ferreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU