04 Março 2024
"Lendo os evangelhos não causa surpresa que Jesus tenha sido morto, mas sim que tenha conseguido sobreviver tanto tempo", escreve Alberto Maggi, padre, teólogo, biblista, frei da Ordem dos Servos de Maria, em artigo publicado por ilLibraio.it, 28-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Lendo os evangelhos não causa surpresa que Jesus tenha sido morto, mas sim que tenha conseguido sobreviver tanto tempo. Alguém assim era um perigo público e tinha que ser eliminado imediatamente, era uma mina errante que cada vez que abria a boca destruía tudo o que de santo, justo e honrado, a instituição religiosa tinha conseguido criar para seu próprio interesse e para a honra de Deus. A casta sacerdotal no poder tinha de fato criado uma arquitetura perfeita, destinada a durar para sempre. Mas, como aconteceu com a enorme estátua com os pés de barro, Jesus revelou-se como a pedra que, ao se soltar do monte, a fez desabar, destruindo-a completamente (Dn 2,31-35).
A instituição religiosa, para obter a obediência do povo e impor leis por ela emanadas, mas repassadas como divinas, não podendo recorrer à arma da persuasão, recorreu à ainda mais eficaz do terror, inculcando o medo do castigo divino, como lemos num dos episódios mais desconcertantes da Bíblia.
No Livro dos Números conta-se que “enquanto os Israelitas estavam no deserto, encontraram um homem que recolhia lenha no dia de sábado”. O que é natural para a maioria, não é natural para a instituição religiosa. Por que se recolhe lenha? Para fazer fogo, cozinhar, aquecer, todas atividades lícitas, mas "aqueles que o encontraram recolhendo lenha levaram-no a Moisés, a Arão e a toda a comunidade, que o prenderam, porque não sabiam o que deveria ser feito com ele”. Que crime ele cometeu? Não se fala que ele teria roubado ou exercido alguma violência, mas que simplesmente recolheu lenha, tendo, no entanto, feito isso num dia em que isso é estritamente proibido, ou seja, no sábado. Em todos os dias da semana pode se recolher lenha, e quanto quiser, mas não aos sábados, nem um graveto. Moisés e seu irmão, indecisos sobre o que fazer com esse transgressor, consultam diretamente o próprio Senhor, que sentenciou: “O homem terá que ser executado. Toda a comunidade o apedrejará fora do acampamento”. Mas é possível condenar um homem à morte por recolher lenha? Ninguém objetou que a punição era desproporcional e desumana; pelo contrário, toda a comunidade, obedientemente, “o levou para fora do acampamento e o apedrejou até a morte, conforme o Senhor tinha ordenado a Moisés” (Nm 15,32-36).
Para evitar incertezas futuras quanto à exata observância do mandamento, Moisés estabeleceu no Decálogo regras muito específicas sobre o sábado. A Bíblia relata duas formulações diferentes, contidas em Livro do Êxodo (Ex 20,8-11) e no Deuteronômio (Dt 5,12-15), onde é listado detalhadamente quem não terá que fazer nenhum trabalho (“nem você, nem seu filho, nem sua filha, nem seu servo, nem a tua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem animal algum seu, nem o estrangeiro, que está dentro de suas portas”). Destaca-se a ausência da esposa... alguém tinha que trabalhar.
O cumprimento desse único mandamento, que também o Senhor com toda a corte celestial observava nos céus, equivalia à obediência a toda a Lei, razão pela qual a sua transgressão era punida com a morte por apedrejamento. Isso era tão indiscutível que mesmo um profeta do calibre de Jeremias advertia: “Guardai as vossas almas, e não tragais cargas no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém; nem tireis cargas de vossas casas no dia de sábado”. (Jer 17,21-22). Para maior certeza, está esclarecido no Talmud o que se entende por “peso”: “Um alfaiate não deve sair com a agulha grudada em sua roupa na sexta-feira quando está quase escuro, igualmente o escrivão com seu tinteiro” (Shab. M. 13).
No tempo de Jesus, escribas e fariseus, para ter certeza de observar escrupulosamente o mandamento divino, elaboraram a lista das atividades proibidas, que foram calculadas para um total de mil quinhentas e vinte e uma ações proibidas no dia de sábado, número retirado dos trinta e nove trabalhos que foram necessários para a construção do templo de Jerusalém, cada um das quais era por sua vez dividido em trinta e nove trabalhos secundários.
E Jesus?
Ele proclamou que “o vinho novo deve ser colocado em odres novos” (Lc 5,9). A nova relação que Jesus propõe com o Pai não pode valer-se das velhas práticas da religião, que não só são ineficazes e incapazes de conter essa novidade, mas também são obstáculo para ela: “E ninguém põe vinho novo em vasilha de couro velha; se o fizer, o vinho novo rebentará a vasilha, se derramará, e a vasilha se estragará” (Lucas 5,37).
O embate com a Lei era inevitável: no evangelho de Lucas, Jesus transgrede voluntariamente e publicamente esse mandamento quatro vezes. Três delas são transgressões para o bem das pessoas: o homem da mão atrofiada (Lc 6,6-11), a mulher curvada (Lc 13,10-17) e o homem hidrópico (Lc 14,1-5). Quando, em situações como essas, Jesus via-se confrontado com a escolha entre a observância da Lei divina e o bem do homem, ele nunca hesitou, porque ao escolher o bem do homem estava certo de estar fazendo o bem de Deus. Muitas vezes, porém, as pessoas foram e são obrigadas a sofrer por respeito à Lei Divina. Mas na primeira transgressão, a mais grave, não está em jogo nem a vida nem a saúde dos homens. O que pode então levar Jesus a violar publicamente o mandamento?
Num dia em que não era permitido andar pelas ruas, exceto “o caminho permitido em um sábado" (At 1,12), ou seja, apenas um quilômetro, e só se podia sair de casa para ir à sinagoga, Jesus vai para o campo com seus discípulos. Nenhum motivo urgente, nenhum doente para curar. A essa primeira transgressão os discípulos acrescentam outras, de fato “colheram e comeram espigas esfregando-as com as mãos”. Não é explicado por que os discípulos colhem as espigas, não se afirma que as comem porque estão com fome, mas simplesmente porque querem, por prazer, porque são livres. E eis que do nada aparecem os fariseus, os guardiões zelosos da Lei, que acusam os discípulos de fazerem o que não é permitido no dia de sábado.
Na verdade, na atitude de Jesus e dos seus discípulos os fariseus identificam pelo menos três infrações ao mandamento: além de caminhar, também colher espigas e esfregá-las, gestos que equivalem à colheita e à debulha, trabalhos explicitamente proibidos na lista das trinta e nove proibições. Não só isso: a essas se acrescenta a transgressão do comando do Livro de Levítico, que proíbe comer trigo antes da colheita: “Vocês não poderão comer pão algum, nem grãos torrados, nem cereal novo, até o dia em que trouxerem essa oferta ao Deus de vocês” (Lv 23,14).
Jesus, em vez de repreender os discípulos pelas suas transgressões, responde aos fariseus que eles, apesar de ficarem o dia todo com o nariz colado nas Sagradas Escrituras, realmente não entendem o que leem, porque para compreender o significado da Palavra de Deus é preciso ter uma atitude benevolente para com os homens, caso contrário o texto permanece obscuro. E Jesus recorda-lhes um famoso episódio contido no Primeiro Livro de Samuel (I Sam 21,1-7), que narra a história de Davi e de seus seguidores fugindo do rei Saul e como ele “entrou na casa de Deus e tomou os ‘pães da proposição’ – ele os pegou, comeu e deu aos que estavam com ele – que não é permitido comer, exceto apenas pelos sacerdotes?”. Para Jesus, a necessidade e o bem do homem vêm antes da honra dada a Deus, e ele afirma que “o Filho do homem é senhor do sábado”.
A característica de quem é senhor é agir por decisão própria, não regido por nenhuma norma externa, e é isso que toda instituição mais teme. Mas embora Davi possa ser justificado porque agiu por fome, os discípulos de Jesus não, violaram a Lei simplesmente para seu próprio prazer. Essa anarquia espiritual é inadmissível. Mais uma vez chocados e enfurecidos, os fariseus saem frustrados, mas não desistem. O encontro é marcado para o sábado seguinte e dessa vez também estarão com eles os escribas, aqueles que podem julgar e condenar Jesus, a quem já definiram como blasfemador (Lc 5,21), merecedor, portanto, da pena de morte.
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A anarquia espiritual de Jesus, condenado por suas “transgressões”. Artigo de Alberto Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU