02 Março 2024
"Tem sido assim por décadas e, até certo ponto, ainda é hoje. Mas também há as tragédias, os homens e os mulheres que morrem debaixo de uma viga de concreto ou em decorrência a um incêndio; aqueles que morrem extenuados pelo cansaço numa estufa ou acabam debaixo de um caminhão enquanto entregam uma pizza. O trabalho que emancipa e aquele que mata, o trabalho que dá esperança é aquele que aliena num call center ou atrás de um monitor colocado em um armazém anônimo", escreve Paolo Naso, sociólogo italiano da Comissão de Estudos da Federação das Igrejas Evangélicas na Itália e professor da Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado por Riforma – revista das igrejas Evangélica Batista Metodista e Valdense, 12-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Chamavam-se Luigi, Taufik, Mohamed, Muhamad, Buzekhri os cinco trabalhadores que morreram em Florença, em um dos acidentes de trabalho mais graves dos últimos meses. Um deles era italiano os outros magrebinos provenientes da Tunísia e do Marrocos. Trabalhavam na Toscana, mas viviam na Lombardia, em Palazzolo sull'Oglio, na província de Bréscia. O mais jovem tinha 24 anos, o mais velho 56. Todas as sextas-feiras voltaram para casa para partir novamente no domingo à noite.
Até o momento não sabemos ao certo se os imigrantes fossem todos legais e, honestamente, isso pouco importa. O que importa é que havia necessidade do trabalho deles e alguém os contratou. E o mesmo paradoxo de sempre: a Itália precisa de mão de obra, mas não quer os imigrantes, procura mão de obra, mas barra as pessoas.
Hoje é o momento do pesar e da denúncia. Vai durar mais alguns dias e depois tudo voltará a ser como antes. Porém, o trabalho voltou ao centro do debate. E isso é uma coisa boa. Foi preciso o massacre de cinco trabalhadores para que as instituições, as forças políticas e os cidadãos comuns reconhecessem aquilo que a Constituição italiana afirma há mais de sessenta anos: o trabalho é o centro da vida de cada comunidade democrática. Os indivíduos trabalham para viver com dignidade e progredir socialmente. Mas também se trabalha para o crescimento social, econômico e cultural do país.
O trabalho, em suma, é uma alavanca para afirmar a dignidade das pessoas e, ao mesmo tempo, construir o bem comum.
Esse era o sonho daqueles que imaginaram e escreveram a Constituição, e ainda hoje é a visão de milhões de trabalhadores que todos os dias entram numa fábrica, numa escola, num estudo técnico ou num campo agrícola. Que embarcam em um navio ou abrem uma loja. É uma visão, um projeto social e cultural: um trabalho que devolve a dignidade e produz rendas, que não polui e aumenta a qualidade de vida individual e coletiva.
Tem sido assim por décadas e, até certo ponto, ainda é hoje. Mas também há as tragédias, os homens e os mulheres que morrem debaixo de uma viga de concreto ou em decorrência a um incêndio; aqueles que morrem extenuados pelo cansaço numa estufa ou acabam debaixo de um caminhão enquanto entregam uma pizza. O trabalho que emancipa e aquele que mata, o trabalho que dá esperança é aquele que aliena num call center ou atrás de um monitor colocado em um armazém anônimo.
Mas, enquanto obrigatoriamente se discute de trabalho e segurança nos canteiros de obras, tende-se a desconsiderar o fato de quatro dos cinco trabalhadores que morreram em Florença fossem imigrantes. Claro, a tragédia de Novoli não faz distinção da cor da pele, nem da nacionalidade do passaporte, da língua ou da religião. Aqueles que morreram no trabalho morreram e ponto. Certo, mas então por que, enquanto vivos, os migrantes são “os ilegais” ou “irregulares”? Porque, quando estão vivos, a Itália tem dificuldade para reconhecer a importância do seu trabalho e contribuição para o desenvolvimento da sociedade italiana, da economia nacional e do bem comum?
O sistema de produção italiano enfrenta enormes desafios: a deslocalização que transfere os lugares de trabalho onde a mão de obra é mais barata; a inteligência artificial que substitui a força trabalho humano; a escolha dramática entre o trabalho que polui e a falta de trabalho que gera fome.
Mas a esses acrescentam-se pelo menos outros dois, e são prioritários: o direito à segurança e à integração dos trabalhadores migrantes, ao reconhecimento dos seus direitos, até à cidadania.
O direito à segurança. Durante o ano passado, houve mais de mil vítimas de trabalho, 3 mortes por dia: um massacre silencioso, acompanhado por algumas ondas de sentimento e compaixão, mas que, no fundo, não muda a situação e expõe outros trabalhadores e trabalhadoras a riscos mortais. Por que os controles são tão falhos? Por que um trabalho pode ser subcontratado por empresas desconhecidas ou não confiáveis?
E, além disso, há a questão da integração e do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores migrantes: dos mais de mil mortos no local de trabalho em 2023, 20% eram migrantes. Sem esquecer que a taxa de mortalidade no trabalho para os migrantes é o dobro daquela dos italianos. Eles arriscam mais, morrem mais. No entanto, desfrutam de menos direitos, muitas vezes obrigados a viver numa zona cinzenta de irregularidade e precariedade determinada por leis que não reconhecem o seu direito à permanência legal e segura na Itália nem, muito menos, à cidadania.
Na tradição protestante, o trabalho sempre foi um valor, o instrumento através do qual todo homem e toda mulher respondiam ao chamado de Deus melhorando a sua própria condição e aquela da comunidade ao seu redor. Resultava disso uma ética de trabalho feita de responsabilidade, empenho, risco pessoal. Hoje os desafios podem até ser outros mas, mesmo para o mundo protestante, a ética do trabalho é construída em torno dos princípios da dignidade de quem trabalha – italianos ou imigrantes – da segurança, da sustentabilidade das produções, da proteção do ambiente. Se há uma lição que podemos tirar da tragédia de Florença, é essa.
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Repensando a ética do trabalho. Artigo de Paolo Naso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU