16 Fevereiro 2024
"Enquanto a Europa, a pedido da Itália, tenta acordos com aquele regime para conter os migrantes e impedi-los de partir, os bandos criminosos e muitas vezes o próprio aparato militar infligem aos migrantes gravíssimas violações dos direitos humanos", escreve padre Mattia Ferrari, assistente espiritual da ONG Mediterrânea Saving Humans, publicado por La Stampa, 14-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
“Não nos acostumemos a considerar os naufrágios como notícias e as mortes no mar como números: não, são nomes e sobrenomes, são rostos e histórias, são vidas quebradas e sonhos desfeitos”: esse é o apelo lançado pelo Papa Francisco no encontro do Mediterrâneo em Marselha, em setembro passado. O último naufrágio ocorreu na quinta-feira passada, na rota entre a Tunísia e a Itália. O número de mortos ou desaparecidos ultrapassa 40 vítimas. Graças a organizações como a Refugees in Libya, que desempenha um excelente trabalho de proximidade e apoio aos seus familiares e amigos, e a redes que a apoiam, as histórias e os rostos daquelas vítimas são descobertos e contados. Entre essas histórias, está a de Mahmoud Muhammad Haroun Adam.
Mahmoud nasceu em 1999 em Nyala, no sul de Darfur. Em Darfur há mais de 20 anos trava-se uma guerra sangrenta, pontuada por tratados de paz que infelizmente não resistiram diante da violência. Mahmoud cresce em uma família numerosa, tem 11 irmãs e 7 irmãos. Cresce com o desejo de contribuir para a paz e passa a colaborar com iniciativas que a promovam. Ele se inscreve na Universidade Al-Zaim Al-Azhari de Cartum para estudar Administração e Economia. O pai dele trabalha na agricultura, mas a catástrofe ambiental e as mudanças climáticas produzidas pelo atual sistema socioeconômico global tornam os trabalhos agrícolas cada vez mais difíceis, especialmente naquelas áreas: a desertificação avança por toda aquela grande faixa de terra africana conhecida como Sahel.
A família de Mahmoud começa assim a enfrentar dificuldades financeiras. Além do que, cerca de dez meses atrás, em meados de abril de 2023, confrontos violentos se reacenderam no país. O conflito em Darfur é também parcialmente ligado à catástrofe climática: em 2017, o ex-secretário-geral da ONU Ban Ki-moon havia descrito a guerra em Darfur como “uma crise ecológica, derivante pelo menos em parte das mudanças climáticas”. Os confrontos atingem tal escala que a Universidade é fechada e as agências humanitárias da ONU são forçadas a retirar-se.
Mahmoud, que quer sustentar a família e trabalhar pela paz, entende que não tem outra escolha que deixar o Sudão. Assim começou sua jornada migratória. No último dia 15 de agosto Mahmoud chega à Líbia, outra terra devastada pela guerra e pelo domínio das milícias. Uma terra onde A Itália e a Europa continuam, de 2017 até hoje, a financiar aquelas milícias para que barrem os migrantes em seu nome, que são assim capturados no mar e deportados para os campos de concentração onde ocorrem aqueles que a ONU chama de “horrores inimagináveis”. Mahmoud entende que também não há esperança na Líbia para ele, então tente a rota da Tunísia. Durante a viagem, em 2 de setembro é capturado pelo Stability Support Apparatus, uma força militar líbica, que o mantém prisioneiro no centro de detenção de Al-Assah durante uma semana, até que seja pago um resgate.
No dia 10 de setembro, Mahmoud finalmente consegue chegar à Tunísia e pede asilo. No entanto, a Tunísia também está se tornando cada vez mais num local de grave privação de direitos humanos para os migrantes.
Enquanto a Europa, a pedido da Itália, tenta acordos com aquele regime para conter os migrantes e impedi-los de partir, os bandos criminosos e muitas vezes o próprio aparato militar infligem aos migrantes gravíssimas violações dos direitos humanos. Mahmoud, como tantos outros, também tem de enfrentar as ameaças de criminosos e de forças governamentais, como a Garde Nationale, que efetuam uma enorme deportação de migrantes para a Líbia e a Argélia. Mahmoud então decide tentar a última possibilidade que lhe restava: a rota marítima. Sabe que é perigoso, mas não tem outra escolha: em 6 de fevereiro passado, com outras 42 pessoas, parte da Tunísia rumo à Itália e à Europa, a bordo de um barco de ferro. Pouco depois, o barco vira: Mahmoud e outras 39 pessoas são sugados pelo mar, mortas pela injustiça e pela indiferença.
Mahmoud, que queria passar a vida construindo a paz, deixou uma última marca. No último dia 30 de janeiro ele escreveu uma frase em seu perfil no Facebook que parece um aviso para todos nós: “Como podemos construir a paz se não a compreendemos?” Ele deixa para todos nós essa espécie de testamento.
Mahmoud é mais uma vítima no altar do cinismo e da indiferença. Até que reconheçamos as nossas responsabilidades nas crises que o obrigaram a migrar, e o impediram de o fazer de uma maneira segura, não compreenderemos o caminho para a paz. Quantas outras vítimas como ele deve haver para os nossos corações, endurecidos pelo egoísmo, se abram e os nossos corpos, paralisados pela indiferença, ajam?
O paradoxo é que nós, ao não socorrer e acolher essas pessoas, estamos rejeitando a tábua de salvação que a história está nos lançando. A disseminação do individualismo capitalista, que leva a procurar apenas o próprio lucro, à custa da exploração dos seres humanos e da terra, à exclusão dos outros e a favorecer formas de discriminação e de autoritarismo, conduziu-nos àquela que é chamada “a época das paixões tristes”, onde até a saúde mental das pessoas está cada vez mais comprometida. Estamos diante de uma terceira guerra mundial em pedaços, com massacres e outros horrores, e nós não conseguimos mais construir a paz, mal conseguimos falar dela. Mahmoud tem razão: “Como podemos construir a paz se não a compreendemos?”. As pessoas que chegam, movidas por esse anseio de paz, são precisamente aquelas que nos podem salvar. Isso é demonstrado pelas muitas realidades que praticam acolhimento e fraternidade: experimentam uma beleza que mostra que a paz não é uma utopia, mas só pode ser alcançada dando corpo à fraternidade e à sororidade. Elas sabem que o amor visceral, que dá carne aos corpos e às relações de fraternidade, é o único caminho para a paz. Elas sabem que, como cantou Ghali em Sanremo, esse mundo é a casa de todos: segue-se que só se formos capazes de dar corpo à fraternidade e à sororidade universais, essa casa se salvará.
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O testamento de Mahmoud. Artigo de Mattia Ferrari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU