Rumo aos “Encontros Mediterrâneos” em Marselha. Entrevista com o cardeal Jean-Marc Aveline

Foto: Igrejha Católica Francesa

22 Setembro 2023

Junto com o cardeal Jean-Marc Aveline, respiramos profundamente o ar do “Mare Nostrum”, onde se misturam os aromas do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste. Ainda quando era responsável pela educação em sua diocese de Marselha, na França, a teologia era para ele um instrumento de diálogo com as diversas experiências humanas e religiosas, das quais a “cité phocéenne” é um concentrado cosmopolita.

Natural do sul do MediterrâneoSidi-Bel-Abbès, na então Argélia francesa –, foi ordenado sacerdote em Marselha. É teólogo – fundador do Institut de Science et de Théologie des Religions, parte do Institut Catholique de la Méditerranée – e arcebispo desde 2019, tendo sido criado cardeal em 2022.

Por meio de seus compromissos e de seu pensamento, ele encarna a “Teologia do Mediterrâneo”, delineada pelo Papa Francisco. Com a profunda simplicidade de um pastor e o calor de um filho do Sul europeu, ele responde a algumas perguntas.

A entrevista foi concedida a Antonio Spadaro e publicada por La Civiltà Cattolica, caderno 4.157, 02-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

O senhor convidou o Papa Francisco a ir a Marselha no dia 23 de setembro para concluir os “Encontros Mediterrâneos” (18 a 24 de setembro de 2023). Eles chegaram à sua terceira edição. Do que se trata?

Trata-se de um processo de comunhão entre os bispos das dioceses que se assomam ao Mediterrâneo. Esse processo, iniciado pela Conferência Episcopal Italiana, permitiu que cerca de 40 bispos se encontrassem em Bari em fevereiro de 2020 e depois novamente em Florença em fevereiro de 2022. Mas, de forma mais ampla, esse processo está alinhado com o espírito das viagens mediterrâneas do Papa Francisco, que o levaram de Lampedusa (2013) a Marselha (2023), passando por Tirana, Sarajevo, Lesbos, Cairo, Jerusalém, Chipre, Rabat, Nápoles, Malta...

O pontífice está empenhado em fazer desse mar uma mensagem de esperança para todos. Em Bari, o papa disse algo sobre o qual devemos continuar refletindo: “O Mediterrâneo tem uma vocação peculiar neste sentido: é o mar da mestiçagem, ‘culturalmente sempre aberto ao encontro, ao diálogo e à recíproca inculturação’”.

Os encontros já realizados, assim como o que se realizará em Marselha, têm o mesmo objetivo: permitir que os bispos do Mediterrâneo se reúnam para progredir juntos, meditando sobre a palavra de Deus, escutando-se mutuamente sobre os desafios que suas Igrejas devem enfrentar, mas também sobre os recursos aos quais podem recorrer, na tentativa de discernir o que o Espírito os chama a fazer no serviço dos povos confiados ao seu ministério.

Quais serão as características originais do encontro de Marselha?

Acima de tudo, enquanto em Florença foram convidados os prefeitos de cerca de 60 cidades do Mediterrâneo para prestar homenagem a Giorgio La Pira, em Marselha optamos por convidar estudantes e jovens profissionais de todo o Mediterrâneo, de todas as nacionalidades e religiões, que aceitaram trabalhar juntos e com os bispos. Acolheremos jovens israelenses e palestinos, jovens gregos e turcos, jovens argelinos e marroquinos, e assim por diante. Haverá também alguns jovens migrantes que participarão do nosso trabalho. Esses 70 jovens ficarão em Marselha durante uma semana inteira, de domingo, 17, a domingo, 24 de setembro, com um programa educativo adaptado, e a partir de quarta-feira à noite acolherão os bispos – cerca de 70 –, vindos também eles de quase todos os países do Mediterrâneo.

Chegarão jovens e bispos de todas as margens do Mediterrâneo?

Sim, essa é outra característica original. Virão das cinco margens do Mediterrâneo: Norte da África, Oriente Próximo, Mar Egeu e Mar Negro, Península Balcânica e Europa meridional. Adotaremos um método sinodal: meditar a palavra de Deus, escutar-nos, discernir juntos e desenvolver linhas de ação, em particular recolhendo as reflexões dos estudantes e dos jovens profissionais presentes conosco. Compartilharemos as nossas “boas práticas”, procuraremos também nos dotar dos meios para um processo de reflexão e ação para os próximos anos.

Por fim, a terceira característica original dos Rencontres Méditerranéennes de Marseille é que serão acompanhados por um festival para levar o evento a um público mais amplo, com uma vasta gama de concertos, espetáculos teatrais, encontros inter-religiosos, debates, vigílias de oração, incluindo um Shabat aberto a todos na sinagoga principal de Marselha, além de um grande banquete de solidariedade na catedral para as pessoas em situação precária e os migrantes, e assim por diante.

Como a presença do papa se inserirá no programa?

No dia 23 de setembro, o Papa Francisco concluirá a assembleia dos bispos e o encontro dos jovens com uma sessão de trabalho no Palais du Pharo. Antes disso, ele irá à basílica de Notre-Dame-de-la-Garde para confiar todo o processo à intercessão de Nossa Senhora. Também participará de um momento de meditação em frente a uma estela dedicada aos marinheiros e aos migrantes desaparecidos no mar, na presença de representantes de outras confissões e religiões. Na tarde de sábado, celebrará uma missa aberta a todos no estádio Orange Vélodrome. No domingo seguinte, no Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, presidirá a missa de encerramento na catedral.

O senhor disse que estão procedendo de modo sinodal. Em que sentido?

Realmente quero que o povo de Deus esteja envolvido nesse evento. Acima de tudo por meio da oração: no dia 8 de setembro, lançarei uma novena de oração que se concluirá pouco antes da abertura das assembleias. Essa novena, com o apoio, entre outros, do aplicativo Hozana, permitirá que muitas pessoas participem do evento por meio da oração. Tentaremos deixar que o Espírito Santo revista os nossos corações para que estejam a serviço daquilo que Deus quer dar à sua Igreja e ao mundo, por meio daquilo que poderemos experimentar durante essa semana.

Depois, na quinta-feira à noite, organizamos cerca de 20 encontros entre as paróquias da diocese e os participantes do Mediterrâneo, jovens e bispos, para que todos possam se sentir concretamente interessados naquilo que as pessoas e as Igrejas do Mediterrâneo estão vivendo, às vezes de um modo muito doloroso. Porque a sinodalidade se aprende acima de tudo com os encontros, e não com ideias!

Por fim, a celebração da missa com o Papa Francisco no estádio Orange Vélodrome será, sem dúvida, um grande momento de meditação e de alegria, de comunhão e de paz. Quase 2.000 voluntários já estão trabalhando para garantir que tudo corra da melhor forma possível.

O método de vocês se depara com problemas e desafios locais, mas que têm um impacto universal, como no caso da Amazônia?

Exatamente. Três continentes se encontram no Mediterrâneo. Estas margens são o berço das três grandes religiões monoteístas e, ao longo da história, foram testemunhas de numerosos intercâmbios, mas também de conflitos graves e recorrentes. Hoje, os países do Mediterrâneo enfrentam problemas sócio-político-religiosos cuja sombra se estende para muito além da área geográfica do Mediterrâneo.

Penso no conflito israelense-palestino, nos confrontos entre sunitas e xiitas, nas tensões entre a Armênia e a Turquia ou entre o Marrocos e a Argélia. Também devemos mencionar a dramática situação dos migrantes, as dificuldades econômicas e sociais com que se deparam as populações de muitos dos países que se assomam ao Mediterrâneo, as ameaças postas a toda a região pelas atuais mudanças climáticas, com todos os problemas ambientais que isso acarreta, em particular o acesso à água e o enfraquecimento das relações entre crentes de religiões diferentes etc.

Todas essas situações são vividas no Mediterrâneo, mas dizem respeito a toda a humanidade.

Quais são as preocupações comuns dos países ao redor do Mediterrâneo para as quais os cristãos podem contribuir e ser um fermento a serviço de uma fraternidade que se torna solidária com os mais vulneráveis?

As preocupações são as que acabamos de falar, embora talvez outras serão acrescentadas ao longo da semana. Quanto à contribuição dos cristãos, parece-me que deve ser sobretudo de esperança. Embora tenhamos consciência dos períodos dolorosos, das feridas entre os povos e as religiões que marcaram a história e ainda o presente da região mediterrânica, não queremos que sejam o único prisma através do qual se possa ler o passado e enfrentar o futuro: o Mediterrâneo, para muitos versos, é ainda hoje um lugar de intercâmbio, de diálogo e de encontro.

Essa região, de fato, está imbuída de um imenso patrimônio antropológico e filosófico, de uma sabedoria e de uma compreensão do ser humano que derivam das grandes civilizações e tradições espirituais que nasceram e se desenvolveram em suas margens. Há uma memória feliz da convivialidade mediterrânea, a memória de uma convivência pacífica e frutuosa. Muitos gostariam de apagar essa memória feliz e substituí-la pelo medo, para impor melhor seu domínio e sua ideologia. Mas somos testemunhas do fato de que, embora as ameaças sejam reais, o bem também está em ação, por meio de um mosaico de pessoas e de ações.

Qual pode ser a contribuição dos cristãos diante do medo?

Diante da tentação do medo, a contribuição dos cristãos consiste sobretudo em testemunhar a esperança que recebem de sua fé em Jesus Cristo. Uma esperança que não é ingênua, mas concreta e atenta. Uma esperança que não é evasão, mas presença e muitas vezes resistência. Uma esperança que não é utópica, porque traz consigo fé e caridade.

Segundo o autor da Carta aos Hebreus, a esperança é como uma âncora marítima (cf. Hb 6,19) que a fé na ressurreição de Cristo nos convida a lançar no além do tempo, para que, firmemente ligados a ela nestes últimos dias, possamos testemunhar o amor com que Deus ama o mundo e acolher a audácia e a liberdade que derivam desse amor.

De modo geral, a esperança é o que eu construo hoje ao me projetar para um futuro melhor; a esperança, teologicamente, é outra coisa: é aprender a olhar para o meu presente a partir do fim e adaptar as minhas ações para corrigir o que precisa ser corrigido. Esta é, portanto, a missão do cristão: ir ao mundo “como se visse o invisível” (Hb 11,27) e atrair a si, com a oração e o testemunho de sua esperança, todos aqueles que o Senhor lhe dá como companheiros de viagem.

O senhor se encontrou com o sucessor de Pedro para preparar esta nova etapa de sua longa peregrinação mediterrânea. Como foi o intercâmbio entre o bispo de Roma e o bispo de Marselha?

Durante as conversas que tive com o Papa Francisco, pude explicar-lhe a originalidade de Marselha, suas riquezas e suas pobrezas, e discutir com ele os desafios pastorais que enfrentamos e a forma como, humildemente, estamos tentando avançar. Ele se deu conta de que Marselha se encontra em uma das periferias que lhe são tão caras, entre a Europa e o Mediterrâneo, porta do Oriente e porta do Ocidente, marcada por uma grande pobreza e por uma grande esperança.

Por sua vez, o ex-presidente da Conferência Episcopal Italiana, cardeal Gualtiero Bassetti, que iniciou os encontros em Bari e Florença, disse-me que queria que o processo continuasse fora da Itália. Assim, junto com seu sucessor, o cardeal Matteo Zuppi, pensámos em acolher esses encontros em Marselha, e o papa me garantiu seu apoio e sua disponibilidade.

Mas o pontífice não virá a Marselha para ser visto: ele vem para que, com ele, possamos olhar para o Mediterrâneo, seus desafios, seus recursos e a missão que cabe aos discípulos de Cristo nesta parte do mundo.

Em Nápoles (junho de 2019) e em Bari (fevereiro de 2020) o Papa Francisco propôs uma “Teologia do Mediterrâneo”. Como Marselha se enquadra nesse contexto?

No discurso de Nápoles a que você se refere, o papa levantou as perguntas que devem ser abordadas por uma teologia cristã desenvolvida nas margens do Mediterrâneo e adaptada ao contexto em que se desenvolve: “Como podemos cuidar uns dos outros dentro da única família humana? Como podemos cultivar uma convivência tolerante e pacífica que se traduza em autêntica fraternidade? Como podemos tornar prioritária nas nossas comunidades a acolhida aos outros e àqueles que são diferentes de nós por pertencerem a uma tradição religiosa e cultural diferente da nossa? Como as religiões podem ser caminhos de fraternidade em vez de muros de separação?”.

Essas perguntas, que também estão na base do documento sobre a fraternidade humana que o papa assinou junto com o grão-imã de Al-Azhar, dizem respeito também aos cristãos de uma cidade como Marselha. Todo o trabalho do Institut de Sciences et Théologie des Religions, que eu fundei em 1992 a pedido do cardeal Robert Coffy, é guiado por essas perguntas [1].

Essa teologia “no contexto mediterrâneo” é sobretudo uma teologia da acolhida, da escuta e da misericórdia. Distante da reflexão abstrata, ela abre espaço à piedade popular?

Em uma carta ao reitor da Pontifícia Universidade Católica da Argentina, o Papa Francisco, inspirando-se na parábola do Bom Samaritano, explicou que “até mesmo os bons teólogos, assim como os bons pastores, cheiram a povo e a estrada e, com sua reflexão, derrame óleo e vinho sobre as feridas dos homens”. Essa observação vale em particular a quem exerce o ministério dos teólogos nas margens do Mediterrâneo. O mar é comum a todos nós, mas as situações muitas vezes são muito diferentes.

Esse mar de cruzamentos é também um mar de grande violência, ainda mais perigoso porque as divisões identitárias são cada vez mais mortíferas. Por isso, o trabalho teológico no Mediterrâneo é também um trabalho forjado na compaixão, isto é, um trabalho que não se faz “no escritório”, mas na vida real, na proximidade concreta aos oprimidos, aos novos escravos do nosso tempo, às muitas vítimas da injustiça social.

A boa teologia cristã, como o papa muitas vezes nos recorda, deve ser feita “de joelhos”, não só para rezar, mas também para lavar os pés. O povo de Deus sabe disso instintivamente. Muitas vezes, observei que os jovens de hoje entenderam, como que por instinto, que é passando pela porta do serviço aos pobres que eles têm as melhores possibilidades de encontrar o caminho de sua vida e talvez para seguir a Cristo. Esse é o faro e a fé do povo, expressados na piedade popular.

Em Marselha, uma venerável e antiga tradição considera aqueles que o Evangelho indica como “amigos” de JesusSão Lázaro e Santa Maria Madalena – os fundadores da primeira comunidade cristã da nossa cidade. Ainda hoje, todas as manhãs do dia 2 de fevereiro, para a festa da Candelária, encenamos a chegada do Evangelho a Marselha pelo mar. E as pessoas sabem que essa tradição nos obriga a recordar que não só recebemos sempre o Evangelho dos outros, de outros lugares, mas também que, especialmente em Marselha, devemos testemunhar que a amizade, aquela que Jesus partilhou com seus anfitriões em Betânia, é o melhor veículo para anunciar o Evangelho, porque abre as portas ao diálogo e à compaixão.

Em agosto de 2012, o então cardeal Bergoglio intitulou um de seus discursos como “Jesus está na cidade”. Seu desejo de envolver os marselheses nesses encontros também é uma forma para testemunhar que “Deus está vivo na cidade, intimamente envolvido com todos e com tudo”, como ele escreveu então?

Essa convicção era compartilhada por homens e mulheres com ­intuições proféticas, como Madeleine Delbrêl, naturalmente, mas também Jacques Loew, um coirmão de Marselha que ela ia visitar em La Cabucelle. Karol Wojtyła, quando era estudante em Roma, também quis se encontrar com ele pela sua contribuição para a renovação da missão da Igreja na França. Mas gostaria de recordar sobretudo Jean Arnaud, que eu conheci quando era pároco de Belle-de-Mai e que me marcou muito [2].

Segundo esse sacerdote de Marselha, cada pastor é chamado a ser um “teólogo de bairro”, um “starez das encruzilhadas”, nas ruas e nas praças, desde que esteja disposto a colocar sua experiência pastoral na longa tradição teológica e espiritual. E Jean Arnaud ajudou muitos sacerdotes a relerem seu ministério à luz dos Padres da Igreja. Fundamentalmente, a pastoral é tudo aquilo que não tem outra finalidade senão trabalhar na vinha do Senhor, segundo a missão eclesial que recebemos, e no pequeno espaço onde é chamada a se desenvolver, em comunhão com todos os outros trabalhadores, até mesmo aqueles “que não são do mesmo redil”, ou os da “última hora”, porque “o Espírito manifesta-se particularmente na Igreja e nos seus membros, mas a sua presença e ação são universais, sem limites de espaço nem de tempo”, escreveu São João Paulo II na Redemptoris missio (n. 28).

A nossa missão como cristãos, não só no coração das cidades, mas por toda a parte, é colaborar com esse Espírito Santo, em vez de nos esgotarmos tentando respirar em seu lugar, como somos muitas vezes tentados a fazer. Por isso, no âmbito dos Encontros Mediterrâneos, quisemos reunir pessoas engajadas em outras confissões cristãs e em outras religiões, assim como no mundo das associações, da economia e da cultura, todos aqueles que se comprometem, cada um a seu modo, com o serviço da fraternidade e da paz em Marselha e no Mediterrâneo. A Igreja é a iniciadora desse evento, mas não pode considerar sua missão de forma isolada.

No centro desse diálogo iniciado pela Igreja, está a convicção de que o Espírito já está em ação em todos os países do Mediterrâneo?

Em todo o Mediterrâneo... e em outros lugares: cada mulher e cada homem é uma irmã, um irmão por quem Cristo morreu e no qual opera o Espírito desse mesmo Cristo. Cito novamente a Redemptoris missio: “A presença e ação do Espírito não atingem apenas os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões”. Por isso, a Igreja deve aprender a cooperar com o Espírito Santo. É ele o primeiro responsável pela missão. Isso não diminui em nada o mandato missionário que Cristo nos dá: o Espírito Santo precisa de uma Igreja de testemunhas.

Tendo tido que dar um apoio teológico ao compromisso da Igreja no diálogo inter-religioso, aprendi a apreciar a importância dessa Igreja de testemunhas. Porque se o diálogo, mal compreendido, fosse apenas um bloqueio para rejeitar o anúncio do Evangelho sob o pretexto de relativizar todas as religiões, deveríamos nos distanciar dele. Mas se a evangelização, mal compreendida, se tornasse o estandarte de uma vontade de conquista, para impor “valores cristãos”, ignorando a presença e a ação do Espírito, igualmente deveríamos nos distanciar dele! A evangelização não é um método de marketing! É um encontro na verdade, na profundidade da vida. Evangelizar é confiar o Evangelho a alguém, como se confia um tesouro, como se confia o próprio coração. Não se faz com slogans, mas por meio do longo aprendizado da amizade.

E a convicção de que a Igreja está a serviço do amor com que Deus ama o mundo?

“Deus amou tanto o mundo que deu seu próprio Filho”, lemos no Evangelho de João. Para mim, isso é decisivo, porque indica que a missão da Igreja é estar a serviço do amor com que Deus ama o mundo. O evangelista não diz: “Deus amou tanto a Igreja”, mas sim “o mundo”. Isso chama a Igreja a um incessante trabalho de descentralização, que é o lugar da sua conversão. Com efeito, se a Igreja está a serviço da relação entre Deus e o mundo, isso significa que seu centro de gravidade não está em si mesma nem na relação privilegiada que pode ter com Deus. Seu centro de gravidade está na relação de Deus com o mundo. E isso a coloca fora do centro. Por isso, ela é, como diz o Concílio, “o sacramento universal da salvação”: uma salvação que vai além – é apenas o sinal –, mas que também o exige – é o meio –, segundo a definição de sacramento: tanto um sinal quanto meio da graça de Deus.

Além disso, sempre que a Igreja, em sua história, foi egocêntrica demais, esteve preocupada demais com sua própria sobrevivência, preocupada demais com a persistência de suas estruturas, ela se esgotou e falhou em sua missão. Quando vejo sacerdotes ou leigos perseguindo as receitas daquilo que “funciona bem”, que olham para as curvas de crescimento de suas assembleias dominicais, como o Rei Davi olhou com orgulho para a glória de um censo, quando vejo comunidades religiosas fazendo de seu aparente sucesso numérico o critério de uma suposta fidelidade evangélica, aconselho-os a não se esquecerem desse trabalho de descentralização, essencial para a saúde da Igreja e para sua contínua obra de conversão. Uma pobreza oferecida é muito mais fecunda do que a prosperidade orgulhosa! Essa é a mensagem insuperável do Mistério Pascal.

“Vim trazer fogo à terra e como gostaria que estivesse aceso!” (Jo 12,49). “Caros irmãos cardeais, na luz e na força desse fogo caminha o Povo santo e fiel, do qual fomos tirados, daquele povo de Deus, e ao qual fomos enviados como ministros de Cristo Senhor. O que esse duplo fogo de Jesus, o fogo ardente  e o fogo manso, diz particularmente a mim e a vocês?” Como o senhor vive essa pergunta de vida feita pelo Papa Francisco no Consistório do dia 27 de agosto de 2022?

Essa homilia tocou-me profundamente, não só porque foi proferida em um momento importante da minha vida, mas também porque, em muitos aspectos, era semelhante ao modo como o Senhor, lentamente e sem nunca se cansar das minhas fraquezas e dos meus pecados, revestiu meu coração para esse grande dia da minha vida. O papa faz uma distinção entre o fogo poderoso, a chama luminosa que vem de Deus como uma violenta rajada de vento, purificando, regenerando e transfigurando todas as coisas, e o fogo das brasas que o próprio Jesus prepara, como uma fogueira, para criar para seus discípulos o ambiente familiar e íntimo de uma relação amigável.

Na minha vida, experimentei muitas vezes que precisamos desses dois fogos para viver no clima do Evangelho e transmiti-lo aos outros: os fogos de artifício, que atraem o olhar, como um “primeiro anúncio” visível e belo, que se expõe e convida: “Venham e vejam” (Jo 1,39); e o fogo que aquece os corações, acompanha os longos silêncios, recolhe as confidências e consolida a amizade: “O que quer que eu faça por você?” (Lucas 18,41). O que deve ser rejeitado, porque perturba a Igreja, é o fogo de palha, o fogo da sedução, que nunca produz o que parece prometer e, portanto, nada mais é do que orgulho e engano, fonte de tantos abusos!

Notei também, ao ler o Evangelho de João, que a palavra anthrakia, com a qual o evangelista designa o fogo das brasas que Jesus acende na margem do lago (cf. Jo 21,9), também é usada para designar o fogo com que Pedro se aquecia quando, por três vezes, negou a Cristo (cf. Jo 18,18). Como que para unir o pecador e o perdão no mesmo olhar de amor. Como se dissesse que não pode haver ardente zelo apostólico sem a recordação da cálida doçura do perdão de Deus. Ou, nas palavras de São João da Cruz, que não existe “chama viva” que não seja “de amor”!

Notas:

1. Esse trabalho está acessível graças à revista semestral Chemins de Dialogue, criada em junho de 1993 e que o cardeal Aveline dirigiu durante muitos anos. Agora, em seu 61º número, é um instrumento de referência reconhecido sobre todas as questões teológicas e pastorais relacionadas com o diálogo inter-religioso. Em 1996, o cardeal decidiu integrar a revista aos livros, fundando os Chemins de Dialogue. Publications (quase 40 livros publicados até hoje). Posteriormente, em 2018, além da revista e das publicações, nasceram os Cahiers de Chemins de Dialogue (quatro opúsculos por ano).

2. Ver J.-M. Aveline, Jean Arnaud, théologien de quartier à Marseille, Publications Chemins de Dialogue, 2013.

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