14 Agosto 2023
"Estou envolvido nos esforços de socorro no Mediterrâneo central desde 2015, mas nunca tinha visto nada parecido. Localizar um bote no meio do mar é difícil, mas encontrar três pessoas perdidas na água há horas é uma tarefa desesperadora".
O comentário é de Juan Matias Gil, chefe de operações da Médico Sem Fronteiras no Mediterrâneo central, em artigo publicado por Il Manifesto, 11-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Alguns dirão que foi um milagre, mas para nós foi mais a perseverança e a preparação da nossa tripulação. Além de um pouco de sorte.
Estou envolvido nos esforços de socorro no Mediterrâneo central desde 2015, mas nunca tinha visto nada parecido. Localizar um bote no meio do mar é difícil, mas encontrar três pessoas perdidas na água há horas é uma tarefa desesperadora.
Na segunda-feira, 7, sentimos uma grande alegria ao recuperar duas delas, pouco antes que morressem. Mas ficamos com a grande dor que une a nós e aos náufragos, de não termos conseguido fazer o mesmo com o terceiro: vamos chamá-lo de Ebrima.
Manhã do dia 7 de agosto. Estou na ponte de comando do Geo Barents, o navio da Médicos Sem Fronteiras. Como chefe de missão, passo muito tempo aqui, ao lado do capitão, perscrutando o mar e o monitor.
No canal 16 do VHF, o das emergências no sistema de radiocomunicação entre os navios, ouvimos falar de um “migrant boat” em perigo. A localização é de aproximadamente 45 milhas de nós. Quase 85 quilômetros. Entre quatro e cinco horas de navegação. Giramos a proa, embora não tendo informações precisas.
Enquanto isso, de Lampedusa decolou o avião SeaBird 2. A bordo, o piloto e três ativistas da ONG Sea Watch. Eles patrulham o mar de cima, procurando barcos em perigo. Veem muito longe, mas lá de cima não têm como intervir diretamente. No entanto, podem perceber como as pessoas estão, disparar o alarme, indicar as coordenadas exatas.
O SeaBird chega na posição que havíamos ouvido no rádio. Não encontra ninguém. Continua busca. Após de cerca de meia hora, lança o SOS no canal 16: “O barco está aqui, transportando cerca de 20 pessoas, três estão na água agarradas ao casco”. Um detalhe incomum, este último.
Estamos a 13 milhas do alvo. Imediatamente lançamos os Rhibs, os rápidos botes salva-vidas. Meu papel é observar a cena da ponte de comando, debater com o capitão os movimentos do navio, dar e receber instruções aos oito membros da equipe de busca e resgate nos dois veículos rápidos.
“Perguntem onde estão as pessoas na água”, digo pelo rádio. É uma barcaça de ferro, longa e estreita. Balança perigosamente. O motor está lá, mas parado. Contamos 47 náufragos. “Três estão desaparecidos, foram arrastados pelo mar há algumas horas”, comunicam do Rhib.
Transportamos todos para o Geo Barents o mais rápido possível, com dois transbordos. Os botes partem de novo imediatamente.
Cabe a nós na ponte projetar o esquema de busca. Significa estabelecer em que direção mover os Rhibs, qual percurso eles devem seguir. A vida ou a morte de uma pessoa pode depender dessa escolha.
A responsabilidade multiplica o estresse. É mais difícil do que achar uma agulha no palheiro: além das dimensões microscópicas de um corpo comparadas à imensidão do mar, nada fica parado aqui. Tudo flui. Atravessamos o vento e a corrente, estimamos há quantas horas estão desaparecidos, calculamos que um barco à deriva se move mais rapidamente do que uma pessoa que nada um pouco, flutua um pouco.
Levantamos hipóteses. Decidimos seguir para norte, seguindo um trajeto regular que nos permite ter visibilidade à direita e à esquerda.
Enquanto isso, chega uma chamada de rádio. Vem da Miskar, uma plataforma de petróleo que se encontra a cerca de 40 milhas a sudeste das ilhas tunisianas de Kerkennah. Havíamos perguntado se haviam sido eles que falaram naquela primeira comunicação sobre o barco em perigo ouvida pela manhã. Eles negaram, mas eu fiquei com a suspeita.
Agora são eles que nos dizem algo: “Há um homem no mar. Nós o estamos vendo. Não sabemos se está vivo ou morto”. Os Rhibs forçam seus motores ao máximo. Alcançam o homem. Está vivo. Sobe a bordo. Abraçam-no. Decidimos continuar a busca naquela área, presumindo que os outros dois possam estar por perto. Ou melhor: esperando por isso.
Do convés do Geo Barents, todos temos os binóculos apontados para a água. Para todas as direções. “Lá, lá!”, grita um de nós. Com o dedo, ele aponta para as colunas de aço da plataforma. Há uma pessoa. Está nadando desesperadamente na nossa direção. O bote a alcança. Os dois sobreviventes são transferidos para o navio a toda a velocidade. Os médicos dizem que estavam mostrando os primeiros sinais de hipotermia. Mais uma hora na água, no máximo duas, e teriam se afogado.
A alegria é imensa, mas se mistura com a tensão. Que está nas alturas. São 20h30. Resta pouco menos de uma hora de luz. Naquele momento, a visibilidade cai rapidamente de dois-três quilômetros para 30 metros. E sabemos que ainda existe uma pessoa sozinha, perdida, em um mar que está se tornando escuro e frio.
Às 21h15 é noite. Continuamos buscando por mais uma hora e meia, usando as luzes dos botes e as do navio. Dar a ordem de suspensão da operação cabe a mim. E não é fácil.
Salvamos 49 pessoas, mas é impossível livrar-se do peso da 50ª. Daquele menor de idade, Ebrima, que não conseguimos encontrar. Que não conseguimos salvar. Os sobreviventes são quase todos da Gâmbia. Muitos se conheciam antes de partir.
Alguns vêm do mesmo vilarejo. Não conseguem se recuperar do luto. Fazem uma cerimônia para recordar quem se foi, todos juntos. Alguns ficam mudos mesmo depois, outros conseguem contar.
Partiram da costa da Tunísia entre Sfax e Mahdia na noite de quarta-feira, 2 de agosto, pouco antes da meia-noite. Tinham oito latas de combustível de 20 litros. Sem telefone via satélite. Apenas com um aplicativo de smartphone servindo de bússola. Que logo deixou de funcionar. Veem outro barquinho de ferro e começam a segui-lo. O tempo piora.
As ondas crescem. Sexta-feira à noite, o motor morre. Os náufragos veem flashes de luz. Pensam que são navios. Mas não conseguem alcançá-los. Enchem quatro tanques já vazios com água do mar e os colocam nas laterais do barco: querem evitar que vire. Têm certeza que isso vai acontecer. Nem todo mundo tem um colete salva-vidas.
No sábado, porém, o tempo melhora: abrem o motor e o consertam. Enchem-no com o pouco combustível que sobrou. Ele começa a funcionar novamente. Para de novo. Enquanto isso, além da gasolina, a água também acabou.
É domingo, e estão à deriva. Veem a plataforma à distância. No início da tarde de segunda-feira, um drone os sobrevoa. “Como aqueles que se veem nas reportagens sobre a guerra na Ucrânia. Com cerca de dois metros de comprimento”, dizem. Uma hora depois, do barco, veem um tanque flutuando. Parece cheio. Pode ser água ou combustível.
Dois deles mergulham para tentar recuperá-lo. São as duas pessoas que recuperaríamos horas depois. Não conseguem enganchar o recipiente de plástico. O mar os vai arrastando. Dois outros mergulham para ajudá-los. Um é Ebrima, o outro consegue voltar para o barco. Quem ficou a bordo se confronta: seguir os três a nado é inútil. A única maneira de salvá-los é pedir ajuda. Quem ainda tem força mergulha com a ideia de empurrar o barco até a plataforma, nadando, e dali pedir ajuda para os desaparecidos. É nesse momento que o avião Sea Watch chega. Uma hora depois, começam a subir nos nossos Rhibs.
Agora estamos navegando rumo a La Spezia. Chegaremos hoje, em algumas horas. Apesar de tudo o que aconteceu, o Ministério do Interior italiano nos designou um porto a mais de três dias de distância. Poderíamos ter permanecido no mar salvando mais vidas ou voltar a fazer isso rapidamente depois do desembarque dos sobreviventes em um porto ali perto.
Em vez disso, voltando para o norte, somos informados sobre outro naufrágio. Outros 41 mortos. Outros Ebrima engolidos pelo mar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A “caça aos vivos” no Mediterrâneo. Artigo de Juan Matias Gil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU