23 Janeiro 2024
A guerra civil na Igreja católica tem a voz suave da bênção. "Paz e bem", respondem ao interfone no eremitério. Não se pode entrar, explica gentilmente o sacerdote, a vida da pequena comunidade é protegida por um muro que circunda todo o mosteiro que fica nas encostas do Monte Palanzana, uma colina nos arredores de Viterbo. Ao redor a paisagem bucólica da Tuscia, pontilhada de olivais e antigas vilas senhoris, dá lugar a um pequeno bosque carvalhos frondosos. Ali dentro, se trabalha intensamente no cisma contra o Papa Francisco.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Repubblica, 22-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O objetivo é construir uma cidadela tradicionalista. O Collegium Traditionis - esse o nome - será “uma estrutura de vida clerical comunal destinada a clérigos e religiosos que se tornaram objeto dos expurgos bergoglianos”. A convicção é que hoje aqueles que seguem a missa em latim e a Tradição com o “t” maiúsculo são “condenados ao ostracismo, ridicularizados, difamados, perseguidos e, acima de tudo, privados do Ministério, de uma moradia e dos meios de sustento”. É preciso, portanto, dar-lhes abrigo como no passado "se dava hospitalidade ao monge procurado pelos soldados de Elisabeth I, uma refeição quente à freira sem convento na França revolucionária, um esconderijo para o sacerdote mexicano perseguido pelos soldados do governo maçom." Os moradores locais não sabem de nada. “Em torno desse lugar”, encolhe os ombros um morador que passeia pelo bosque, “há um pouco de mistério”.
O fundador é D. Carlo Maria Viganò. O personagem, 83 anos, é bastante conhecido. Depois de galgar os degraus da carreira vaticana, esse ex-núncio apostólico nos Estados Unidos começou a bombardear o Papa Francisco com posições cada vez mais radicais. A princípio o acusou de ter encobriu as denúncias de abusos sexuais contra o Cardeal Theodore McCarrick (na realidade, Bergoglio primeiro o expulsou do colégio cardinalício e depois das ordens sagradas), depois ampliou o campo das críticas. Entusiasta trumpiano, simpatizante putiniano, convicto antivacina, Viganò, escondido há anos, agora está atacando o Concílio Vaticano II, o Sínodo, o "Great Reset", as conspirações globalistas das finanças internacionais, a OTAN e a OMS, George Soros e Bill Gates. Quando Bergoglio decidiu abençoar os casais homossexuais, o arcebispo se lançou contra “os servos de Satanás, começando pelo usurpador que está sentado no trono de Pedro". Por último – revelou o site da NuovaBussola quotidiana - Viganò se fez reconsagrar por D. Richard Williamson. Trata-se do bispo cismático inglês que há alguns anos, quando era lefebvriano (depois rompeu mesmo com esse grupo reacionário), declarou que as câmaras de gás dos campos de concentração nazistas eram uma invenção.
Em suma, Viganò há muito resolveu trilhar o caminho do cisma de direita. E agora está fundando um abrigo para sacerdotes e religiosos perseguidos por “Cardeais, Bispos e Prelados da seita conciliar, infiltrados no Vaticano e bem determinados a apagar todos os vestígios da ‘velha religião’ e de ‘velha missa’ que substituíram com a religião da ecologia, do acolhimento, da inclusão, da Nova Ordem Mundial." O inimigo número um, obviamente, é o Papa, o chefão da “hierarquia modernista”.
Fundou a associação Exsurge Domine, em homenagem à bula com a qual o Papa Leão X ordenou que Martinho Lutero se retratasse pelas teses protestantes. A sede legal é num estúdio comercial no bairro romano de Prati (na entrada, ironicamente, uma foto sorridente de Papa Francisco), mas o coração do projeto é a eremitério na região de Viterbo.
Não é o primeiro caso desse tipo. Com o declínio das vocações, os mosteiros e os conventos espalhados por toda a Europa se esvaziam, a manutenção é cara, aparecem os particulares, muda o uso previsto.
Alguns anos atrás a Certosa di Trisulti, na Ciociaria, passou para uma fundação de Steve Bannon, o ranzinza conselheiro de Donald Trump que, juntamente com o cardeal ultraconservador Raymond Leo Burke, queria instalar ali uma escola internacional de formação soberanista. A população local se revoltou. A esquerda italiana pediu um inquérito parlamentar, descobriu-se que a destinação tinha algumas irregularidades e a propriedade foi devolvida ao Ministério do Patrimônio Cultural.
Nos últimos meses, o próprio Viganò botou o olho em outra realidade, o mosteiro Maria Tempio dello Spirito Santo, um convento com vista para a esplêndida estrada panorâmica de Pienza, em Val d'Orcia. Ele ficou persuadindo por meses as freiras beneditinas, de tendência tradicionalista, esperando que o foco da revolta se inflamasse. Mas não aconteceu, e Viganò, no final, abandonou as freiras à própria sorte... a menos que queira hospedá-las na Tuscia. O eremitério de Sant'Antonio alla Palanzana era um mosteiro de capuchinos desde 1500. “Tinham horta, abelhas, depois diminuíram...”, recordam em Viterbo.
O complexo - um amplo terreno de quatro hectares, um edifício central e alguns anexos, igreja e laboratórios — foi adquirido na década de 1960 por Tommasina Alfieri, uma leiga consagrada falecida em 2000. Os residentes da época foram substituídos em 2012 por cinco sacerdotes, acolhidos pela população local, conforme noticiou a imprensa local, “por insultos, palavras fortes, rosários recitados em voz alta e aplausos irreverentes”.
Contatado pela Repubblica, padre Riccardo Petroni, o responsável pela comunidade, confirma ainda reside ali, sem, contudo, ter sido incardinado na diocese de Viterbo. Os sacerdotes pertencem, de fato, à fraternidade sacerdotal Familia Christi que em 2019 foi dissolvida pela Santa Sé, por excesso de tradicionalismo. E agora, com o apoio da fundação Vittorio e Tommasina Alfieri, chegou D. Viganò. “Ofereceram-nos um terreno e uma propriedade que precisa de várias obras de reforma e adaptação”, explica o arcebispo em seu site.
Custo estimado, 1,5 milhões de euros. “Pode parecer uma grande soma, mas se cada um fizer a sua parte, não será impossível consegui-la", garante Viganò. Em agosto e setembro teve um tremendo vaivém de caminhões por uma entrada lateral, agora está tudo silencioso. A reforma, porém, não está concluída. Não será fácil levar água até lá em cima, ainda mais que agora as chuvas são escassas. Um morador local reclama que os veículos pesados danificaram os cabos que passam no subsolo.
Antes de lançar desafios ao Papa, antes de acolher sedevacantistas e criptolefebvrianos, antes de defender as eternas tradições celestiais, os rebeldes de Viganò terão que enfrentar problemas bem mais terrenos.
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No eremitério dos padres que desafiam Bergoglio “Salvaremos a Igreja da heresia modernista” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU