16 Dezembro 2022
“A situação da USCCB é mais séria do que as conferências episcopais em outros países. Na verdade, está se tornando cada vez mais instrumental para o fanatismo da guerra cultural, e esse é um problema que continuará mesmo após o término deste pontificado. Desgostosos com a virada que a conferência tomou nos últimos anos, vários bispos se desligaram em uma secessão silenciosa de uma instituição que ainda é jovem”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 15-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nas quatro semanas posteriores à eleição dos novos líderes da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA – USCCB, o pior dos medos de “muitos dos fiéis” se confirmou. Inicialmente, havia preocupação sobre a escolha de dom Timothy Broglio, arcebispo do Ordinariado Militar desde 2008, como presidente da conferência. Elas vinham das declarações controversas do ex-diplomata Vaticano sobre uma variedade de assuntos, desde culpar a homossexualidade pela crise de abusos até seu apoio aos antivax durante a pandemia de covid.
Mas agora surgiu que Broglio, que em breve terá 71 anos e estará inelegível para uma reeleição, recentemente jantou em Washington D.C. com líderes do Instituto Napa. Essa é uma organização de católicos conservadores com muito dinheiro que consistentemente impulsiona uma agenda que vai na contramão de toda visão do Papa Francisco para a Igreja e a sociedade. Entre os que estavam sentados à mesa com o bispo estava Timothy Busch, fundador do instituto, e Leonardo Leo, um dos diretores da Federalist Society.
Três dias depois, Busch foi anfitrião de outro jantar, desta vez na Califórnia, com dom Paul Coakley, arcebispo de Oklahoma City. Coakley derrotou o cardeal Joseph Tobin, arcebispo de Newark, na eleição de secretário-geral da USCCB, por 130 a 104 votos. O Instituto Napa tuitou que Coakley falou sobre “a evolução do transgenerismo, um tópico que deveria preocupar a todos nós”. Foi dito que antes dessa conversa, “Vossa Excelência saboreou uma garrafa de espumante Trinitas – aberto com um sabre”.
Coakley é conselheiro eclesial do Instituto Napa e em agosto de 2018 esteve entre os bispos estadunidenses que asseguraram a integridade de Carlo Maria Viganò, depois que o ex-núncio apostólico cobrou a renúncia do Papa Francisco.
O fato de tais homens poderem ser eleitos para o cargo de liderança da USCCB já diz algo sobre a situação interna da conferência episcopal. Mas as companhias que seus novos líderes mantêm também deve preocupar quem se preocupa com o futuro da Igreja Católica nos Estados Unidos.
Timothy Busch é advogado católico, filantropo rico e membro ativo da Legatus, uma organização para CEOs católicos e seus cônjuges. Ele não é apenas o fundador do Instituto Napa, mas também faz parte do conselho da Universidade Católica da América (que abriga a Busch School of Business). Ao tentar manter relações diplomáticas cordiais com o atual papa, Busch não escondeu suas divergências sobre os rumos deste pontificado. Basta olhar para os nomes dos palestrantes mais proeminentes nas conferências de verão do Napa Institute nos últimos anos.
O instituto, que realiza convocações anuais de alto nível que apresentam vinhos finos e charutos caros, ampliou sua missão durante este pontificado. Tornou-se não apenas o local de encontro informal de líderes católicos conservadores, mas também hospeda programas de formação sacerdotal e séries de palestras na universidade católica mais rica do país, a Universidade de Notre Dame.
Mas este não é um show de um homem só. Em vez disso, é toda uma constelação no firmamento católico estadunidense de direita. Leonard Leo, da Federalist Society, por exemplo, é frequentemente descrito como o cérebro por trás das indicações de Donald Trump à Suprema Corte. Ele é um dos principais exemplos da influência descomunal que o dinheiro pode comprar na política americana e da Igreja.
É claro que manter boas relações públicas é uma parte fundamental do trabalho do presidente da Conferência Episcopal, especialmente nos Estados Unidos. Uma coisa que aprendi desde que me mudei da Itália para cá é que interagir com filantropos e doadores ricos é parte integrante do trabalho. Mas sabedoria, prudência e boa reputação também fazem parte do ofício do bispo, na verdade são requisitos canônicos (CIC, cânon 378).
Deve-se ressaltar que dom José Gomez, arcebispo de Los Angeles, antecessor imediato de Broglio como presidente da USCCB, nunca teve uma única reunião com Joe Biden desde a eleição do Democrata para a Casa Branca, há dois anos. E o fato de Broglio e Coakley, quase imediatamente após suas próprias eleições como altos funcionários da USCCB, terem decidido se reunir com líderes do Instituto Napa e Leonard Leo, diz algo sobre aonde eles querem levar a Igreja Católica no Estados Unidos.
É verdade que as conferências episcopais vivem uma crise de identidade em muitos países. Eles foram afetados pelas deficiências de um certo episcopalismo do Vaticano II, pelos desafios de uma nova forma sinodal de governo da Igreja e, acima de tudo, pela crise dos abusos. Mas o que está acontecendo com a USCCB é algo diferente porque é um passo em direção ao partidarismo aberto dado pelos líderes de um dos maiores e mais influentes episcopados do catolicismo global. Em uma Igreja já profundamente polarizada, esse passo afastará ainda mais os bispos dos EUA de sua Igreja.
O decreto do Vaticano II sobre os bispos, Christus Dominus (1965), é o documento fundamental na curta história das conferências episcopais na Igreja Católica. Assim define o seu papel: “Conferência episcopal é uma espécie de assembleia em que os Bispos duma nação ou território exercem juntos o seu múnus pastoral, para conseguirem, por formas e métodos de apostolado conformes às circunstâncias do tempo, aquele bem maior que a Igreja oferece aos homens” (Christus Dominus, 38.1).
Tais conferências não servem apenas à Igreja ou a alguns de seus membros, mas também ao bem maior que a Igreja procura oferecer à humanidade. Sabemos que tipo de causas Leonard Leo e o Instituto Napa desejam servir, mas não está claro como essas metas se encaixam no bem maior, conforme entendido pela Igreja. Embora haja uma diferença legítima de opiniões sobre as causas pelas quais esses ativistas conservadores estão lutando, a agenda anti-Francisco do Instituto Napa e amigos é muito clara.
No entanto, o problema fundamental, a meu ver, é a ideia de Igreja que eles incorporam. Esse problema não tem absolutamente nada a ver com ser conservador ou liberal. Tem a ver com a falta de um são sensus Ecclesiae. O espírito que anima esses grupos de lobby tem muito pouco em comum com a contribuição para um “senso católico da Igreja”.
O teólogo católico alemão Johann Adam Moehler (1796-1838) — que não era de forma alguma um teólogo “liberal perigoso”, mas um dos fundadores da eclesiologia católica e muito apreciado até mesmo por Joseph Ratzinger — falou da Igreja como “uma comunhão com todo o corpo”, como um “todo orgânico”. O dominicano francês Yves Congar escreveu sobre a necessidade, mesmo em tempos de crise eclesial, de manter em mente a unidade e a comunhão total com a Igreja concreta. O espírito, objetivos e táticas de um lobby são exatamente o oposto do “espírito católico” e da “mentalidade de Igreja”.
A crescente influência de grupos como o Napa é apenas um exemplo de uma certa mentalidade empresarial americana penetrando no catolicismo. Não é a primeira vez, e não será a última. Mas o desejo manifesto da nova liderança da USCCB de colaborar com um dos lobistas político-religiosos mais influentes dos Estados Unidos deve ser entendido em um contexto eclesial mais amplo.
Primeiro, a recuperação da sinodalidade pelo Papa Francisco e o agora em andamento “processo sinodal” deixaram claro o fracasso do projeto neoclericalista e, portanto, o colapso da legitimidade da USCCB aos olhos da maioria dos católicos – isso inclui o clero. Não tenho certeza de como a aliança deles com o Instituto Napa e Leonard Leo ajudará os bispos a recuperar a confiança de seu povo – ou de seus padres, que agora está em uma situação de partir o coração, revelou recentemente um estudo sério da Universidade Católica da América.
Em segundo lugar, as formas como a oposição a Francisco foi articulada desde o início de seu pontificado por membros importantes da USCCB – auxiliados pelo Instituto Napa – são evidências da desintegração da ordem eclesial: uma desintegração verbalmente violenta, agressiva, e teologicamente inepta. Já vimos isso há quase uma década. A mentalidade de guerra cultural articulada por esses operadores torna difícil, senão impossível, qualquer planejamento pastoral e evangelizador para o catolicismo dos Estados Unidos. Não estamos falando da tentativa dos bispos de influenciar Napa. É o contrário: doadores ricos estão moldando a cultura e a linguagem dos bispos.
Em terceiro lugar, há um paralelo entre a liderança da USCCB se aproximando de grupos conservadores de extrema-direita e a deterioração da democracia estadunidense e sua crescente vulnerabilidade a desafios autoritários. A influência avassaladora do dinheiro corporativo não é apenas uma ameaça à democracia. É também uma ameaça para a Igreja Católica. Os oligarcas dos EUA ameaçam destruir a democracia de seu próprio país. Os oligarcas católicos dos EUA podem fazer o mesmo com o catolicismo no país – mas, como sempre, em nome de salvar a fé de seus inimigos.
Os ideólogos do Instituto Napa provavelmente entendem a situação atual melhor do que os bispos. Exploram o fato de o catolicismo ser um dos reservatórios da nossa memória coletiva e sabem que a Igreja ocupa agora uma posição central na procura de identidade na nossa sociedade devorada pela incerteza e pela inquietação. Como vimos repetidamente ao longo da história da Igreja, os líderes clericais pensam que podem domar os ideólogos que professam ajudar a Igreja. Mas, no final, esses voluntários sempre usam a Igreja para seus próprios objetivos e deixam para trás uma paisagem de escombros.
A situação da USCCB é mais séria do que as conferências episcopais em outros países. Na verdade, está se tornando cada vez mais instrumental para o fanatismo da guerra cultural, e esse é um problema que continuará mesmo após o término deste pontificado. Desgostosos com a virada que a conferência tomou nos últimos anos, vários bispos se desligaram em uma secessão silenciosa de uma instituição que ainda é jovem.
É um dos reflexos típicos do ultramontanismo católico minimizar essa corrupção na missão dos líderes da Igreja a um simples problema de dissidência ou deslealdade para com o papa, o pontificado de Francisco e sua visão. Isso é um absurdo total. O problema é muito mais profundo: é eminentemente eclesiológico e eclesial. Quanto mais perto a USCCB chegar de abraçar os instintos opacos e anárquicos dos operadores que vêm a eles com cheques em branco, mais forte será o sentimento de impotência e estranhamento entre muitos católicos comuns. Para a sinodalidade na Igreja dos EUA, este é o melhor e o pior dos tempos.
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Agenda Anti-Francisco: os laços da Conferência dos Bispos dos EUA e o Instituto Napa. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU