11 Janeiro 2024
“Pai, então você é um assassino?” Aquela pergunta feita por seu filho de 8 anos permanecerá para sempre como uma lâmina no coração de Vito Alfieri Fontana. Ainda hoje, muitos anos depois, não é fácil lembrar aquele momento para esse engenheiro de 72 anos de Bari que viveu duas vidas: a primeira como projetista e fabricante das letais minas terrestres antipessoais à frente da Tecnovar, empresa familiar economicamente bem-sucedida.
E depois a segunda, diametralmente oposta: a de desminador-chefe nos Balcãs, um território devastado por guerras e infestado justamente por aquelas armas traiçoeiras e mortais que são as minas. Vito contou essa parábola dramática, sofrida e ao mesmo tempo entrelaçada de coragem e esperança num livro escrito com o jornalista da Famiglia Cristiana, Antonio Sanfrancesco, com o título emblemático: Ero l’uomo della guerra (Eu era o homem da guerra, em tradução livre).
Nesta entrevista à imprensa vaticana, o ex-fabricante de armas que se converteu a agente humanitário comenta também as palavras de Papa Francisco sobre o desarmamento e lança um apelo veemente a quem, como ele no passado, produz e vende instrumentos de morte.
A entrevista com Vito Alfieri Fontana é de Alessandro Gisotti, publicada por L'Osservatore Romano, 10-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Engenheiro, você disse nos últimos anos - também em seu livro - que você viveu duas vidas. Aquela de produtor de minas e a de desminador, aquele que tenta neutralizar aqueles instrumentos de morte. O divisor de águas não chegou de repente, mas amadureceu ao longo do tempo. Principalmente graças ao seu filho…
Quando meu filho começou a crescer, começou a me fazer perguntas. Quando por acaso ele se deparou com o fato de eu projetar minas, fabricar armas, ele me perguntou: “Se você faz as armas, então você é um assassino…”. São aquelas coisas que fazem você entender a percepção que vem de fora daquilo que você faz. Afinal é a coisa mais simples de entender: quem faz armas, quer queira quer não, ajuda a causar o mal aos outros. E meu filho até me disse a coisa mais óbvia: “Pai, talvez outras pessoas podem fazer armas, muitas pessoas no mundo, mas por que é você que tem que fabricá-las?" Essas palavras foram a primeira pedra de tropeço.
Depois, na sua “conversão”, desempenhou um papel também Dom Tonino Bello e em particular um jovem ligado justamente ao bispo da Apúlia, presidente da Pax Christi...
Sim, em 1993, quando começou a Campanha internacional para proibir as minas antipessoais, naquele momento recebi um convite para conversar com Dom Tonino Bello, da Pax Christi, da qual ele era presidente. Ele havia escrito no convite: “Vamos tentar encontrar um ponto de discussão. Será que não pode haver uma conversa entre homens de paz e quem faz a guerra?"
Dom Tonino que organizou aquele encontro, infelizmente não pôde participar porque no meio tempo havia falecido. Mas o seu grupo quis realizar o debate de qualquer maneira e me vi na frente, não estou brincando, de duzentas pessoas que me questionaram até bem pesadamente. Respondi sem problemas, até que um jovem, um voluntário da Pax Christi, no final da discussão me abalou quando perguntou: “Engenheiro, você é até simpático, mas à noite, quando você vai dormir, com o que você sonha? É possível que você sonhe com uma ‘linda guerra’, é possível que você sonhe uma guerra para vender muitas minas?".
Sua empresa, a Tecnovar, faturava bilhões de liras. Uma empresa familiar. Sua mudança de vida encontrou também muitas incompreensões e dificuldades. Mas você seguiu em frente por seu caminho. O que o levou a escolher um caminho tão difícil?
Quando o problema bate e você sente um nó na consciência, como colocar de novo a caneta na prancheta e projetar algo que pode causar o mal dos outros? Naquela altura, não se consegue mais. Por que eu tenho que fazer isso? Meu filho efetivamente tinha razão. Certo isso comporta incompreensões, desentendimentos com uma parte da família, você se depara, não só com o vazio ao redor, mas percebe que os outros não querem entender... Mas, continua-se em frente.
O que você sentiu nas primeiras vezes que se viu do outro lado? A liderar, com a organização Intersos, a desminagem de áreas infestadas com minas antipessoais - em particular na ex-Jugoslávia - semelhantes àquelas que sua empresa havia produzido até pouco tempo antes?
É uma sensação ruim porque uma parte de você se sente por baixo da terra. É uma sensação estranha, ou seja, você se pergunta: "Olha o que você fez?". Os primeiros cinco minutos são de medo, por que não sabe se será capaz de ir contra si mesmo. Depois, no final, o medo passa... Mas no começo é embaraçoso. Eu me sentia realmente mal e era muito duro comigo mesmo.
Você contou que, em sua vida como industrial das armas, participava de feiras e eventos onde encontrava mais ou menos sempre as mesmas pessoas. Eventos onde não se considerava o mal que se fazia com essas armas...
Naquelas ocasiões nunca se falava de vidas humanas. Uma mina antipessoal é uma boa mina se consegue perfurar uma placa de metal de 50cmx50cmx5mm. Não se fala de homens, não existem crianças a serem consideradas. Não há soldados que depois perdem as pernas ou a vida… A perfuração da placa, esse é o objetivo e é nisso que se trabalha.
O epílogo de seu livro intitula-se “O passado que não passa”. O peso da primeira das duas vidas pesa também sobre a segunda, inevitavelmente...Dois milhões e meio de minas produzidas, alguns milhares desarmadas. Um balanço ímpar, observa com amargura. Também para a sua consciência...
Sim, se considerarmos apenas uma vida... Meu empenho agora é também em favor de cerca de 10 mil pessoas que em todo o mundo fizeram o meu último trabalho, o de desminador. Pessoas que trabalham duro todos os anos, todos os dias, todas as horas do dia para remover as minas. Espero ter dado um contribuo também por ter destacado esse problema, por ter encorajado essas pessoas que estão fazendo “milagres” nos últimos anos. Não falo apenas dos Balcãs, falo da Ásia, da América, da África, com sucessos incríveis. Então, certamente meu balanço, como pessoa, é ímpar, porém faço parte de um grupo incrível de pessoas que estão realizando um grande trabalho.
Falando desta última consideração, você também colaborou com a ganhadora do Prêmio Nobel da paz Jody Williams a favor da Campanha mundial contra as Minas Terrestres, que levou à Convenção de Ottawa. Um acordo citado positivamente pelo Papa Francisco na exortação apostólica Laudate Deum. Hoje não parece haver um movimento de baixo, popular, sobre o desarmamento como acontece com outras questões, por exemplo a crise ecológica...
Digamos que a Convenção de Ottawa tinha, em última análise, um inimigo bastante limitado. Os fabricantes das minas eram uma mínima parte e, sinceramente, nem sequer defensáveis... As questões ambientais envolvem muito mais pessoas e, portanto, naturalmente têm muito mais seguidores. Mas eu digo que pelo menos os cristãos deveriam ter sempre em mente - não creio estar errado - que, no Evangelho, os pacificadores, os agentes da paz são o único grupo humano que Jesus define como “filhos de Deus”: “Bem-aventurados os pacificadores porque serão chamados filhos de Deus”. Sempre deveríamos lembrar disso é uma grande responsabilidade. Poderemos ser apenas um, poderemos ser 10.000, mas se somos definidos de uma certa maneira não podemos voltar atrás.
A guerra na Ucrânia, a guerra no Oriente Médio e depois tantos outros conflitos esquecidos, da Síria ao Iêmen. O Papa destacou tantas vezes um paradoxo: armamo-nos para nos sentirmos mais seguros, mas aumentam as guerras e, consequentemente, a insegurança global. Ele repetiu isso ao se dirigir ao Corpo diplomático creditado junto à Santa Sé na última segunda-feira... Esse círculo vicioso pode ser quebrado ou devemos resignar-nos a viver nessa situação?
Nunca se resignar! Infelizmente, porém, 2024 é um ano conturbado: haverá eleições presidenciais nos Estados Unidos. Portanto, todos os eventos internacionais, na minha opinião, girarão em torno daquela situação e haverá uma grande turbulência internacional. É claro que em algum momento os conflitos devem parar, porque as guerras não podem ser infinitas, e naquele momento será necessário se interpor. Teremos um ano difícil, depois disso teremos que arregaçar as mangas e tentar curar as feridas que todos nós, como comunidade humana, infligimos aos nossos irmãos.
O Papa também disse no dia de Natal que as pessoas querem pão, não armas. Madre Teresa tinha feito um apelo semelhante, recebendo o Prêmio Nobel da Paz em 1979...
Devemos estar cientes de que as armas são detidas por apenas 1 por cento da população quando há uma guerra. As armas são operadas, usadas ou programadas por pouquíssimas pessoas em comparação com os danos que causam. O que eu vi indo a esses teatros a guerra, nessas realidades devastadas, é que as pessoas precisavam - como diz o Papa - de pão, precisavam de trabalho, de reconstruir, e certamente não precisavam de armas! E isso vale para 99 por cento das pessoas.
Esse fato sempre me impressionou: que você podia juntar antigos inimigos, desde que os colocasse para trabalhar, isto é, que lhe desse um emprego, um salário adequado para que pudessem voltar com dignidade para casa. Então eu realmente vi se apagarem antigas rivalidades. Comigo, na atividade de desminagem trabalharam ortodoxos, católicos, muçulmanos, mas também muitos ateus...E não havia nenhum problema quando uma pessoa colaborava com outras e levava o pão para casa: é essa a perspectiva que a política deveria ter: distribuir pão em vez de armas! Não pão – quero dizer – dado ou roubado, mas pão que foi ganho. Deveriam ser programados trabalhos, recuperação, reconstruções... deveriam ser programadas irrigações, energias alternativas.
“Para dizer 'não' à guerra, é preciso dizer 'não' às armas”, disse o Papa no dia de Natal. “Porque – acrescentou – se o homem, cujo coração está instável e ferido, tem instrumentos de morte em suas mãos, mais cedo ou mais tarde ele os usará". O que você acha disso com base também na sua experiência pessoal?
Gostaria de completar essas palavras do Papa assim: fazer a guerra é como derrubar uma árvore. Trabalhar pela paz é como plantar uma árvore. Para derrubar uma árvore você não precisa de nada, só precisa de uma arma! Para conseguir a paz é preciso plantar a árvore, semear, cuidar para vê-la crescer. Então, ao sofrimento do momento da guerra segue-se depois o mal-estar, o desgaste e sofrimento da reconstrução. É uma loucura. O uso de armas é uma loucura! Existem todas as possibilidades de viver cooperando mesmo que se pense diferente. Trabalho e dignidade. Afinal, não sei por que não se quer entender isso.
Você tem hoje 72 anos vividos intensamente e com uma trajetória de vida incomum. O que gostaria de dizer a quem, como você no passado, produz e vende armas? Por que deveria parar de fazer isso, como você fez?
Eu me dirigiria principalmente àqueles que sentem que têm fé. Já conversei com muita gente sobre isso. Se você me disser para produzir o motor de um carro ou o motor de um tanque, eu não deveria ter nenhuma dúvida…
Vou dizer isto: se você tem fé, você deve agir com coerência. Especialmente nós que cremos na Palavra de Deus, na Bíblia, como podemos nos odiar a ponto de destruir as esperanças dos outros, dos nossos irmãos? Só isso eu gostaria de dizer.
O maior número de vítimas na Síria e na Ucrânia
Durante 2022, registou-se um aumento de vítimas devido à presença de minas em nível mundial. É o que certificam os dados mais recentes sobre o assunto, divulgados em novembro de 2023 pelo relatório anual Landmine Monitor, elaborado pela Campanha Internacional para Banir Minas Terrestres.
Segundo o relatório, as minas e os resíduos bélicos explosivos causaram a morte ou o ferimento de 4.710 pessoas em 49 países. Os civis estão particularmente expostos a riscos ligados às minas e resíduos bélicos explosivos: de fato, constituem 85% das vítimas registadas. E dessas 1.171 são crianças.
O maior número de vítimas anuais ocorreu na Síria (834) e na Ucrânia (608). No contexto de conflito na Ucrânia, em comparação com 2021, o país viu o número de vítimas civis por minas aumentar dez vezes. Seguido pelo Iêmen e Mianmar, onde foram registadas mais de 500 vítimas, respetivamente.
De acordo com dados do Landmine Monitor 2023, minas antipessoais foram utilizadas por alguns grupos armados não estatais na: Colômbia, Índia, Mianmar, Tailândia e Tunísia, bem como em oito estados na região do Sahel: Argélia, Benin, Burkina Faso, República Democrática do Congo, Mali, Níger, Nigéria e Togo. Segundo o relatório, existem 60 países contaminados por minas antipessoais. Um total de 30 Estados que aderiram na Convenção relataram ter eliminado todas as áreas minadas do seu território desde que o Tratado de Proibição de Minas entrou em vigor em 1999.
O suporte global à ação contra as minas – informa o relatório Landmine monitor – foi igual a 913,5 milhões de dólares, representando um aumento de 52% em relação ao suporte prestado em 2021. Desse montante, 162,3 milhões de dólares foram destinados a atividades na Ucrânia.
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Eu, ex-fabricante de armas, digo: a guerra é uma loucura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU