21 Dezembro 2023
A Igreja Católica Romana diz sim à bênção aos casais “irregulares” (divorciados e que coabitam) e aos casais do mesmo sexo, especificando que não se trata de uma equiparação ao matrimônio. A luz verde vem do mais alto nível da hierarquia vaticana: uma declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício), aprovada e assinada no dia 19 de dezembro pelo Papa Francisco.
A reportagem é de Luca Kocci, publicada em Il Manifesto, 19-12-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Embora o perímetro seja delimitado por inúmeras estacas (não é um matrimônio, não é um novo rito litúrgico, a doutrina não muda), plantadas também para evitar as inevitáveis reações dos setores conservadores da Igreja, a declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano (Fiducia supplicans) modifica substancialmente a práxis pastoral oficial em relação aos casais irregulares e homossexuais, e acende um rastilho que pode desencadear consequências imprevisíveis, sem excluir um cisma à direita.
O documento prevê “a possibilidade de abençoar os casais em situações irregulares e os casais do mesmo sexo, cuja forma não deve encontrar nenhuma fixação ritual por parte das autoridades eclesiais, a fim de não produzir uma confusão com a bênção própria do sacramento do matrimônio”, afirma o parágrafo central [n. 31] da declaração aprovada pelo dicastério liderado pelo cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, escolhido há seis meses pelo Papa Francisco como o novo “guardião da fé” para tentar imprimir uma virada em um organismo que sempre se caracterizou por seu caráter censório.
Não se trata, portanto, de uma liberalização absoluta. A doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimônio entre homem e mulher “permanece firme”, nem é estabelecido um rito específico, justamente para evitar que essas bênçãos “se tornem um ato litúrgico ou semilitúrgico, semelhante a um sacramento” [n. 36], especifica o documento vaticano. “Esta bênção nunca será realizada contextualmente aos ritos civis de união nem mesmo em relação a eles. Nem com roupas, gestos ou palavras próprias de um matrimônio” [n. 39].
Ao mesmo tempo, porém, precisamente porque não se trata de um sacramento, devem ser postos de lado todos aqueles “pré-requisitos de caráter moral” que, “com a pretensão de um controle, poderiam ofuscar a força incondicional do amor de Deus sobre a qual se fundamenta o gesto da bênção” [n. 12]. A Igreja, acrescenta o documento, “deve evitar basear sua práxis pastoral na fixidez de alguns esquemas doutrinais ou disciplinares, sobretudo quando dão origem a um elitismo narcisista e autoritário, em que, em vez de evangelizar, analisam-se e classificam-se os outros e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias para controlar” [n. 25]. Portanto, se duas pessoas invocam uma bênção, “não se deve exigir delas uma prévia perfeição moral”, mas sim abrir as portas.
No entanto, em fevereiro de 2021, o mesmo dicastério vaticano – que na época ainda se chamava Congregação para a Doutrina da Fé e não era liderada por Fernández –, respondendo a uma pergunta de alguns cardeais se a Igreja dispunha do “poder de conceder a bênção a uniões de pessoas do mesmo sexo”, havia pronunciado um seco “não”.
Diversas coisas mudaram nestes três anos: o Sínodo da Igreja alemã está levando na direção de um pleno reconhecimento dos casais homossexuais, os bispos flamengos da Bélgica aprovaram um rito para a bênção das uniões gays que nunca foi negado pelo Vaticano, além disso, a morte do Papa Emérito Ratzinger – uma espécie de “convidado de pedra” – deixou indiretamente uma maior liberdade de ação a Bergoglio.
A frase de Francisco no início de seu pontificado, “quem sou eu para julgar uma pessoa gay?”, parece encontrar hoje, dez anos depois, uma primeira tradução pastoral, que, na realidade, sanciona aquilo que muitos padres de fronteira já vêm fazendo há décadas. “É uma vida inteira que nós, padres, fazemos essas coisas sem esperar por carimbos”, explica o biblista Alberto Maggi, que acolhe positivamente o documento vaticano, mas sem triunfalismos: “É um pequeno passo à frente, mas o caminho ainda é longo. Quando chegaremos a entender que ninguém nasce errado, mas que todos somos expressão do Criador? A Igreja terá de fazer um mea culpa: quantas pessoas adoeceram psiquicamente, quantos suicídios, pessoas que se sentiram erradas. Isso é intolerável”.
O Pe. Andrea Bigalli, pároco de Florença, é mais otimista: “É uma inovação importante, porque pela primeira vez se fala de acolher e abençoar casais e não apenas homens e mulheres individuais. Desse modo, vai-se ao encontro da humanidade das pessoas”.
Não se trata de uma revolução copernicana, porque a doutrina não muda. Mas sim de um significativo “salto à frente” que, na economia dos tempos bíblicos da Igreja romana, abriu novas fronteiras.
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O “passinho” à frente da Igreja em relação aos casais gays - Instituto Humanitas Unisinos - IHU