12 Dezembro 2023
Eva Illouz é uma das sociólogas de maior prestígio da atualidade. Franco-israelense e professora na Universidade Hebraica de Jerusalém, suas pesquisas se concentram na sociologia do capitalismo, das emoções, do gênero e da cultura. Seu último livro tem como título The Emotional Life of Populism: How Fear, Disgust, Resentment, and Love Undermine Democracy (2023) e acerca dele conversa, via Zoom, com La Tercera.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 08-12-2023. A tradução é do Cepat.
Começo perguntando como está vivenciando a guerra...
A minha reação é semelhante à que tive quando o Covid e o confinamento planetário começaram. Leio compulsivamente tudo o que consigo encontrar e escrevo para dar sentido ao acontecimento e compartilhar essa compreensão com outras pessoas.
Leio e escrevo para aliviar a ansiedade e a ira. Em tais momentos de crise, digo a mim mesma como os jornalistas são cruciais para tornar o nosso mundo inteligível.
Yuval Noah Harari escreveu que “o horror do Hamas é também uma lição sobre o preço do populismo”. Você escreveu um capítulo em seu livro sobre o tema.
Sim, dediquei um capítulo inteiro para mostrar que os líderes populistas prometem segurança, mas, na realidade, a colocam em perigo. Fazem isto pelo menos de dois modos e Netanyahu é um caso típico disto.
Primeiro, comprometem a excelência profissional das instituições porque preferem colocar os seus comparsas em posições centrais e tomam decisões de segurança para satisfazer os seus parceiros de coalizão. Em resumo, sempre subordinam o interesse coletivo ao seu interesse pessoal.
Em segundo lugar, fomentam a guerra civil na sociedade, colocando um grupo contra outro. Netanyahu e Trump prosperam no caos. Vemos as duas coisas em Israel.
Considera que os populistas estão atingindo diretamente o nosso núcleo emocional?
Penso que todas as ideologias estão impregnadas de emoções. As ideologias socialistas tinham um controle emocional muito poderoso sobre os seus crentes e seguidores. As ideias e as emoções costumam estar estreitamente entrelaçadas, muito mais do que gostaríamos de reconhecer.
Para mim, foi fascinante o debate em que me envolvi, no sentido de que “nós” – sendo este “nós” uma entidade ocidental muito vaga e indefinida – lutamos pela democracia, nos últimos 200 anos, às vezes lutamos muito duro, mas parece que na última década quase todos os seus princípios estão sendo descartados, ignorados: a fatualidade, a construção de consenso, a deliberação, a tolerância em relação a ideias hostis às nossas crenças, tudo isto parece ameaçado dentro da própria democracia.
E as pessoas votam nisso. As pessoas querem isto. Veja a votação recente na Holanda e na Argentina. Parece uma estranha mistura entre antissistema, voto rebelde e autodestruição. Esta mistura é fascinante.
Como assim?
Penso que a autodestruição é muito interessante porque desafia os pressupostos básicos que temos acerca dos seres humanos – que são motivados por sua autopreservação ou algum interesse –, mas, na maioria das vezes, podemos ver em indivíduos que não é assim. Especialmente quando a revanche, o ressentimento, a inveja, a ira e o ódio começam a desempenhar um papel em nossa vida psíquica e política.
A maioria das pessoas preferirá se apegar a seu ódio e ressentimento. E ao observar a ascensão dos populistas e os modos como tantos grupos, em muitos países democráticos, parecem respaldá-los com entusiasmo, perguntei-me por que é que as pessoas podem estariam dispostas a destruir a herança democrática pela qual tanto lutaram.
O que pensou a esse respeito?
A inveja, o ressentimento e a ira, se são fortes o suficiente, normalmente fazem com que você prefira se afundar, sempre e quando puder derrubar o outro, aquele que odeia e inveja. Algumas emoções nos tornam imunes à nossa autopreservação.
Parece-me que o ressentimento em relação às elites urbanas e ao governo liberal, por um lado, e em relação aos imigrantes que parecem se beneficiar do Estado de Bem-estar, por outro, é crucial para explicar grande parte da revolta populista.
Politicamente, como enfrentar essas emoções?
Sinto-me mais confortável analisando patologias do que as curando. Os sociólogos são médicos muito estranhos, porque pensam mais nas causas das doenças do que em sua cura. Penso que um elemento seria que os social-democratas se dirigissem não apenas à classe média, mas também à classe trabalhadora.
Contudo, isto exigiria o controle das grandes corporações. Exigir delas um maior compromisso com os grupos sociais e a sociedade dos países onde obtêm os seus lucros. Vemos capitalistas e corporações pagarem menos impostos do que antes, abandonarem a sua responsabilidade social, sentirem-se comprometidos apenas com os seus conselhos de administração, não com a sua sociedade, e temos também elites liberais envolvidas em uma globalização da cultura.
Isto deixou muitos grupos sociais com a sensação de que não são considerados. A maior dificuldade das social-democracias em todo o mundo é que perderam contato com a classe trabalhadora. A esquerda tem se ocupado em construir coligações arco-íris, ou seja, reunir raças, mulheres e minorias étnicas, e no processo abandonou a classe trabalhadora.
Como voltar a se conectar com ela?
Penso que um remédio necessário estaria em a esquerda encontrar uma linguagem para falar com a classe trabalhadora, que neste momento se sente mais visível e atendida pelos líderes populistas. Um dos problemas é que a classe trabalhadora se sente invisível.
Contudo, o regime de intensa visibilidade em que vivemos, que nos permite ver a vida de pessoas que vivem muito melhor do que nós, cria formas de inveja que são legítimas e a sensação de invisibilidade, de morte social.
Estas invisibilidades também são concretas: regiões inteiras dos Estados Unidos entraram em decadência e as infraestruturas não foram reparadas. Por isso, considero muito importante o projeto de Biden para melhorar a infraestrutura.
Outra dificuldade ainda maior do que a anterior é que a classe trabalhadora está dividida entre si, muitas vezes, entre uma classe trabalhadora branca nativa e a classe trabalhadora que provém da imigração, e não é possível falar a mesma língua com ambas.
Na França, a classe trabalhadora branca vota no Reagrupamento Nacional de Le Pen. A classe trabalhadora étnica vota no populista de extrema-esquerda Mélenchon. Ambos são igualmente catastróficos. Isto mostra a atual dificuldade.
As preocupações da classe trabalhadora branca costumam ser consideradas racistas pela esquerda. Por exemplo, a imigração. A esquerda, em sua maior parte, não tem dado uma resposta a esta preocupação.
Qual é o papel do feminismo nesta agenda?
Em primeiro lugar, acredito (e talvez haja pouca insistência nisto) que o populismo é uma reação contra os avanços do feminismo e do movimento gay e transexual. E aqui subscrevo os trabalhos de Pipa Norris e Ronald Inglehart, no sentido de que o populismo pode ser uma reação de rejeição que se assenta em uma brecha geracional.
Eu diria que para as pessoas com mais de 60 anos a família era fundamental para a sua identidade. Os papéis e identidades de gênero também. Contudo, o mesmo não acontece para a Geração Z e os millenials.
Eu acrescentaria uma coisa: existe um grupo para quem adotar ideias novas e não convencionais é muito congruente com a sua profissão. Se você é acadêmico, jornalista, cineasta, romancista, as novas ideias não te ameaçam. De fato, são materiais para a sua criatividade.
No entanto, existem outras pessoas para quem a estabilidade da família é o recurso central que possuem em suas vidas, e a estabilidade da família significa que o homem é o homem, a mulher é a mulher e o pai é o pai e a mãe é a mãe… E então, quando veem isto sendo questionado, sentem que toda a sua visão de mundo desmorona.
Há fatores entrelaçados?
Penso que há duas coisas que estão entrelaçadas: uma é o privilégio masculino, considerando que mesmo os homens da classe trabalhadora sempre tiveram uma mulher abaixo deles para lhes servir, e não é mais assim, e isto está entrelaçado ao fato de que a família representa um recurso crucial para a classe trabalhadora e uma chave de identidade.
E o feminismo e os movimentos sexuais questionam as definições tradicionais de família. Então, o populismo também é uma reação a isto. Não só, mas também. Putin e Orbán são exemplos óbvios.
E nos Estados Unidos, Trump é aliado dos evangélicos que, nas últimas décadas, participaram das campanhas contra o aborto. E em Israel, o governo e a coalizão de Netanyahu são profundamente patriarcais, sexistas e anti-LGBT. Isto é muito explícito.
Por isso, quero partir dizendo que o deslocamento das identidades de gênero e a família desempenham um papel importante, é algo que não se enfatizou suficientemente.
O que o feminismo deveria fazer hoje?
Em relação a qual papel o feminismo pode desempenhar hoje, eu diria que é bastante surpreendente que quando se olha para os populistas, só há duas mulheres: Le Pen e Meloni (que nomeou seu partido como Irmãos da Itália), mas, exceto as duas, todos esses movimentos são liderados por homens altamente hegemônicos, caricaturas do que é a masculinidade tóxica hegemônica.
Trump e Bolsonaro certamente são. Milei parece causar bastante medo (com sua motosserra, quão assustador pode ser?). Depois, quando se observa Meloni e Le Pen, são duas mulheres que de modo algum são feministas. Por tais razões, penso que o feminismo é uma das coisas atacadas pelo populismo.
Dizia que isto mostra o quão longe as mulheres ainda estão do poder. Por que, se há muitas mulheres líderes?
Porque não temos acesso a armas. Nos últimos 30 anos, melhoramos a nossa posição na sociedade, mas não mudamos a estrutura de poder. Observe os grandes conflitos do mundo: todos são provocados por homens e geridos por homens.
Os conflitos refletem a estrutura de poder. São os homens que possuem os meios para matar. Os que possuem poder real são os que têm o dinheiro e o poder de matar. A maior parte do dinheiro e dos ativos financeiros do mundo pertence a homens. Os exércitos são controlados por homens.
Nesse sentido, penso que os líderes populistas revelam até que ponto as mulheres ainda estão incrivelmente longe de alcançar qualquer tipo de igualdade de poder. (...) Então, o feminismo está no centro do backlash populista, que consiste em retomar o controle e mostrar quem está no comando. E as mulheres deveriam resistir muito mais do que já fizeram. Surpreende-me que a resistência nos Estados Unidos não tenha sido muito mais contundente contra a revogação do caso Roe versus Wade.
Os feminismos não estão suficientemente organizados?
O feminismo está organizado, mas é não-violento. Não tem, acredito, uma estratégia para combater eficazmente este tipo de (tentativa) de retomar o controle de seus corpos. Talvez as mulheres também não se sintam profundamente ameaçadas, mas deveriam. É um erro não se sentirem ameaçadas pelo populismo.
Além disso, as feministas não se transformaram em um partido político. Já está na hora das mulheres se tornarem uma força política como tal, porque haverá muito poucos homens que as defendam.
Finalmente, quais emoções os políticos deveriam mobilizar como antídoto?
Na minha conclusão, fiz uma distinção entre dois conceitos diferentes: solidariedade e fraternidade. Em geral, são confundidos. Dizem que deveríamos ser mais solidários entre nós, mas penso que o que querem dizer é que deveríamos ser mais fraternos.
Muitas vezes, a solidariedade vem de pessoas do próprio grupo. A fraternidade, por outro lado, é o terceiro lema nacional na França, “Liberté, égalité, fraternité”. Os teóricos políticos dedicam muita atenção à liberdade e à igualdade, mas bem pouca à fraternidade, como se fosse algo com o que não soubessem o que fazer.
Contudo, na minha opinião, a fraternidade é realmente o ingrediente fundamental, em uma democracia, para o bom funcionamento de uma sociedade civil. Significa que se está disposto a olhar para o estranho, para a pessoa exogrupo, de uma forma benévola, que há disposição para ampliar o círculo da humanidade para incluí-la.
A fraternidade é a capacidade de sermos benévolos com os estranhos, de nos sentirmos comprometidos com o bem coletivo. Sem ela, as democracias não funcionam bem.
Como desenvolvê-la?
É necessário um modelo de formação para não ver os outros como inimigos, algo profundamente enraizado em Israel. Esta visão do mundo dividida entre aqueles que estão conosco e os nossos inimigos; esta distinção entre endogrupo e exogrupo torna muito mais fácil para o populismo implementar suas agendas.
A fraternidade é uma forma de fazer implodir tais distinções. É uma noção cristã, mas todas as religiões (judaísmo, islamismo e cristianismo) possuem o conceito de irmandade. Deveria ser adaptada às culturas seculares. É necessário sintetizá-la em uma noção mais política de fraternidade.
E a razão é porque muitas pessoas que seguem os populistas também são religiosas. Meloni, os evangélicos, os messiânicos israelenses e os ultraortodoxos, na Polônia, de alguma forma, são religiosos. Penso que se você deseja conversar com eles, precisa assumir referências desse mundo, e ver se se integra com as ideias da esquerda.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Os líderes populistas prometem segurança, mas, na realidade, a colocam em perigo”. Entrevista com Eva Illouz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU