22 Dezembro 2023
"Hoje, quando o presépio, enfeitado com mil detalhes, perdeu todo o seu significado espiritual, Francisco nos lembra que cada Natal é o nascimento de Cristo nos corações daqueles que se esqueceram do amor e da paz. É a esperança de quem vive na necessidade, a mesma em que se encontrava a Sagrada Família", escreve Angelo Angeloni, em artigo publicado por Settimana News, 20-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Quando os seguidores de Francisco se tornaram numerosos, e mudou o espírito de pobreza absoluta que unira os primeiros deles, a regra mudou, e o próprio Francisco deixou de ser seguido nas decisões práticas da vida que mudava, ele, "como Cristo no Monte das Oliveiras, começa uma longa agonia espiritual; se retira cada vez mais para os eremitérios, foge da companhia de seus irmãos e muitas vezes tem palavras duras e ásperas para eles”.
É “o período que os biógrafos definem como a ‘grande tentação’, a tentação de abandonar tudo, de se desinteressar completamente da comunidade, talvez de não mais confiar em Deus”. [1]
Depois, experimentou a terrível solidão do Getsêmani. Era 1223, três anos antes de sua morte, e ele havia se retirado para Greccio.
O presépio de Greccio
Mas aquele que fizera da vida de Cristo o exemplo a seguir e do Evangelho a regra da vida podia sentir a desilusão, não o desespero. Assim, quis reviver mais uma noite, luminosa e gloriosa: a noite do nascimento de Jesus, para recordar o “menino que nasceu em Belém e ver a cada momento com os olhos do corpo as dificuldades e sofrimentos do seu nascimento, como foi colocado em um berço e colocado no feno entre o boi e o jumento." [2]
Ele chamou um caro amigo para que preparasse uma manjedoura (presépio) cheia de feno, um boi e um jumento.
Chiara Frugoni aprofunda-se sobre esse presépio altamente significativo no belíssimo livro Il presepe di san Francesco: Storia del Natale di Greccio (O presépio de São Francisco: história de Natal de Greccio; il Mulino, Bolonha, 2023], em que analisa, também com o recurso de ilustrações de afrescos e miniaturas, o episódio daquele Natal descrito por Tomás de Celano em Vida do beato Francisco, com uma interpretação realmente sugestiva.

FRUGONI, Chiara. Il presepe di san Francesco: Storia del Natale di Greccio. Bolonha: Il Mulino, 2023 (Foto: Divulgação)
No presépio de Greccio não há menino, real ou representado, como havia em representações anteriores a esse; mas é criado pela força oratória do sermão que Francisco proferiu naquela noite, e que tocou o coração dos presentes, a tal ponto que um deles viu “uma criança deitada numa manjedoura, e o santo de Deus aproximar-se dela e quase a despertar do sono”. [3]
Essa visão, comenta Frugoni, “compensa o vazio da manjedoura” (p. 37). É a força da reflexão que gera a visão. Isto é o que Francisco queria: que se meditasse sobre o Menino colocado no coração de todos, para que, em todos os lugares, no mundo se repetissem as condições de humildade e pobreza em que nasceu e todos pudessem reviver o evento da época.
E quando se leva Cristo no coração, não há necessidade de visitar os lugares da sua vida, porque eles se tornam lugares da alma. Assim, na nova Belém de Greccio, Francisco despertou em muitos corações o Cristo esquecido. [4] A Igreja faz isso diariamente com a Eucaristia.
O sentido do Natal
Na eucaristia é o sentido do Natal de Francisco que Chiara Frugoni analisa, partindo do que conta Tomás de Celano; ou seja, que “quando [Francisco] falava Belém balia como uma ovelha, enchendo toda a boca com aquele som, mas ainda mais de ternura”. [5] A referência à ovelha evoca o cordeiro sacrificado.
O presépio de Greccio, parco em elementos, mas de extraordinária riqueza espiritual, oferece, portanto, uma profunda simbologia eucarística. Se, de fato, Belém é a “casa do pão”, o Menino que ali nasce é “o pão vivo que desceu do céu” [6] e cada igreja é Belém, cada altar um presépio: “um presépio eucarístico” (p. 39).
E “onde antigamente os animais se alimentavam de feno, lá os homens do futuro para a salvação da alma e do corpo, poderão comer a carne do cordeiro imaculado e sem defeito, Jesus Cristo nosso Senhor”. [7]
Em três pontos do mesmo capítulo (2,7.12.16) Lucas recorda a manjedoura, porque é um sinal, como a cruz. E “não temos outro sinal tão grande e evidente do nascimento de Cristo quanto o seu corpo e sangue que cotidianamente consumamos no santo altar. E vemos aquele que nasceu da Virgem sacrificado por nós todos os dias”. [8]
Nesse presépio eucarístico, os sinais do primeiro estão no segundo. De fato, assim como Maria envolveu o menino em panos e o colocou na manjedoura, as pias mulheres o envolverão num sudário e o colocarão no sepulcro; e nós o vemos envolto sob a formas do pão e do vinho, que lembram o feno. E assim como o feno teria curado os animais que o comiam e as mulheres em trabalho de parto que o colocavam sobre a barriga, o pão eucarístico também cura.
Manjedoura-sepulcro-eucaristia
No belíssimo Ícone de natividade, de Andrei Rublëv, a manjedoura onde é colocado o bebê enfaixado tem o formato de um sepulcro. E na Disputa do Sacramento, de Rafael, nos Museus Vaticanos, a hóstia fechada no ostensório acima do altar tem impressa uma cruz, perfeitamente alinhada verticalmente com a Trindade na área supra celeste. A salvação prometida por Deus no Protoevangelho do Gênese, começa com o Natal de Jesus.
Na noite santa, um exército de anjos cantou a paz que o Menino veio trazer aos homens que a desejam e desejam levá-la onde há guerras e ódio.
A paz, é o outro significado do presépio de Francisco, justamente quando aconteciam as guerras e as cruzadas, organizadas para arrancar os lugares sagrados das mãos dos infiéis. Mas que diferença da vontade de Francisco! As guerras usavam as armas, Francisco o amor e a paz. Os papas eram severos com aqueles que não participavam; mas Francisco desobedeceu às diretivas papais: não pregou nenhuma, nem fez propaganda, nem mesmo participou delas. A sua foi uma “rejeição silenciosa e decisiva da violência em nome de Deus” (p. 52). Aliás, ele proibiu todas as armas, mesmo aquelas da palavra usada para converter.
Ele também foi para o Oriente: não contra, mas entre os infiéis. Queria que se evitassem brigas e polêmicas, e apenas recomendava o exemplo, que necessariamente nasce da fé que nele resplandece. Ele nunca expressou uma opinião negativa, muito menos insultos, sobre a religião muçulmana. Na verdade, “ele ficou tão impressionado com a oração dos muezins que foi exemplificada naquela lembrança a oração dos cristãos quando louvavam a Deus” (p. 63).
Na sua mensagem de paz, o presépio de Francisco opõe-se, portanto, à cruzada. Compreende-se então – diz Chiara Frugoni – porque “era necessário cancelar a mensagem do sermão [de Natal], demasiado perturbadora para uma Igreja em armas, para uma ordem que havia aprovado uma nova regra, que efetivamente havia abolido a forma revolucionária de Francisco de se relacionar com que acreditava numa outra religião” (p. 108).
A esperança
E o presépio mudou: já não se inspirava mais em Vida, de Tomás de Celano, mas sim na Legenda maior, de São Boaventura, a única biografia oficial. E Chiara Frugoni examina pontualmente essa mudança, ligada às polêmicas internas à ordem franciscana.
Hoje, quando o presépio, enfeitado com mil detalhes, perdeu todo o seu significado espiritual, Francisco nos lembra que cada Natal é o nascimento de Cristo nos corações daqueles que se esqueceram do amor e da paz. É a esperança de quem vive na necessidade, a mesma em que se encontrava a Sagrada Família.
Convida-nos ao respeito pelas outras religiões, porque mesmo nelas e nos seus livros está o nome de Deus, que todos devem louvar e glorificar. O comportamento que recomendava aos irmãos, o único digno de fé, pedia respeito mútuo. Declarar ser cristãos significava (significa) ser portador da paz.
Todo o ensinamento de Francisco é entendido na visão distinta de Deus em relação aos seus contemporâneos que pregavam a guerra, enquanto Deus é de todos e criador de tudo; e ele é Deus de paz e de misericórdia. O boi e o jumento, simbolizando judeus e infiéis, estão ao seu redor no presépio. Uma mensagem que o Cântico das criaturas sela poeticamente e devotamente.
Notas
[1] Chiara Frugoni, Vita di un uomo: Francesco d’Assisi; Einaudi, Turim 1995; 111 ss.
[2] Tomás de Celano, Vida do Beato Francisco, XXX, 84, 8; em Cláudio Leonardi (org.). La letteratura francescana: le vite antiche di san Francesco, vol. II; Fondazione Lorenzo Valla / Mondadori, Milão 2005, p. 163.
[3] Ibidem, XXX, 86, 7.
[4] Ibidem, XXX, 86, 8.
[5] Ibidem, XXX, 86, 4.
[6] João 6,41.
[7] Ibidem, XXX, 87, 5.
[8] Aelredo de Rievaulx, citado por Chiara Frugoni, p. 39.
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