21 Dezembro 2022
Sou um construtor de presépios; além disso, nestes dias de Advento sou o Homem do Presépio, o único que a família e todo o bairro reconhecem como artífice autorizado a realizar a grande obra, a construção de um teatro de inspiração divina. Sou um homem de pouca fé e parca virtude, não deveria ser assim, não deveria ter esse afã presepial, mas, pensando bem, nem é minha paixão, mas uma forma de compulsão, uma necessidade que ao o olhar pálido do solstício de inverno se torna urgente.
O comentário é de Maurizio Maggiani, publicado por La Stampa, 19-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este ano lancei as bases para a Imaculada Conceição, que aqui entre nós é mais que a veneração a uma Nossa Senhora concebida fora da humanidade é a participação concupiscente na Feira do Torrone, e einsteinianamente terminei a esfera do céu estrelado só ontem à noite, todo esse tempo me alimentei com parcimônia, dormi com moderação monástica e interagi o mínimo possível com o mundo, algo como um retiro espiritual, onde meu espírito resumiu tudo o que passou por minhas mãos, mãos delicadas de um construtor de presépios.
O presépio, o meu presépio, está atualmente guardado em sete caixas de madeira, estojos velhos e confiáveis herdados de um vinicultor falido, para as figuras e os cenários e duas grandes bolsas de lona para os céus e as terras. Nem sempre foi assim, o meu presépio foi construído ao longo das décadas, uma figura por ano, figuras muito elaboradas ao estilo Benevento, terracota e papel machê pintadas, compradas não sem algum sacrifício ano após ano numa loja sugestivamente infiltrada nos meandros genoveses de Soziglia.
Todas menos o menino, um menino Jesus rechonchudo de gesso pintado e já marcado por inúmeros acidentes, que surrupiei de minha casa natal no dia em que parti por meu caminho, carregando uma grande sacola de lona militar abarrotada com meus pertences; eu tinha dezoito anos, um trabalho e uma denúncia por sediciosas agitações políticas, estava prestes a fazer a revolução e o meu primeiro presépio. A partir de então, na minha vida aconteceram doze mudanças, não poucas dessas parecidas com êxodos e naufrágios, deixei muito para trás, às vezes quase tudo, mas na grande sacola sempre havia uma maneira de colocar em segurança o meu presépio, até alcançar os confortos de minha maturidade tardia, quando minhas últimas mudanças se tornaram mais pacatas e muito mais volumosas, a grande sacola militar um objeto de culto memorial e o presépio uma bagagem de tamanho considerável.
Naturalmente, eu me perguntei mais de uma vez sobre a natureza dessa minha compulsão ao presépio.
Sim, claro, houve a minha infância e naquela época de restrições os dias da natividade eram os únicos de fartura e esquecimento, a família, uma grande família de quatro gerações reunidas à mesa, chegava depois de um ano de labuta cansativa; mas no final o prémio era grande, havia fartura de comidas festivas e cheiros bons por todo o lado e o fogão aceso dia e noite, havia presentes, havia até um enfeite novo de vidro colorido para o pinheiro cultivado num tonel, e havia o presépio. E havia meu pai que no primeiro domingo bom me pegava e me levava com ele em busca de grama e cascalho fino de rio, e à noite havia montanhas e vales para pintar no papel pardo, o papel de seda para encher de estrelas, casas e moinhos e pousadas a serem recortados em papelão; e, por fim, a caixa das estatuetas, figuras proletárias de gesso que provavelmente tinham visto meu pai criança antes de mim, a doce e severa disciplina de tocá-las e colocá-las em seu lugar sem ofender seu delicado material. Claro que tudo isso permanece, pelo que mais da infância valeria a pena ser marcado, e poder lembrar isso para sempre é um porto seguro, e lembrar do pai por sua exceção à alteridade cotidiana é um bom motivo para finalmente poder amá-lo.
Mas isso não me basta, se assim fosse não estaria ainda na rua, cambaleante mas ainda em meu caminho, teria parado há muito tempo aninhado nos bons velhos tempos; não, um construtor de presépios não vive dos fantasmas dos natais passados, mas olha para frente, abre suas caixas e vive do que suas mãos farão acontecer. E agora olho para a obra acabada, pela enésima vez sempre a mesma e sempre diferente, sempre a mesma história cada vez disciplinada numa nova variação, uma personagem a mais, um céu mais claro, uma cordilheira de montanhas mais ousada, menos desertos e mais bosques, menos bosques e mais desertos, e sei por que isso foi feito, porque tomei uma semana do que me resta de minha única e irrepetível vida e a dei de presente a mim mesmo. Porque esse pequeno teatrinho comovente é a única maneira que tenho de consertar todas as coisas, um mundo inteiro sem a desordem do mundo.
Há uma perspectiva, seu fogo está ali em um cantinho adormecido sossegado sobre um feixe de palha, é carregado de mistério, seu pai José sente isso e talvez não entenda e fica um pouco de lado, mas sua mãe Maria, ela sabe tudo e só pensa em embalá-lo; é um mistério que não assusta e nem causa a menor angústia, por isso os pastores se colocaram em caminho a passo seguro, os cordeiros aos ombros, os rebanhos bem alimentados, o ferreiro bate com o martelo para forjar um sino que vai ressoar, o padeiro acaba de desenfornar um cesto de pães que colocou na estrada para quem tiver fome pegar, o carpinteiro prepara uma cadeira para quem quiser descansar um pouco, o homem do mau olhado carregado de chifres e amuletos servindo de vigia no alto da montanha para afastar a má sorte caso ela tente passar no meio da confusão. Até o mendigo com a sua tigela está a caminho, e sabe que vai encontrar quem vai colocar algo nela, os músicos já começaram a tocar as suas velhas melodias, nada como a música para criar um ar de mistério; claro, há também os ricaços, ainda longe, vestidos de ouro e seda, mas estão a caminho para ir se despojar diante de um recém-nascido seminu.
Tudo está imóvel em seu movimento interior, tudo está equilibrado por um bom motivo. Seria apenas um exercício patético se eu não soubesse que aquela criancinha está ali justamente para subverter toda ordem estabelecida, para gerar grandes desordens nos poderes constituídos; circulará pelas ruas da Galileia anunciando a maior das revoluções, que não será em data a definir senão amanhã, tão iminente que nem vale a pena enterrar o próprio pai, tão ardente que não admite nada que cause empecilho ou que seja supérfluo para a sua realização, exceto uma muda de roupa, algum dinheiro para comprar comida. Seria apenas patético se o mundo perfeito que construí e que me obstino em reconstruir a cada inverno como se nunca tivesse acontecido antes fosse apenas o inefável instante de imobilidade que anuncia a Grande Revolta.
Tenho pouca fé e esse pouco reservo para isso. Por isso, se eu não defendesse o meu presépio das injúrias da razoabilidade, se não me dedicasse a ele com a convicção da inadiável necessidade, não passaria de uma palhaçada igual ao sistema do qual me defende. Por isso, esta manhã, ouvindo o primeiro noticiário, abstive-me de pegar tudo e jogar fora.
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Eu, eterno construtor de presépios porque aguardo a revolução - Instituto Humanitas Unisinos - IHU