Por uma nova tradução pastoral do cristianismo. Reflexões para o Tempo do Advento

Foto: Felipe Linares | Cathopic

Por: Patricia Fachin | 12 Dezembro 2022

Há três anos, na apresentação de seus votos natalícios à Cúria Romana no Tempo do Advento, o Papa Francisco citou um trecho da última entrevista do cardeal Carlo Maria Martini, concedida à jornalista Federica Radice Fossati e ao seu coirmão Georg Sporschill poucos dias antes de morrer, em 31 de agosto de 2012: "A Igreja ficou atrasada duzentos anos. Como é possível que não se alvorace? Temos medo? Medo, em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. (...) Só o amor vence o cansaço".

Com votos de que "o amor divino que inspira, dirige e corrige a mudança e vence o medo humano de deixar o 'seguro' para se lançar no 'mistério'", o pontífice exortou a Cúria – mas também todos nós, a Igreja – a "viver a integralidade do Evangelho" neste período de mudança de época

Aquelas palavras do cardeal Martini continuam ressoando dentro da Igreja, dez anos depois de sua morte, e foram igualmente retomadas pelo teólogo italiano Armando Matteo, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Urbaniana e subsecretário adjunto da Congregação para Doutrina da , na sua coluna “Opção Francisco”, para a revista Vita Pastorale. Em um dos artigos da série, publicado em agosto de 2022, e reproduzido na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele observa que a entrevista do cardeal italiano é um "verdadeiro testemunho de amor" de alguém que "se entregou incessantemente, entregando toda a sua energia física, intelectual e espiritual" à Igreja, e dirige um convite "a todos os seus irmãos e irmãs na fé, a um renovado amor pela Igreja".

Inspirado por este convite, Matteo recordou o tom da exortação do Papa Francisco à Cúria Romana em 2019, convidando seus irmãos a refletirem sobre o convite de Martini: "Um convite a se perguntar quanto amor traz para a Igreja, que sonho tem para a Igreja, que esperança tem para a Igreja, que empenho pretende colocar em ação para a Igreja". 

 

Não é possível refletir sobre o futuro da Igreja sem considerar, como o próprio teólogo registra, seu passado e seu presente. Atendo-se exclusivamente ao momento atual, ele destaca, como primeira constatação, a mesma de Martini: "O estado de cansaço em que se encontra hoje a comunidade dos crentes". Diante deste cenário, assegura, "são necessários crentes mais livres e ousados, capazes de reativar a dinâmica do amor para com os seus contemporâneos, a única que pode encorajar e sustentar a busca de novos caminhos para anunciar a beleza da fé na era do bem-estar generalizado".

Segundo Matteo, o caminho para a futuro da Igreja pode ser encontrado em três sugestões do cardeal Martini:

1. Conversão pessoal e comunitária.
2. A centralização de toda experiência cristã na Palavra de Deus.
3. Colocar o tema da cura no centro da visão da ação sacramental da Igreja. 

Ao vislumbrar o futuro, disse, o cardeal Martini pensava "na Igreja que virá, na Igreja que os fiéis de hoje, superando o sentimento de desconfiança e cansaço que muitas vezes os dominam, desejarão dar vida".

"A Igreja que virá" foi justamente o mote do artigo publicado por Matteo em 31 de agosto deste ano e reproduzido na página eletrônica do IHU dois dias depois.

O ponto ao qual temos de nos ater, orienta, "é a Igreja que virá: ou seja, a Igreja que queremos deixar em legado às gerações que agora estão vindo ao mundo". Essa Igreja, assegura, "depende agora da implementação daquela 'mudança de mentalidade pastoral' de que Francisco fala a toda hora: é a mudança que visa transformar a presença dos crentes neste tempo e nestas terras de bem-estar, para que cada seu gesto possa ser uma oportunidade para levar todos a Jesus e Jesus a todos. Se esse objetivo estiver finalmente claro para nós, o caminho a seguir junto com os homens e as mulheres de hoje se abrirá diante de nós sem problemas".

Para isso, sugere, é preciso voltar ao diagnóstico de Martini sobre a mudança época: "O ponto é precisamente o fato de que a comunidade dos crentes tem dificuldade para tomar consciência daquela 'mudança de época' (nas palavras de Francisco) que o justamente advento do bem-estar – em todas as nuances que tal termo evoca – causou na vida concreta de nós ocidentais".

Ele esclarece:

"Temos vidas mais longas, mais confortáveis, com muita saúde e muitas oportunidades; usufruímos de uma liberdade sem precedentes e de possibilidades de viagem e de comunicações que nossos pais teriam tido dificuldade em pensar como realmente possíveis. Certamente, em tal inédito cenário antropológico de bem-estar há também uma parcela abundante de ambivalência e ambiguidade e, de fato, justamente por isso, seria muito útil uma religião como aquela cristã que sempre lembra aquele núcleo de verdade que permite a todo ser humano salvaguardar a sua própria humanidade." 

Nesta sociedade do bem-estar, ressalta, "a questão é (...) que essa sempre muito eficaz recordação do Evangelho precisa ser renovada ao longo da história". É como se nos perguntasse: Estamos renovando e vivendo segundo o Evangelho, apesar de estarmos cercados por todo o bem-estar que nos rodeia? "Onde isso não acontece, por parte dos crentes, e se insiste em utilizar modalidades de anúncio do Evangelho próprias de outros contextos antropológicos, imediatamente se precipita naquela situação de cansaço e desânimo de que Martini falava acima", adverte. 

 

Para que o Evangelho e sua mensagem não virem cinzas, mas, antes, "brasas vivas e ardentes", assinala, "é tempo de trazer à luz esse fogo e colocá-lo à disposição de todos. Eis a verdadeira questão, segundo Martini: 'Como livrar as brasas das cinzas para revigorar a chama do amor?'"

Uma das vias, garante, é a "transmissão da fé", ponto de outro artigo, publicado em 24 de setembro de 2022. A questão, lembra, é que a própria "comunidade crente não é mais capaz de fazer novos cristãos e novas cristãs". A razão, continua Matteo, é "simplesmente porque pressupõe a transmissão da fé aos representantes das novas gerações como ativa dentro das famílias cristãs", o que já não é mais uma realidade porque "se produziu uma ruptura na transmissão geracional da fé cristã no povo católico". Sobre isso, lembra, "o Papa Francisco diz claramente: hoje há muitos pais que não batizam mais seus filhos, aqueles que não ensinam a rezar e aqueles que simplesmente não se identificam mais com a tradição católica". Além disso, lamenta, a comunidade cristã "continua fazendo o que sempre fez, com ajustes mais ou menos pequenos". 

Neste contexto de desafio pastoral de anúncio da fé cristã e do Evangelho de Cristo, propõe, "é hora de fazer uma nova tradução pastoral do cristianismo".

É exatamente sobre este ponto, "fazer uma nova tradução pastoral do cristianismo", diz Matteo no nono artigo da série, que "Francisco nos exorta a não termos medo de mudar: a não termos medo de mudar a nossa ação pastoral e a não nos fixarmos loucamente naquela ação pastoral que foi muito eficaz para as gerações passadas".

Para ilustrar a posição do Papa Francisco, conhecida popularmente como Opção Francisco, Matteo recorreu a uma frase atribuída a Einstein: “'É uma loucura imaginar obter resultados diferentes fazendo sempre as mesmas coisas.' Pois bem, parece-me que devo registrar dolorosamente uma espécie de 'loucura pastoral' em curso nas nossas comunidades."

Para ilustrar ainda mais claramente o ponto ao qual o pontífice se refere, Matteo recorre a uma verdade que todos somos capazes de reconhecer: "Mesmo estando perfeitamente conscientes dos resultados falimentares de uma certa forma de organizar a iniciação cristã dos nossos pequenos, por exemplo, muitos párocos e muitíssimas catequistas continuam levando em frente exatamente o mesmo modo de organizar as coisas. Não é verdade, talvez, que todos sabem o que acontece com as crianças da primeira comunhão no domingo seguinte à celebração desse sacramento? Simplesmente desaparecem. Não é verdade também que todos sabem ainda o que acontece com os jovens e as jovens da crisma no domingo seguinte ao dia de sua confirmação? Simplesmente esquecem o endereço da paróquia. No entanto, nada muda em relação à preparação oferecida para a primeira comunhão e para a crisma. E isso é o que eu chamo de 'loucura pastoral'". 

 

É desta "loucura pastoral", reitera, que o Papa Francisco "nos convida a nos distanciar".

A evangelização necessária, afirma, "consiste precisamente em fazer surgir um desejo de Jesus no coração dos homens e das mulheres contemporâneos a nós, que são muito diferentes de seus genitores e ainda mais de seus avós". Assumir a Opção Francisco, portanto, implica "colocar em ação um agir pastoral eficaz", isto é, "trabalhar para que o testemunho dos fiéis mostre a 'palatabilidade' do Evangelho para uma vida bem-sucedida e completa exatamente para os homens e as mulheres de hoje".

E conclui:

"Francisco nos exorta (...) a não termos medo de mudar: a não termos medo de mudar a nossa ação pastoral, a não nos fixarmos loucamente naquela ação pastoral que foi muito eficaz para as gerações passadas, a encontrar gestos e estilo de uma presença cristã que diga aos nossos contemporâneos – adultos ou jovens – que não há nada de mais desejável do que se encontrar com Jesus e se apaixonar por ele."

Que neste Advento possamos, como corpo de Cristo, encontrar novas formas para fazer nossas as palavras que serão proclamadas por Jesus no Evangelho deste Terceiro Domingo do Advento – o da alegria:

"Ide anunciar a João o que estais vendo e ouvindo: os cegos veem e os paralíticos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres lhes é anunciado a boa notícia; e feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim!" 

 

Série de artigos publicados por Armando Matteo e reproduzidos na página do IHU: 

1. É tempo de escolher (Parte 1). Artigo de Armando Matteo

2. Uma mudança de época. Parte 2. Artigo de Armando Matteo

3. Uma cultura inédita. ‘Uma nova espécie do humano’. Artigo de Armando Matteo

4. A rapidez da existência. Artigo de Armando Matteo

5. Adoração da juventude. Artigo de Armando Matteo

6. No altar da egolatria. Artigo de Armando Matteo

7. O Fim da Cristandade

9. Loucura pastoral. Artigo de Armando Matteo

 

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