A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 1º Domingo de Natal, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Lucas 2,41-52.
“E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52),
Toda família é raiz, escola, mestra, origem, destino, referência, refúgio, desafio, criatividade... A família tem a missão de proteger e ativar a semente de grandeza que pulsa no interior de todo ser humano: o amor, os valores, o conhecimento, a liberdade, os sonhos... Quando a semente humana não recebe os nutrientes emocionais, intelectuais e espirituais que necessita, a vida se torna estéril, o sentido se esvazia e a felicidade perde o vigor.
“Cada família é um mundo” e dentro desse pequeno “mundo” a vida se expande em diferentes direções, fazendo emergir os traços originais de cada um, os gestos, os pensamentos, as atitudes, a personalidade, a cultura... Mas, é ali, entre os mais próximos e íntimos, que cada pessoa se faz mais humana; é ali onde cada um é reconhecido em sua identidade. Por isso, ser-estar-pertencer a uma família são dimensões que não podem estar separadas.
Jesus fez a experiência de pertencer a uma família concreta; Ele teve uma família e, apaixonado e profundo como era, viveu intensamente neste ambiente instigante e humanizador. Tal ambiente vai determinar sua futura missão.
Sua permanência em Nazaré foi um longo aprendizado. Jesus foi um aprendiz da vida e foi no espaço familiar que Ele encontrou o terreno propício para ativar os seus recursos internos, sua imaginação fértil, sua criatividade encantadora, suas relações oblativas. Foi no pequeno mundo em Nazaré que Jesus aprendeu a ter um coração universal.
Quando falamos da infância de Jesus, muitas vezes nos limitamos a afirmar que temos pouquíssimo relatos sobre ela nos evangelhos. Mas, sob outra perspectiva, podemos afirmar que temos muitíssimos elementos, revelados pelo próprio Jesus; de fato, quem modelou a natureza humana de Jesus, foi a família de Nazaré.
Lendo o Evangelho como um todo podemos encontrar, com facilidade, uma descrição muito aproximada de quem era Jesus no seu espaço familiar. Quem, senão José, poderia ensinar a Jesus tudo o que conhecia sobre o trabalho, o campo, as colheitas, o tempo, as aves e o mundo que os rodeava? Quem, senão Maria, poderia ensinar Jesus a tratar as pessoas, a servir o seu próximo, a olhar, a falar, a sorrir...? Ela, certamente, lhe ensinou muitas coisas da vida doméstica, conforme percebemos os exemplos que o Mestre usou em seus ensinamentos: a imagem do candil, do fermento na massa, do remendo novo em roupa velha...
Em cada gesto de Jesus, revelou-se um ensinamento do Pai e de seus pais; em cada parábola havia uma expressão da natureza e da terra com o selo de José, e uma mensagem espiritual inspirada a partir do alto. Em cada cura que Jesus realizou havia um modo e uma sensibilidade de tratar o enfermo, o desvalido, herdados da sensibilidade feminina de Maria; e, à hora de orar havia um hábito alimentado na casa de seus pais, fiéis cumpridores da lei mosaica e abertos à novidade e ao mistério que seu filho Jesus deixou transparecer. Enfim, Jesus recebeu de sua família um modo de ser e de viver, de acordo com a sociedade de seu tempo.
“E Jesus crescia em sabedoria...” Sabedoria é conhecimento global, por meio do coração e de todos os sentidos, que permite “saborear” tudo em profundidade; é experiência constante, não ocasional, que abrange a vida inteira, de uma nova identidade, escondida no interior, mais rica e mais verdadeira, mais estável e positiva; é contemplação e memória das coisas que permanecem, gosto pela beleza e olhar poético, conversão e formação contínuas, harmonia de significados e de vivências existenciais, humorismo e otimismo, sentido do mistério e do eterno, sabor do divino e simpatia pelo humano...
Sabedoria, sobretudo, é unidade de vida e síntese; significa ter chegado ao coração da vida, onde está o tesouro de cada ser humano e onde se concentra o que é mais nobre e original de cada um.
Em Nazaré, Jesus não fez coisas extraordinárias; era um lugar onde todos se conheciam e foi ali, nos costumes e na vida diária deste lugar, onde Ele descobriu a presença do Pai: ali o menino crescia em idade, em sabedoria e em experiência de Deus. Nazaré é o tempo do crescimento e da maturação humana.
Jesus pregou o que viveu no espaço familiar. Se pregou o amor, a entrega, o serviço, a solicitude pelo outro, quer dizer que primeiramente Ele viveu isso. O espaço familiar foi o seu primeiro campo de aprendizagem como todo ser humano. Com a presença inspiradora e ajuda de seus pais, Jesus foi alargando seus horizontes e discernindo seu caminho e sua missão. Seu lar em Nazaré foi rampa de lançamento para sua vida pública.
Como aprendiz da vida, foi ali, na casa e na oficina de Nazaré que Jesus se exercitou na Redenção. Não lhe foi difícil passar de “artesão de coisas” a “artesão da humanidade”, passar da “oficina de Nazaré” à “oficina do Evangelho”.
Custa-nos muito descobrir a “espiritualidade da vida cotidiana”, a vida de cada dia nos parece sem sentido, sem muito destaque e sem muitos fatos extraordinários; temos ainda muito que aprender da vida cotidiana do artesão de Nazaré.
Na família de Nazaré nos inspiramos para viver também uma presença inspiradora em nossa existência cotidiana. Nazaré se revela também como espaço e tempo do “coração”. Por isso, Maria “conservava no coração todas estas coisas”. “Maria guardava tudo isto e meditava-o em seu coração” (Lc. 2,19).
Trata-se de um contemplar e meditar vivencial, realizado no centro afetivo-emocional de sua personalidade, simbolizado no termo “coração”. Na língua portuguesa a palavra “coração” designa a sede da afetividade, dos sentimentos... Ao passo que na cultura oriental e bíblica, o “coração” é o lugar da interioridade, ou seja, designa uma faculdade espiritual pela qual o ser humano pode entrar em contato com Deus.
O “coração” representa o núcleo mais íntimo e mais secreto do nosso ser; ali é o lugar das “manifestações vitais”; trata-se de um “lugar” e um princípio de direção que não cessa de nos impulsionar, a partir do nosso interior, para nossa realização pessoal e transpessoal. Podemos considerá-lo também a raiz e o ápice da nossa existência onde se elaboram as concepções mais finas do nosso espírito.
Meditar um assunto em nosso coração significa “auscultar” as “moções interiores”, significa ouvir o que o coração nos tem a dizer. Quando auscultamos nosso coração nos deparamos com algo decisivo que fará toda diferença para nossa existência. Pois, por “coração” entendemos o núcleo central da nossa personalidade humana, o ponto exato onde se encontram e se reúnem a inteligência e todas as potencialidades dinâmicas e vitais, as energias inconscientes e simbólicas do nosso ser profundo.
Contemplar seu espaço familiar: é ambiente instigante, provocativo, inspirador... Onde todos se sentem livres para expressar sua identidade e originalidade? Ali educa-se para viver uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?
- Em que dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré?