Por: MpvM | 28 Dezembro 2018
"Aquela que nós chamamos “Sagrada Família” não era uma família comum: Jesus tinha laços de sangue com sua mãe; mas com José, seu pai segundo a genealogia de Davi, tinha apenas uma filiação por leis humanas. É muito bonito ver José assumir a paternidade legal e amorosa de Jesus (pois ele se comoveu como um pai biológico se comoveria), mesmo sem entender bem o que se passava com esse Filho misterioso! Por outro lado, José era esposo de Maria mas ela permanecia virgem. Portanto se tratava de uma família singular, com uma vocação permeada de mistério!"
A reflexão é de Tereza Maria Pompéia Cavalcanti, graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1966), em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Louvaina, (1971) e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2003), é mestre e doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (1983 e 1991, respectivamente). Atualmente é prestadora de serviços do Centro de Estudos Bíblicos e professora assistente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Pastoral, atuando principalmente nos seguintes temas: pastoral popular, bíblia, espiritualidade, mulher e comunidades eclesiais de base.
Referências bíblicas
1ª Leitura: Ecle 3,3-7.14-17a
Salmo: Sl 127 (128)
2ª Leitura: Col 3,12-21
Evangelho: Lc 2,41-52
Festa da Sagrada Família. Nestes tempos de tantas mudanças e desafios, o tema da família nos interpela. E as leituras de hoje também.
No Livro do Eclesiástico temos os conselhos de um sábio. A Sabedoria na Bíblia inclui vários livros, onde encontramos os ensinamentos dos mais velhos, os que têm experiência de vida e dão seus conselhos aos mais moços. Pais, mães e avós, tentam guiar os passos dos seus filhos, netos e herdeiros na fé.
Na primeira leitura (Sir 3,3-7.14-17a) de hoje, o autor está desenvolvendo o 4º Mandamento do Decálogo: “Honra teu pai e tua mãe; assim prolongarás tua vida na terra que o Senhor teu Deus de te dará” (Ex 20,12). Notamos que a palavra honra e o verbo honrar se repetem muitas vezes no nosso texto: “O Senhor dá ao pai honra diante de seus filhos e afirma a autoridade da mãe sobre a prole. Quem honra seu pai expia seus pecados, quem respeita sua mãe acumula tesouros (Eclo 3,2-3).
Observamos também que o autor fala de pai e mãe, então não exclui a mulher!
Desdobrando ainda mais o 4º Mandamento, o Eclesiástico recomenda que os filhos não abandonem os pais na velhice e, ainda que eles percam a lucidez, devem ser respeitados e cuidados (vv. 12-15). Pois o verbo “honrar” significa também cuidar e sustentar na necessidade. Por isso Jesus vai interpelar os fariseus e doutores da Lei que permitiam que o filho consagrasse ao Templo a ajuda que seria devida a seus pais na velhice (Mt 15,3-6).
Estes ensinamentos são comuns a todas as filosofias e religiões: respeitar os pais e os mais velhos é uma norma ética universal e nisto a Bíblia não é uma exceção.
Já o Salmo de Meditação (Sl 127/128) louva o homem justo que por ser fiel recebe a bênção para sua família. Aqui são tomadas imagens da vida do camponês: ele come do fruto de seu trabalho, sua esposa é comparada a uma vinha fértil e os filhos aos ramos de oliveira. A felicidade transparece na família unida em torno da mesa e na paz em Jerusalém. Esse louvor simples, que fala do cotidiano, traz para hoje dois aspectos significativos: a mesa farta em família e a cidade em paz.
É o caso de nos perguntarmos: pode haver paz na cidade quando não há pão na mesa das famílias?
A segunda leitura (Col 3,12-21) parece dirigir-se a uma comunidade em conflito. Paulo recomenda os sentimentos de compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência e perdão. Ele nos remete ao Pai Nosso quando diz: “Assim como o Senhor os perdoou, façam vocês o mesmo” (Col 3,13). Coloca acima de tudo o amor e recomenda a paz nos corações, o aconselhamento mútuo e a ação de graças a Deus. Isto nos lembra as recomendações do Papa Francisco para a prática do perdão em família, especialmente na época do Natal...
O texto da epístola continua com algumas recomendações para o cotidiano das famílias no contexto do império romano: as esposas devem obedecer a seus maridos, estes devem amá-las e não ser grosseiros com elas; os filhos devem obedecer aos pais e estes não devem irritar os filhos, para que eles não desanimem. A carta continua recomendando que os escravos obedeçam a seus senhores com dedicação, e termina essa parte dizendo que para Deus não há distinção de pessoas.
Vejamos se a leitura do Evangelho de hoje nos ajudará a relativizar essas recomendações.
O episódio de Jesus no Templo entre os doutores só se encontra no Evangelho de Lucas (Lc 2,41-52). Como no final do relato é dito que a mãe de Jesus “guardava todas essas coisas em seu coração” (Lc 2,51), podemos supor que Maria esteve na origem dessa tradição.
O texto começa dizendo que “Os pais de Jesus viajavam a Jerusalém todos os anos para a festa da Páscoa” (Lc 2,41). Isto significa que a família de Jesus seguia fielmente a tradição de Israel. Já antes vimos que José e Maria viajaram de Nazaré a Belém para cumprir um decreto do imperador romano. Era uma família pobre, que tinha que se deslocar a fim de cumprir as leis do estado e da religião. Assim como muitas famílias dos diferentes povos de hoje em dia, tinham a experiência da migração e da peregrinação.
Quando Jesus chegou aos doze anos – data em que os judeus homens se tornavam “filhos do Mandamento” (Bar Mitzvah) isto é, responsáveis por seus atos – ele foi com os pais a Jerusalém cumprir o preceito. A surpresa para os pais é que, na volta, Jesus não se encontrava nem com os parentes nem com os conhecidos. Podemos imaginar a angústia de José e Maria ao procura-lo por 3 dias sem resultado. Foram encontra-lo no Templo, diz o texto, “sentado em meio aos doutores, escutando-os e fazendo-lhes perguntas” (v.46). Lucas aproveita para observar que os tais doutores ficaram maravilhados com a inteligência do rapaz.
Ao contrário, os sentimentos de seus pais eram de grande aflição e espanto. Então Maria toma a palavra, eu diria, com indignação: “Filho, por que fizeste isso conosco? Olha que teu pai e eu estávamos angustiados te procurando!” (v. 48). Ela se comporta como mãe aflita e toma a iniciativa que, naquela sociedade, deveria ser a do pai, considerado autoridade e Lei diante dos filhos. Maria se expressa, fala dos sentimentos dela própria e de José. Quando a questão é a vida e o cuidado com os filhos, a mulher toma a dianteira. É ela que sente primeiro a FALTA. Assim também será Maria que vai dizer a Jesus que faltava vinho nas bodas de Caná (Jo 2,1-12).
Por trás dessa atitude de Maria quantas mulheres estarão manifestando suas queixas, seus protestos pela falta de seus filhos perdidos, pela falta de alimentos, de justiça e de paz...
Mas a resposta de Jesus é surpreendente: “Por que me procuravam? Não sabiam que eu devo estar ocupado com as coisas de meu Pai?” (v.49). E eu pergunto: E será que eles deveriam saber?
As palavras de Jesus contrastam com as de sua mãe, pois ela tinha dito “teu pai e eu...”. Jesus chama “meu Pai” somente Aquele que é Deus, Aquele que o enviou. E o texto continua: “Mas eles não compreenderam o que ele lhes tinha dito” (v. 50). Parece que naquele momento se cortou um fio, ou foi dado um salto: Jesus teria uma missão a cumprir que ia muito além de sua família.
Apesar disso, o menino volta com seus pais a Nazaré e permanece obediente a eles, crescendo “em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e das pessoas” (v. 52).
Para melhor proveito do texto, coloquemos algumas questões.
Aquela que nós chamamos “Sagrada Família” não era uma família comum: Jesus tinha laços de sangue com sua mãe; mas com José, seu pai segundo a genealogia de Davi, tinha apenas uma filiação por leis humanas. É muito bonito ver José assumir a paternidade legal e amorosa de Jesus (pois ele se comoveu como um pai biológico se comoveria), mesmo sem entender bem o que se passava com esse Filho misterioso! Por outro lado, José era esposo de Maria mas ela permanecia virgem. Portanto se tratava de uma família singular, com uma vocação permeada de mistério!
Jesus mais tarde vai separar-se de sua família sanguínea quando se recusa a deixar de lado sua comunidade de discípulos para ir atender ao chamado dos parentes que ficavam “lá fora” (Mc 3,31-35). “Quem é minha mãe e meus irmãos? E olhando em volta para os que estavam sentados ao seu redor, Jesus disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Pois quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,33-35). Assim, Jesus inaugura outros laços de família, que são aqueles que nos fazem todos filhos e filhas de Deus, responsáveis pela construção do Reino.
Mas há um momento incomparável na vida de Jesus no qual ele funda uma nova família: é na iminência de sua morte na cruz: “Quando Jesus viu sua mãe e, ao lado dela o discípulo que ele amava, disse á sua mãe: `Mulher, eis aí o seu filho`. Depois disse ao discípulo: `´Eis aí a sua mãe`. E desde essa hora o discípulo a recebeu em casa”. (Jo 19,26-27). Ali foi fundada a primeira célula da Igreja, quando discípulos e discípulas se acolhem mutuamente como em uma família, partilhando o mesmo teto e o mesmo amor.
A nova família dos discípulos e discípulas de Jesus somos todos os que nos reunimos em nossas casas ou em nossas comunidades, unidos por uma mesma fé, um mesmo Espírito e um amor que ultrapassa todos os laços sanguíneos, todas as diferenças físicas e culturais e todo aparato legal.
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Festa da Sagrada Família - Ano C - Uma família singular, com uma vocação permeada de mistério - Instituto Humanitas Unisinos - IHU