24 Outubro 2023
"Teilhard de Chardin, mais ou menos nos mesmos anos do teólogo russo e com a mesma preocupação, pronunciou uma frase de igual amargo sarcasmo: “Não se pode escalar uma montanha sem contornar um abismo”: palavras proféticas, porque, efetivamente, hoje, a humanidade está contornando aquele abismo; porque corre o risco, como nunca antes, de um apocalipse sem Deus. E é por isso que, apesar do inevitável encorajamento à esperança, Francisco não se calou e não se cala", escreve Paolo Trianni, professor do Centro Gregoriano de Estudos Inter-religiosos, em artigo publicado por Settimana News, 06-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A voz de autoridade do Papa Francisco novamente se eleva pelo planeta. Na significativa data de 4 de outubro, foi promulgado, com o título Laudate Deum, um novo apelo ecológico sincero do pontífice, sob forma de exortação apostólica.
À leitura imediata, surpreende – e não pode deixar de surpreender – que uma exortação eclesial contenha tantos dados técnicos e tão pouca teologia. Isso, no entanto, responde a uma intencionalidade precisa: este é o momento dos fatos e não mais das palavras. Essa é a mensagem que o Papa pretende dirigir, não só aos cristãos, mas a todos os habitantes do mundo.
São eloquentes e parecem responder a tal intencionalidade as várias reclamações do texto relativamente às conferências sobre o clima que efetivamente não resultaram em nada, com muitos belos discursos que não tiveram nenhum impacto real. Destaca-se, por exemplo, o fato de não ter sido respeitado o prazo fixado para a redução das emissões globais de gases com efeito de estufa em 5% até esta data, assim como ainda não existem instrumentos eficazes para fazer respeitar os compromissos assumidos.
A exortação enumera não poucas críticas: à globalização, à lógica do lucro máximo ao custo mínimo, ao modelo tecnocrático, aos cientistas que propõem soluções simplistas e redutivas, aos que fazem leituras parciais ou atribuem as culpas aos pobres.
Há também uma denúncia muito direta: “falta um verdadeiro interesse pelo futuro”: o Papa sublinha, com lúcida clareza, que “tudo o que se nos pede é uma certa responsabilidade pela herança que deixaremos atrás de nós depois da nossa passagem por este mundo".
Sem querer alimentar cenários pessimistas, o alarme certamente não é evitado na exortação, por exemplo na passagem em que cita a amarga ironia de Soloviev, segundo a qual nosso século progrediu tanto que tem a sorte de ser o último.
Teilhard de Chardin, mais ou menos nos mesmos anos do teólogo russo e com a mesma preocupação, pronunciou uma frase de igual amargo sarcasmo: “Não se pode escalar uma montanha sem contornar um abismo”: palavras proféticas, porque, efetivamente, hoje, a humanidade está contornando aquele abismo; porque corre o risco, como nunca antes, de um apocalipse sem Deus. E é por isso que, apesar do inevitável encorajamento à esperança, Francisco não se calou e não se cala.
O documento distribui em igual medida denúncias e encorajamentos positivos, porque a “possibilidade de chegar a um ponto de virada é real. Pequenas mudanças podem causar grandes mudanças." Aliás, o texto contém uma argumentação construtiva e propositiva que se concentra numa palavra-chave: multilateralismo.
O pontífice ressalta que é mais necessário do que nunca criar um modelo de diplomacia multilateral que saiba responder à nova configuração do mundo. Bergoglio faz referência, em particular, a um multilateralismo “de baixo”, ou seja, não decidido pelas elites de poder. Esse, escreve o Papa, é o “caminho inevitável”. A meio caminho entre a esperança e a utopia, ele também propõe um modelo ideal no qual se inspirar: um meio ambiente - que ele adjetiva como "saudável" - que seja expressão da boa interação do homem, como ainda acontece nas culturas indígenas e como tem acontecido há séculos em diferentes regiões da Terra.
Acima de tudo, a exortação papal contém um apelo sincero para que a COP 28 – que em breve acontecerá em Dubai – não se revele um fracasso: ela, escreve Bergoglio, deve tornar-se histórica e nos honrar e enobrecer como seres humanos.
Desejando escrever alguns comentários sobre um documento tão sincero, gostaria de fazer três considerações.
A primeira é que a Laudate Deum atualiza, acentua e desenvolve a seção estatística da Laudato si’, renunciando a dar um desenvolvimento equivalente àquela teológica. Essa escolha não é totalmente partilhada, porque ainda há necessidade de teologia e de filosofia. Caso contrário, poderíamos ser levados a pensar que tudo o que era necessário dizer nesse âmbito já foi dito, quando na verdade não é esse o caso.
Um teólogo que poderia ser retomado – aliás, muito apreciado por Bergoglio – é Romano Guardini. Dentro de um livro intitulado O fim da idade moderna, Guardini escreveu uma frase muito atual que está intimamente ligada àquelas passagens da exortação onde se fala da busca do poder: “Quando a consciência do homem não assume a responsabilidade do poder, os demônios se apoderam dela. Com esse termo não nos referimos a alguma moda momentânea e jornalística, mas exatamente ao que diz a Revelação: seres espirituais, criados bons por Deus e que caíram longe Dele: que decidiram pelo mal e agora estão determinados a arruinar a criação divina". [1]
A linguagem forte de Guardini descreve incisivamente aquele desejo de poder e aquele domínio sobre a natureza já denunciado pelo Papa na encíclica anterior e que representa uma flagrante distorção do mandamento bíblico de “subjugar a terra”. Com uma linguagem mais filosófica, essa distorção foi criticada, como se sabe, por um autor como Martin Heidegger, que denunciou a perversão da tecnologia de meio para fim com a redução da natureza a sobra de estoque. [2]
A exortação também poderia ter feito maior referência a um autor como Jürgen Moltmann, que, em Deus na criação, teorizou uma doutrina teológica que parta da crise ecológica e que possa ser o fermento da paz com a natureza. [3] Muito úteis, num contexto como o atual, seriam também referências à deep ecology de Arnee Nesse ou à ecosofia de Raimon Panikkar.
Também teria sido apropriado, na minha opinião, abordar algumas ligações entre o desenvolvimento descontrolado da tecnologia e o pecado original, como fez Lanza del Vasto, ou as críticas de Jacques Ellul ao que ele definiu como o sistema técnico.
A exortação, porém, não carece totalmente de teologia: é significativo, em particular, que se retome uma categoria já introduzida por João Paulo II, quando falou de estruturas de pecado. De fato, no texto, Bergoglio usa abertamente a expressão “pecado estrutural”.
Na verdade, quase em homenagem a Dostoievski, cuja convicção sobre a beleza que salva o mundo é conhecida, ressalta que o cuidado do planeta passa por aquela contemplação que nos permite vislumbrar a presença de Deus no rosto do pobre, bem como no orvalho ou na cor das folhas. De toda forma, a ênfase de que a terra pertence a Deus também é radicalmente teológica (cf. Lv. 25,23).
O meu segundo comentário sobre o documento é que os apelos, mesmo que acompanhados de dados científicos, não são suficientes. Por si só, nem mesmo a teologia ou a ética são suficientes, porque o que a humanidade precisa hoje é de uma nova espiritualidade da natureza, na verdade, de uma verdadeira mística. Aberturas desse tipo não estavam ausentes na Laudato si’ e recuperá-las teria sido de grande utilidade.
O que parece mais urgente, na verdade, é “ressacralizar” a natureza. Se me permitem uma nota pessoal, foi exatamente o que tentei fazer em 2012 no festival de teologia de Piacenza, onde disse que uma nova teologia do meio ambiente deveria ter sido instaurada a partir de Romano Guardini e Teilhard de Chardin, ambos autores retomados, em 2015, pela carta encíclica. [4]
Em particular, pareceu-me oportuno citar as palavras do teólogo camaldulense Robert Hale sobre o Cristo Cósmico, pois através dessa categoria é possível voltar a olhar o meio ambiente natural com outros olhos. O monge estadunidense escreveu: “A própria sobrevivência do homem, como a do seu mundo, exige que ele redescubra o nexo unitário que o liga à complexidade total da vida”. [5]
Neste sentido, ele reiterava que no pancristismo de Teilhard de Chardin a categoria corpo cósmico de Cristo é tudo menos uma simples metáfora: “Não, o Corpo de Cristo não é, como alguns, por preguiça, querem que se acredite, a associação extrínseca ou jurídica de homens envolvidos numa mesma benevolência e a quem é destinada uma mesma recompensa. O corpo de Cristo deve ser entendido com ousadia, como o viram e amaram São João, São Paulo e os Santos Padres: constitui um mundo natural e novo, um organismo animado e nobre, no qual estamos todos unidos, fisicamente, biologicamente”. [6]
Em resumo, em Piacenza sugeri que a cristologia de Teilhard poderia ser assumida como percurso lógico, funcional para a recuperação daquela sacralidade do cosmos que o homem contemporâneo perdeu dramaticamente.
Uma terceira nota, até surpreendente - depois de Bergoglio na carta que ele enviou em 2022 para a Conferência Europeia dos Jovens reunidos em Praga ter apelado à redução do consumo de carne - é a ausência total de uma teologia dos animais e uma teologia do vegetarianismo. [7] É lícito se perguntar, a esse respeito, se é concretamente possível encontrar uma solução para os problemas ambientais sem encorajar mudanças radicais nos estilos de vida e, em particular, naquele alimentar. É preciso também ensinar a cuidar do mundo à mesa.
Independentemente dessas notas críticas, esse novo apelo do Papa permanece extremamente precioso. Só podemos agradecer a Bergoglio pelo seu empenho e as suas advertências, como o convite a “superar a lógica de nos apresentarmos sensíveis ao problema e, ao mesmo tempo, não termos a coragem de efetuar mudanças substanciais”.
O fechamento do documento, nesse sentido, é ao mesmo tempo emblemático e teológico: Louvem a Deus, “porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus
torna-se o pior perigo para si mesmo”. O Papa convida “cada um a acompanhar este percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo com o próprio contributo” (69). Cada um que escolha o seu.
[1] R. Guardini, La fine dell’epoca moderna. Il potere, Morcelliana, Brescia 1954, 82.
[2] Cf. M. Heidegger, La questione della tecnica in ID, Saggi e discorsi, Mursia, Milano 1976, 10-21.
[3] Cf. J. Moltmann, Dio nella creazione, Queriniana, Brescia 1992, 33-34. Considerar também J. Moltman/P. Stefani/P. Trianni (ed.), La terra come casa comune. Crisi ecologica ed etica ambientale, EDB, Bolgna 2017.
[4] Cf. E. Garlaschelli/G. Salmeri/P. Trianni (ed.), Ma di’ soltanto una parola: economia, ecologia, speranza per i nostri giorni, EDUcatt, Milano 2013.
[5] R. Hale, Il cosmo e Cristo. Basi di una teologia ecologica secondo Teilhard de Chardin, Edizioni Istituto Stensen, Firenze 1974, 1.
[6] R. Hale, Il cosmo e Cristo, 21.
[7] P. Trianni, Per un vegetarianismo cristiano, EMP, Padova 2017.
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Laudate Deum: uma voz para o planeta. Artigo de Paolo Trianni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU