17 Outubro 2023
"No novo documento sobre a 'ecologia integral', o Papa Francisco apresenta com força o problema do poder, local, nacional e internacional, principal responsável pela salvação da Terra. As almas, os corpos e a matéria em que o coração de Deus está escondido".
O artigo é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 11-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não sou um historiador da Igreja e não posso dizer se já aconteceu de um Papa ter escrito duas encíclicas sobre o mesmo tema com alguns anos de diferença uma da outra, como Francisco fez com a Laudate Deum, oito anos depois da Laudato si’, duas encíclicas (ou “exortações apostólicas” que sejam) que até começam com a mesma palavra. Mas esse é precisamente o critério hermenêutico para compreender ambas: dizem que é inútil louvar a Deus se está se destruindo a Terra.
Essa é de fato a maior contradição possível, que nega radicalmente a definição do homem como “animal racional”: não, a razão não é a beleza do homem, se ele faz tudo contra a razão, desde a guerra até à globalização do suicídio.
Eis então duas encíclicas escritas na tentativa de salvar o mundo, quase como dizer que as palavras não bastam se não forem seguidas pelos atos, se as palavras depois forem rasgadas. O anúncio da salvação não é a característica do cristianismo e de todas as religiões? Mas a salvação está sendo jogada aqui na Terra, ou melhor, in terris, como dizia João XXIII, mas as terras estão sendo por todos, crentes e não crentes, arruinadas.
Portanto, parece-me que essa "carta" que, como escreve o teólogo brasileiro Fernando Altemeyer Junior, é, ao lê-la, "como levar um soco no estômago", representa de alguma forma o ápice do pontificado do Papa Francisco, não porque acrescenta uma pedra ao monumento do seu magistério, mas porque revela a verdadeira natureza do ministério petrino. Por fazer isso, ele é detestado por muitos: a direita furiosa, invejosa do Evangelho, diz que o papa “entre Sínodo, clima e política se esquece de Deus”; pelo contrário, nesse texto como no anterior, ele anuncia o amor de Deus a todas as suas criaturas; não esquece, mas lembra também às outras religiões, que “o universo se desenvolve em Deus, que o preenche completamente, portanto há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre", ou seja, em toda a natureza.
Lembro-me de um bispo mexicano, que também foi um maravilhoso padre conciliar, Sergio Mendez Arceo, a quem, usando a linguagem da época, perguntei "quantas almas" tinha a sua diocese de Cuernavaca, e ele me respondeu: "E os corpos, onde você os coloca?”
A Laudate Deum tenta salvar os corpos, corpos e almas juntos, segundo uma antropologia indivisa; tenta salvar “o coração da matéria”, o “Cristo cósmico” segundo a linguagem de Teilhard de Chardin; e é precisamente isso que significa o “cuidado das almas”, que é o ofício do padre.
E essa carta do Papa dá um salto em frente em relação à Laudato sì’: porque naquela encíclica queria “partilhar com todos os irmãos e irmãs” as suas preocupações pelo “nosso planeta sofredor”, mas oito anos depois ele se dá conta que nada foi feito, que o mundo “está desmoronando e talvez se aproximando de um ponto de ruptura" (e dentro dele também estão as guerras), e não se trata mais simplesmente de um problema "ecológico" que alguém pensa que possa resolver apenas com a tecnologia ou, com ainda mais arrogância, com “o crescente paradigma tecnocrático”, mas de “um problema social global que está intimamente ligado à dignidade da vida humana”.
Pois bem, esse grito da Terra e essa demanda de dignidade não apelam apenas à necessidade de uma conversão, mas remetem à questão do poder. Essa é precisamente a novidade da Laudate Deum, que propõe com força o problema do poder; não que isso já não tivesse sido evocado e discutido na Laudato si’, mas aqui se torna o problema central e condicionante de tudo. Num sentido filosófico e teológico, trata-se do poder do homem como tal, que se pretende ilimitado, e se traduz numa “intervenção humana desenfreada na natureza”, quando na verdade ilimitado não é; pelo contrário – e assim termina a Exortação Papal – “um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo”. De fato, pretender ter o poder de Deus significa não ter poder algum, significa tornar-se ídolo: e os ídolos, como sabemos, “Eles têm boca, mas não falam; têm olhos, mas não veem. Têm ouvidos, mas não ouvem; têm nariz, mas não cheiram. Têm mãos, mas não podem pegar; têm pés, mas não andam”; os poderes que estão destruindo a Terra na realidade não a veem, não ouvem o seu grito, não cheiram os seus perfumes, não a sustentam para que não caia das suas mãos, e aqueles que neles confiam fazem o mesmo.
E aqui o Papa chama à ação os poderes, “o verdadeiro poder”, nacional e internacional, e acrescenta que “se os cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional, municipal – também não é possível combater os danos ambientais”.
Mas não basta apontar o poder como o responsável final pelo destino da Terra e esperar que ele tome conta; o Papa vai mais longe e denuncia porque o poder não o faz e, se não mudar, nem mesmo o pode fazer. Não menciona o nome do capitalismo, para não ferir os pios ouvidos, mas fala disso quando diz que as grandes potências econômicas (e não só, porque se trata de todos os atores e artífices desse sistema) "estão preocupados em obter o máximo lucro ao menor custo e no menor tempo possível”; e fica, portanto, claro porque não podem cuidar da Terra, mas nem mesmo das “almas” e dos corpos que a habitam. Nem o poderão fazer se “os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente”.
E não se trata apenas de males atribuíveis a lideranças políticas e econômicas da sociedade, mas de uma cultura e de uma prática que se contagiaram em todos os níveis da vida social. "Os próprios pobres", escreve o Papa, "às vezes caem no engano de um mundo que não é construído para eles". E todos são jogados numa competição imposta pelo evangelho da “meritocracia”: “Incrementam-se ideias erradas sobre a chamada ‘meritocracia’, que se tornou um ‘merecido’ poder humano ao qual tudo se deve submeter. Caso diverso é a sadia abordagem do valor do compromisso, do desenvolvimento das próprias capacidades e de um louvável espírito de iniciativa; mas se não se procura uma real igualdade de oportunidades, a meritocracia facilmente se transforma num para-vento que consolida ainda mais os privilégios de poucos com maior poder". Não são denúncias novas na Igreja, pelo menos naquela Igreja que soube ouvir a voz dos pobres e fazer caminhar os seus pés no caminho da paz.
Recentemente foi publicado um livro de Enrico Mauro, “Contro la società del sorpasso, il pensiero antimeritocratico di don Tonino Bello”. Numa carta para o Natal de 1985, aquele santo bispo de Molfetta advertia contra fazer "das costas do próximo instrumento das vossas escaladas" e denunciava "a economia desumana, a exasperação de parâmetros econômicos reduzidos a critério supremo da convivência humana, as lógicas da guerra (que) dos campos de batalha se transferiram para os gabinetes de uma economia que penaliza os pobres, o domínio absoluto da lógica do lucro (que) é a verdadeira causa dos graves desequilíbrios do mundo contemporâneo (...) que dá origem ao êxodo de milhões de 'condenados da terra' para as nossas sociedades opulentas".
Tudo isso diz que a causa da Terra deve ter muitos defensores, no topo e na base de toda a comunidade humana. O método só pode ser o do multilateralismo, um multilateralismo revisitado, que envolva a comunidade internacional e aquelas locais, que fortaleça a ONU, que não pretenda um governo global, mas que implemente o princípio da subsidiariedade, que una global e local, que busque um constitucionalismo mundial, que alcance "um multilateralismo a partir de baixo, e não simplesmente decidido pelas elites do poder".
Uma visão profética e um realismo histórico que só poderia vir de um papa chamado Francisco.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Laudate Deum: é inútil louvar a Deus se estão destruindo a Terra. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU