03 Outubro 2023
Quatro minutos de beleza do outro mundo. Há um momento particular no relatar a sua amizade com Giorgio Napolitano, que o cardeal Gianfranco Ravasi enche de emoção. Vai chegando a ele com certa sabedoria cênica, dosando o clímax, entrelaçando os eventos, se detendo nos detalhes. É a lembrança de um concerto de Mozart: o Ave verum corpus, “K618, escrito para o Corpus domini de 1791". O monsenhor e o presidente comunista ouvem-no juntos: “No final da execução ele me disse: 'Foram quatro minutos de beleza do outro mundo'". Ravasi faz uma brevíssima pausa, a boca se curva em um sorriso, quase como se quisesse saborear a reação do auditório da câmara dos deputados em Montecitorio, para procurar uma surpresa diante daquela revelação.
A reportagem é de Ilario Lombardo, publicada por La Stampa, 27-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Fora da Câmara, passeando pelo salão Transatlântico, o cardeal explica melhor o sentido daquela anedota, conversando alguns minutos com La Stampa, enquanto o cercam para cumprimentá-lo o presidente do CDP Dario Scannapieco e o subsecretário Vittorio Sgarbi, que durante o discurso adormeceu várias vezes nos bancos do governo. O testemunho pessoal de Ravasi sobre Napolitano é a história de uma admiração, da admiração que envolve aqueles que através do diálogo infinito da cultura encurtam as distâncias, rompem as ideologias e, buscando os caminhos menos conhecidos, encontram inesperadas convergências. O que quis dizer, monsenhor, lembrando o assombro de Napolitano, e aquelas palavras sobre a beleza do outro mundo? Havia no presidente uma busca pelo divino? “Acho que certamente havia nele um questionamento incessante sobre o transcendente”.
Ravasi demonstra respeito absoluto pelo amigo de tantos confrontos. Não dá interpretações, não se aventura a seguir as pistas de uma aspiração à fé ou até mesmo de uma conversão tardia na vida do ex-Presidente da República, uma vida passada no PCI, entre repensamentos e retratações. “Não sei e não me permito fazer leituras sobre suas crenças mais íntimas. Mas com certeza posso dizer uma coisa sobre Napolitano: sobre os temas do cristianismo estava muito à frente, muito mais à frente do que tantos outros crentes. Era certamente uma daquelas pessoas que, com uma bela expressão, é definida como um ‘cristão anônimo’”.
A cultura Ravasi é um continente de referências contínuas. Cita o teólogo Karl Rahner, jesuíta, estudioso de Martin Heidegger, um dos principais protagonistas do Concílio Vaticano II. É dele a teoria sobre os "cristãos anônimos". Não há doutrina, não há batismo, não há filiação dogmática: são indivíduos portadores da verdade, mesmo que não sejam inscritos em uma fé. Na força moral de sua consciência estão próximos de Cristo. Um amor inconsciente. “A inatingível distância - chama-a Rahner - para onde vai a saudade de cada coração, por caminhos que não têm fim". Era isto Napolitano, para o Cardeal Ravasi. Um comunista que lutou contra as derrotas e as contradições da sua igreja, o partido, onde não houve concílios, mas o fim de uma história.
"Eu e ele tínhamos um contínuo confronto intelectual e espiritual, no sentido mais amplo do termo." Ravasi repete o que já havia dito na Câmara. Havia, sem dúvida, “uma atenção ao discurso espiritual” em Napolitano, “não no sentido confessional”. A memória voa para Assis, em 2012. O cardeal reconstrói a personalidade do ex-Chefe de Estado em poucos flashes. O primeiro encontro, em 1998, na Biblioteca Ambrosiana de Milão, da qual Ravasi era prefeito, onde juntos admiraram uma "relíquia secular", o texto autógrafo de Dei delitti e delle pene de Cesare Beccaria. O encontro com o Papa Bento XVI em 2010, a grande sintonia, o amor comum por Mozart, por Thomas Mann, a citação de José e seus irmãos. Depois, precisamente, Assis, há onze anos. Ravasi ainda lembra claramente aquele encontro. O azul do céu e o verde, que lhe lembram as cores de Piero della Francesca: “Napolitano - conta - proferiu uma lição extraordinária sobre a relação sociedade-religião e naquela ocasião disse que pela franqueza do diálogo entre crentes e não crentes surgem novos estímulos para a retomada ideal e moral da Itália”.
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Gianfranco Ravasi: Napolitano, “sobre o cristianismo estava mais à frente do que tantos outros crentes” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU