30 Setembro 2023
"Carlos Emílio Gadda. Símbolos e figuras bíblicas emergem em muitas de suas obras e é dada especial atenção aos Evangelhos Sinópticos: 'Eles nos levam de volta à verdade do mundo moral'".
O artigo é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado por Il Sole 24 Ore, 27-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe até um Gaddabolario, criado por Paola Italia (Carocci), que recenseia e comenta 219 palavras cunhadas pelo autor-engenheiro, construtor de um já famoso léxico pessoal, fruto de uma mistura de palavras palacianas e dialetais, técnicas e gírias, retocadas e entrelaçadas com linguagens disparatadas, do grego e latim clássicos ao românico, do francês ao dialeto vêneto, do inglês e hispânico ao napolitano e assim por diante. Aqui, porém, por ocasião do quinquagésimo aniversário da sua morte, que aconteceu em Roma em 21 de maio de 1973, pouco antes de seu octogésimo aniversário, gostaríamos de nos debruçar sobre um aspecto à primeira vista alheio a Carlo Emilio Gadda, ou seja, à sua relação com a religião.
Fulminante, no entanto, tinha sido o seu olhar sobre a sociedade burguesa, sobre os novos ricos, sobre a triste relação “erótica” entre Mussolini e o povo italiano, retratada figurativamente no romance Eros e Priapo (concebido em 1944-1945, mas publicado apenas em 1967). No entanto, em muitas de suas obras afloram símbolos e figuras bíblicas, especialmente os sinais flamejantes do Apocalipse. Em um artigo que apareceu na “Nuova Antologia” de 1940 não hesitava em celebrar os Evangelhos, “particularmente os sinópticos, na clareza divina da parábola: reconduzem-nos à verdade do mundo moral, quase rumando em direção à luz, sempre!”. E em uma das histórias de Accoppiamenti giudiziosi (1963) exaltava "a voz da Bíblia, o maior livro já escrito".
Suas páginas, então, são muitas vezes atravessadas por entrelinhas que revelam sua leitura dos "grande livro", desde o Éden inicial com a serpente tentadora e a continuação sangrenta de Caim e Abel e a prevaricação de Babel, até aos selos e às catástrofes apocalípticas. Estas últimas tornam-se para Gadda a ferramenta simbólica para atacar o fascismo e o seu líder, “a besta imperial e sua imunda montaria". Aqui está um exemplo curioso de uma citação do Apocalipse joanino (17,3-6). Intercalada por explicações parentéticas aplicadas: “Um anjo me levou para um deserto (no deserto mortal dos povos assassinados) e me mostrou a besta escarlate com sete cabeças e dez chifres cobertos de nomes de blasfêmias (os falsos mitos)… Sobre sua ferida, eis a misteriosa inscrição: Babilônia, a Grande, Mãe de todas as prostituições. Ela estava ébria do sangue dos mártires."
Contudo, não falta referência à figura de Cristo cujas palavras são frequentemente citadas nas várias obras de Gadda, às vezes também em latim eclesiástico, como o Sinite parvulos venire ad me, um apelo “dito pelo primeiro socialista do mundo” (assim no primeiro romance La meccanica, 1970). Um dos livros de Gadda que no meu passado distante de leitor mais me impressionou foi La cognizione del dolore (1970). O que me marcou tinha sido o cenário de uma fantasiosa Brianza, que era minha terra natal, porém misturada com figuras e paisagens sul-americanas, como era o protagonista Dom Gonzalo, em permanente bate-boca com a mãe que talvez seja assassinada por emissários de um Instituto de Vigilância noturna, alegoria do fascismo. É daquela morte cruel que em Dom Gonzalo se ramifica a mão gélida do remorso e do sentimento de culpa que progressivamente o faz sentir-se talvez como matricida, mas que finalmente consegue redimi-lo.
A fluidez da trama, típica do estilo de Gadda, tornava na época difícil para mim decifrar o seu aspecto moral-religioso. Foi um ensaio, difícil de encontrar, que descobri quando eu dirigia a Biblioteca Ambrosiana, que iluminou uma espécie de palimpsesto teológico naquela obra. Tratava-se da análise do romance realizada por Rinaldo Rinaldi em La paralisi e lo spostamento (Bastogi, Livorno 1977) que chegou a este resultado inesperado: “Um denso retículo de sugestões evangélicas funciona realmente como um sistema, a ponto de falar de estrutura cristológica do romance”. Aliás, segundo aquele crítico, era a própria história de Cristo que sustentava o perfil de Dom Gonzalo, ainda que por paradoxo, e que se tornou “a arquitetura de suporte de toda a segunda parte”.
Rinaldi adotava uma hermenêutica de viés junguiano e traçava um mapa não só das referências evangélicas explícitas, mas também das equivalências entre os vários atores e alguns personagens evangélicos. Não é possível traçar nestas poucas linhas aquele programa de similaridades entre Dom Gonzalo, seu pai, sua mãe, os primos, a plebe, o Instituto de Vigilância, por um lado, e figuras evangélicas análogas até o próprio Satanás e sobretudo a catarse final, pelo outro. Rinaldi escrevia, acenando para a instrumentação interpretativa psicanalítica acima mencionada: “A figura de Gonzalo se sobrepõe àquela de Cristo, do Filho que não só com sua natureza divina representa o símbolo da totalidade psíquica..., mas que justamente como sofrimento da Paixão constitui o modelo do doloroso processo de individuação, da viagem de sabedoria que chega ao renascimento através da morte”.
Seja como for, permanece o fato de que o desfecho da história de Dom Gonzalo faz referência ao Consummatum est de Cristo crucificado. De fato, escreve Gadda. “Tudo tinha que continuar a se desdobrar e se realizar: todas as obras. E o toque da hora de uma torre distante pareceu significar: 'As ações foram todas cumpridas'". Certamente, a frenética troca de registro do realista para o grotesco, do lírico para o dramático, do cômico para o trágico transforma cada interpretação das páginas de Gadda num desafio. No entanto, é difícil – também por causa da própria biografia do escritor – ignorar as trepidações morais e espirituais de muitas de suas linhas.
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O apocalipse abre caminho entre a dor. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU